Ao colocar o foco central na
figura de Lula, PT renunciou a politizar a eleição, e a fazer o debate sobre
projetos de país. O caminho estava aberto para um aventureiro. Agora, tudo está
por reconstruir
Gilberto Maringoni | Outras
| Imagem: Max Beckmann, A Noite (1919)
A maior proeza de Jair Bolsonaro
não foi ter vencido as eleições. Foi ter imposto sua agenda para toda a
disputa. E esse – contraditoriamente – pode ser seu calcanhar de Aquiles no
governo. A mercadoria que prometeu vagamente entregar – “mudar isso que está
aí” – pode não constar de seu estoque. Esse é tema para outro artigo. Quero me
deter no caminho que percorremos até aqui.
Há uma pergunta essencial a ser
respondida: por que, num país de 14 milhões de desempregados, com uma recessão
sem sinais claros de reversão, em processo acelerado de desindustrialização e
com serviços públicos rumando para o colapso, a agenda eleitoral se voltou para
uma pauta claramente moralista e despolitizada?
E mais: como alguém considerado
pela direção do PT como o adversário ideal a ser batido no segundo turno teve
esse poder de agenda ao longo dos últimos meses?
Talvez a chave da resposta esteja
em como o próprio PT decidiu encarar o enfrentamento nas urnas. Lula buscou
controlar o leme da jornada ao se colocar como candidato até os 44 minutos do
segundo tempo – ou seja, até meados de setembro, sem indicar um vice ou plano
B.
Para isso, não priorizou a luta
política aberta. Condenado e encarcerado, resolveu concretizar uma ideia de
duvidoso efeito prático. A vertente traçada foi a de delegar tacitamente a direção
de campanha aos seus advogados, que impetraram ações em cima de ações, numa
comovente confiança no sistema jurídico brasileiro.
O caminho escolhido não foi o de
questionar o governo Temer e seus representantes ocultos na campanha
presidencial, mas o de mostrar Lula como vítima injusta de um processo
fraudulento. É a mais pura verdade. Mas fazer da condição do ex-presidente o
centro da campanha, ao invés dos problemas concretos vividos pela maioria dos
brasileiros, foi aposta de alto risco. Em lugar de um julgamento de Temer e de
suas reformas regressivas, Lula chamou para si a questão. Sua tática foi
transformar as eleições em um plebiscito sobre si mesmo.
Percebendo a insuficiência dessa
opção, ela veio acompanhada de outra: a saudade dos bons tempos, quando o
Brasil crescia e os salários idem. O país era respeitado no mundo e o futuro
parecia radioso. Parte disso é verdade. Mas saudade é um sentimento seletivo,
como se sabe. Tende a ser unidimensional. Escolhemos o que lembrar e escolhemos
o que esquecer. Diferentemente de olhar criticamente o passado para entender o
presente – a base do estudo da História – a saudade tem os dois pés no
idealismo. Assim, os pilares da campanha petista até o final do primeiro turno
tinham na vitimização e na saudade suas linhas mestras. Ou seja, em sentimentos
fora da política e do confronto.
Uma terceira linha de conduta foi
agregada a essas vertentes. Se o centro de tudo seria Lula, faltava uma peça no
quebra-cabeças. O raciocínio se tornaria redondo com o mantra “Haddad no
governo, Lula no poder”, um mal ajambrado slogan retirado da campanha de Héctor
Cámpora à presidência da Argentina, em 1973. Esse era o complemento para
sustentar o nome de Lula como candidato até a undécima hora, transformando
Fernando Haddad em mero biombo seu. Além de desqualificar o real candidato
petista, a formulação o deixou na sombra até depois de iniciada a campanha.
Haddad não participou de debates,
sabatinas e entrevistas até o final de setembro. Isso dificultou muito a
fixação de seu nome e a politização da campanha. Como subproduto, os pouco mais
de dois minutos de horário televisivo que o PT dispunha no primeiro turno foram
tomados pela tentativa de colar seu nome ao de Lula. Não houve nenhum ataque a
Jair Bolsonaro. Nenhum, o que é incrível .Traçados esses vetores todos, uma
resultante sobressai: o PT optou por despolitizar a campanha na primeira volta,
deixando uma avenida aberta para que algum aventureiro aparecesse.
Quando Jair Bolsonaro sofre o
atentado em 7 de setembro, a campanha muda de rumo. Hospitalizado e com risco
de vida, ele também se torna vítima. Lula perde a primazia dessa condição. Com
isso, o ex-capitão consegue, enfim, emplacar a sua agenda como central. Sem
política, valendo-se de medos e preconceitos arraigados na população, Bolsonaro
adiciona mais um ingrediente, o antipetismo. E aqui evidencia-se um antipetismo
de novo tipo. Trata-se de uma repulsa popular ao partido, diferentemente de sua
versão conservadora e de direita, que via na ascensão dos pobres um problema a
ser vencido.
O novo antipetismo sensibilizou
os órfãos do próprio PT, as vítimas da depressão de 2015-16, promovida por
Dilma e Joaquim Levi. Os que aceleradamente perderam empregos, oportunidades e
enfrentaram uma situação econômica que se degradava aceleradamente. Os que
confiaram no discurso desenvolvimentista da candidata petista naquelas eleições
e viram seu contrato selado através do voto ser rompido sem explicação, com a
adoção do programa de Aécio Neves para a economia. Esses formam a massa de dezenas
de milhões que entraram em desespero e caíram na conversa fácil da propaganda
fascista e de suas respostas simples para problemas complexos.
É preciso olhar para essas linhas
de força traçadas na campanha de 2018 e que tiveram raízes fincadas nos últimos
anos para que tentemos entender o que aconteceu. Claro, há Ciro Gomes e sua
vergonhosa omissão na luta, desrespeitando até mesmo seus apoiadores e
correligionários. Há também o uso criminoso do WhatsApp, que precisamos
compreender mais profundamente.
Mas se não focarmos as avaliações
na política e em nossas insuficiências, empurraremos o problema com a barriga
para mais adiante. Podemos nos confraternizar em nossas dores e frustrações – o
que deve ser feito – e fazer como os republicanos espanhóis após a dramática
derrota da Guerra Civil (1936-38). Diziam eles: “Perdemos, mas nossas canções
são incomparavelmente mais belas”.
Não há dúvidas. Não apenas nossas
canções são mais belas, como reunimos o que há de melhor no mundo do trabalho,
da academia – com destaque para os estudantes –, da cultura, das artes e da
inteligência, enfim. Temos ao nosso lado o mais importante líder popular de
nossa História, um candidato – Fernando Haddad – que se agigantou na jornada e
uma liderança de primeira grandeza, como Guilherme Boulos. E mais do que tudo,
unimos a esquerda, os democratas, parte dos liberais, dos nacionalistas e dos
que lutam por um Brasil socialmente justo. Temos de cumprir um roteiro
doloroso, chorar sozinhos e juntos., tomar fôlego, entender racionalmente o que
aconteceu e voltar à ação.
Lamber nossas feridas está sendo
duro. Encarar a besta-fera fascista exige coesão e comunhão de propósitos. Que
o exame e as avaliações desse período não nos dilacerem, mas consolidem a união
pela resistência e superação. O fascismo não permanecerá.
Já vencemos no passado e
venceremos no futuro.
Não estamos sozinhos. Somos
milhões.
*Gilberto Maringoni é professor
de Relações Internacionais da UFABC e diretor da Fundação Lauro Campos. Foi
candidato do PSOL ao governo de São Paulo (2014).
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