Intelectual italiano, romancista
e filósofo, autor de "O pêndulo de Foucault" e "O Nome da
Rosa", morreu em 19 de fevereiro, aos 84 anos; "O fascismo eterno
ainda está ao nosso redor, às vezes em trajes civis", diz Eco
A Revista Samuel reproduz
o texto de Umberto Eco "Ur-Fascismo", produzido originalmente para
uma conferência proferida na Universidade Columbia, em abril de 1995, numa
celebração da liberação da Europa:
"O Fascismo Eterno"
Em 1942, com a idade de dez anos,
ganhei o prêmio nos Ludi Juveniles (um concurso com livre
participação obrigatória para jovens fascistas italianos — o que vale dizer, para
todos os jovens italianos). Tinha trabalhado com virtuosismo retórico sobre o
tema: “Devemos morrer pela glória de Mussolini e pelo destino imortal da
Itália?” Minha resposta foi afirmativa. Eu era um garoto esperto.
Depois, em 1943, descobri o
significado da palavra “liberdade”. Contarei esta história no fim do meu
discurso. Naquele momento, “liberdade” ainda não significava “liberação”.
Passei dois dos meus primeiros
anos entre SS, fascistas e resistentes, que disparavam uns nos outros, e
aprendi a esquivar-me das balas. Não foi mal exercício.
Em abril de 1945, a Resistência tomou
Milão. Dois dias depois os resistentes chegaram à pequena cidade em que eu
vivia. Foi um momento de alegria. A praça principal estava cheia de gente que
cantava e desfraldava bandeirolas, invocando Mimo, o líder a resistência na
área, em alto brado. Mimo, ex-suboficial dos carabinieri, envolveu-se com os
partidários do marechal Badoglio e perdeu uma perna nos primeiros confrontos.
Apareceu no balcão da Prefeitura, apoiado em muletas, pálido; tentou acalmar a
multidão com uma mão. Eu estava ali esperando seu discurso, já que toda a minha
infância tinha sido marcada pelos grandes discursos históricos de Mussolini,
cujos passos mais significativos aprendíamos de cor na escola. Silêncio. Mimo
falo com voz rouca, quase não se ouvia. Disse: “Cidadãos, amigos. Depois de
tantos sacrifícios dolorosos… aqui estamos. Glória aos que caíram pela
liberdade…”. E foi tudo. Ele voltou para dentro. A multidão gritava, os membros
da resistência levantaram as armas e atiraram para o alto, festivamente. Nós,
rapazes, nos precipitamos para recolher os cartuchos, preciosos objetos de
coleção, mas eu tinha aprendido então que liberdade de palavra significa também
liberdade da retórica.
Alguns dias depois vi os
primeiros soldados norte-americanos. Eram afro-americanos. O primeiro ianque
que encontrei era um negro, Joseph, que me apresentou às maravilhas de Dick
Tracy e Ferdinando Buscapé. Seus gibis eram coloridos e tinham um cheiro bom.
Um dos oficiais (o major ou
capitão Muddy) era hóspede na casa da família de dois dos meus companheiros de
escola. Sentia-me em casa naquele jardim em que alguns senhores amontoavam-se
em torno ao capitão Muddy, falando um francês aproximativo. O capitão Muddy
tinha uma boa educação superior e conhecia um pouco de francês. Assim, minha
primeira imagem dos libertadores norte-americanos, depois de tantos
caras-pálidas de camisa negra, era a de um negro culto em uniforme cáqui que
dizia: “Oui, merci beaucoup Madame, moi aussi j'aime le champagne…” Infelizmente,
faltava o champagne, mas ganhei do capitão Muddy o meu primeiro chiclete e
comecei mastigando o dia inteiro. De noite colocava o chiclete em um copo
d'água para que ficasse fresco para o dia seguinte.
Em maio, ouvimos dizer que a
guerra tinha acabado. A paz deu-me uma sensação curiosa. Haviam me dito que a
guerra permanente era a condição normal de um jovem italiano. Nos meses
seguintes descobri que a Resistência não era apenas um fenômeno local, mas
Europeu. Aprendi novas e excitantes palavras como “reseau”, “maquis”,
“armée secrète”, “Rote Kapelle”, “gueto de Varsóvia”. Vi as primeiras
fotografias do Holocausto e assim compreendi seu significado antes mesmo de
conhecer a palavra. Percebi que havíamos sido liberados.
Hoje na Itália existem algumas
pessoas que se perguntam se a Resistência teve algum impacto militar real no
curso da guerra. Para a minha geração a questão é irrelevante: compreendo
imediatamente o significado moral e psicológico da Resistência. Era motivo de
orgulho saber que nós, europeus, não tínhamos esperado passivamente pela
liberação. Penso que, também para os jovens norte-americanos que derramaram seu
sangue pela nossa liberdade, não era irrelevante saber que atrás das linhas
havia europeus que já estavam pagando seu débito.
Hoje na Itália tem gente que diz
que a Resistência é um mito comunista. É verdade que os comunistas exploraram a
Resistência como uma propriedade pessoal, pois realmente tiveram um papel
primordial no movimento; mas lembro-me dos resistentes com bandeiras de
diversas cores.
Grudado ao rádio, passava as
noites — as janelas fechadas e a escuridão geral faziam do pequeno espaço em
torno ao aparelho o único halo luminoso — escutando as mensagens que a Rádio
Londres transmitia para a Resistência. Eram, ao mesmo tempo, obscuras e
poéticas (“Ainda brilha o sol”, “As rosas hão de florir”), mas a maior parte
eram “mensagens para Franchi”. Alguém soprou no meu ouvido que Franchi era o
líder de um dos grupos clandestinos mais poderosos da Itália do Norte, um homem
de coragem legendária. Franchi tornou-se o meu herói. Franchi (cujo verdadeiro
nome era Edgardo Sogno) era um monarquista tão anticomunista que, depois da
guerra, se uniu a um grupo de extrema direita e foi até acusado de ter
participado de um golpe de Estado reacionário. Mas que importa? Sogno ainda é o
sonho da minha infância. A liberação foi um empreendimento comum de gente das
mais diversas cores.
Hoje na Itália tem gente que diz
que a guerra de liberação foi um trágico período de divisão, e que precisamos
agora de uma reconciliação nacional. A recordação daqueles anos terríveis
deveria ser reprimida. Mas a repressão provoca neuroses. Se a reconciliação
significa compaixão e respeito por todos aqueles que lutaram sua guerra de
boa-fé, perdoar não significa esquecer. Posso até admitir que Eichmann
acreditava sinceramente em sua missão, mas não posso dizer: “Ok, volte e
faça tudo de novo”. Estamos aqui para recordar o que aconteceu e para declarar
solenemente que “eles” não podem repetir o que fizeram.
Mas quem são “eles”?
Se pensamos ainda nos governos
totalitários que dominaram a Europa antes da Segunda Guerra Mundial, podemos
dizer com tranquilidade que seria muito difícil que eles retornassem sob a
mesma forma, em circunstâncias históricas diversas. Se o fascismo de Mussolini
baseava-se na ideia de um líder carismático, no corporativismo, na utopia do
“destino fatal de Roma”, em uma vontade imperialista de conquistar novas
terras, em um nacionalismo exacerbado, no ideal de uma nação inteira
arregimentada sob a camisa negra, na recusa da democracia parlamentar, no
anti-semitismo, então não tenho dificuldade para admitir que a Aliança
Nacional, nascida do MSI (Movimento Social e Italiano), é certamente um partido
de direita, mas tem muito pouco a ver com o velho fascismo. Pelas mesmas
razões, mesmo preocupado com os vários movimentos neonazistas ativos aqui e ali
na Europa, inclusive na Rússia, não penso que o nazismo, e sua forma original,
esteja ressurgindo como movimento capaz de mobilizar uma nação inteira.
Todavia, embora os regimes
políticos possam ser derrubados e as ideologias criticadas e destituídas de sua
legitimidade, por trás de um regime e de sua ideologia há sempre um modo de
pensar e de sentir, uma série de hábitos culturais, uma nebulosa de instintos
obscuros e de pulsões insondáveis. Há, então, um outro fantasma que ronda a
Europa (para não falar de outras partes do mundo)?
Ionesco disse certa vez que “somente
as palavras contam, o resto é falatório”. Os hábitos linguísticos são muitas
vezes sintomas importantes de sentimentos não expressos.
Portanto, permitam-me perguntar
por que não somente a Resistência mas toda a Segunda Guerra Mundial foram
definidas em todo o mundo com uma luta contra o fascismo. Se relerem "Por
quem os sinos dobram", de Hemingway, vão descobrir que Robert Jordan
identifica seus inimigos com os fascistas, mesmo quando está pensando nos
falangistas espanhóis.
Permitam-me passar a palavra a
Franklin Delano Roosevelt: “A vitória do povo americano e de seus aliados
será uma vitória contra o fascismo e o beco sem saída que ele representa” (23
de setembro de 1944).
Durante os anos de McCarthy, os
norte-americanos que tinham participado da guerra civil espanhola eram chamados
de “fascistas prematuros” — entendendo com isso que combater Hitler nos anos
1940 era um dever moral de todo bom norte-americano, mas combater Franco cedo
demais, nos anos 1930, era suspeito. Por que uma expressão como “fascist
pig” era usada pelos radicais norte-americanos até para indicar um
policial que não aprovava os que fumavam? Por que não diziam: “Porco
Caugolard”, “Porco Falangista”, “Porco Quisling”, “Porco croata”, “Porco Ante
Pavelic”, “Porco nazista”?
Mein Kampf é o manifesto
completo de um programa político. O nazismo tinha uma teoria do racismo e do
arianismo, uma noção precisa de entartete Kunst, a “arte degenerada”, uma
filosofia da vontade de potência e da Übermensch. O nazismo era
decididamente anticristão e neopagão, da mesma maneira que o Diamat (versão
oficial do marxismo soviético) de Stalin era claramente materialista e ateu. Se
como totalitarismo entende-se um regime que subordina qualquer ato individual
ao Estado e sua ideologia, então nazismo e estalinismo eram regimes
totalitários.
O fascismo foi certamente uma
ditadura, mas não era completamente totalitário, nem tanto por sua brandura
quanto pela debilidade filosófica de sua ideologia. Ao contrário do que se
pensa comumente, o fascismo italiano não tinha uma filosofia própria. O artigo
sobre o fascismo assinado por Mussolini para a Enciclopédia Treccani foi
escrito ou inspirou-se fundamentalmente em Giovanni Gentile ,
mas refletia uma noção hegeliana tardia do “Estado ético absoluto”, que
Mussolini nunca realizou completamente. Mussolini não tinha qualquer filosofia:
tinha apenas uma retórica.
Começou como ateu militante, para
depois firmar a concordata com a Igreja e confraternizar com os bispos que
benziam os galhardetes fascistas. Em seus primeiros anos anticlericais, segundo
uma lenda plausível, pediu certa vez a Deus que o fulminasse ali mesmo para
provar sua existência. Deus estava, evidentemente, distraído. Nos anos
seguintes, em seus discursos, Mussolini citava sempre o nome de Deus e não
desdenhava o epíteto: “homem da Providência”. Pode-se dizer que o fascismo
italiano foi a primeira ditadura de direita que dominou um país europeu e que,
em seguida, todos os movimentos análogos encontraram uma espécie de arquétipo
comum no regime de Mussolini.
O fascismo italiano foi o primeiro
a criar uma liturgia militar, um folclore e até mesmo um modo de vestir-se —
conseguindo mais sucesso no exterior que Armani, Benetton ou Versace. Foi
somente nos anos 1930 que surgiram movimentos fascistas na Inglaterra, com
Mosley, e na Letônia, Estônia, Lituânia, Polônia, Hungria, Romênia, Bulgária,
Grécia, Iugoslávia, Espanha, Portugal, Noruega e até na América do Sul, para
não falar da Alemanha. Foi o fascismo italiano que convenceu muitos líderes
liberais europeus de que o novo regime estava realizando interessantes reformas
sociais, capazes de fornecer uma alternativa moderadamente revolucionária à
ameaça comunista.
Todavia, a prioridade histórica
não me parece ser uma razão suficiente para explicar por que a palavra
“fascismo” tornou-se uma sinédoque, uma denominação pars pro toto para
movimentos totalitários diversos. Não adianta dizer que o fascismo continha em
si todos os elementos dos totalitarismos sucessivos, por assim dizer, em
“estado quintessencial”. Ao contrário, o fascismo não possuía nenhuma
quintessência e sequer uma só essência. O fascismo era um totalitarismo
fuzzy[1]. O fascismo
não era uma ideologia monolítica, mas antes uma colagem de diversas ideais
políticas e filosóficas, uma colmeia de contradições. É possível conceber um
movimento totalitário que consiga juntar monarquia e revolução, exército real e
milícia pessoal de Mussolini, os privilégios concedidos à Igreja e uma educação
estatal que exaltava a violência e o livre mercado?
O partido fascista nasceu
proclamando sua nova ordem revolucionária, mas era financiado pelos
proprietários de terras mais conservadores, que esperavam uma contrarrevolução.
O fascismo do começo era republicano e sobreviveu durante vinte anos
proclamando sua lealdade à família real, permitindo que um “duce” puxasse
as cordinhas de um “rei”, a quem ofereceu até o título de “imperador”. Mas
quando, em 1943, o rei despediu Mussolini, o partido reapareceu dois meses
depois, com a ajuda dos alemães, sob a bandeira de uma república “social”,
reciclando sua velha partitura revolucionária, enriquecida de acentuações quase
jacobinas.
Existiu apenas uma arquitetura
nazista, apenas uma arte nazista. Se o arquiteto nazista era Albert Speer, não
havia lugar para Mies van der Rohe. Da mesma maneira, sob Stalin, se Lamarck
tinha razão, não havia lugar para Darwin. Ao contrário, existiram certamente
arquitetos fascistas, mas ao lado de seus pseudocoliseus surgiram também os
novos edifícios inspirados no moderno racionalismo de Gropius.
Não houve um Zdanov fascista. Na
Itália existiam dois importantes prêmios artísticos: o Prêmio Cremona era
controlado por um fascista inculto e fanático como Farinacci, que encorajava
uma arte propagandista (recordo-me de quadros intitulados Ascoltando all radio
un discorso del Duce ou Stati mentali creati dal Fascismo); e o Prêmio Bergamo,
patrocinado por um fascista culto e razoavelmente tolerante como Bottai, que
protegia a arte pela arte e as novas experiências da arte de vanguarda que, na
Alemanha, haviam sido banidas como corruptas, criptocomunistas, contrárias ao
Kitsch nibelúngico, o único aceito.
O poeta nacional era D'Annunzio,
um dândi que na Alemanha ou na Rússia teria sido colocado diante de um pelotão
de fuzilamento. Foi alçado à categoria de vate do regime pro seu nacionalismo e
seu culto do heroísmo — com o acréscimo de grandes doses de decadentismo
francês.
Tomemos o futurismo. Deveria ter
sido considerado um exemplo de entartete Kunst, assim como o expressionismo, o
cubismo, o surrealismo. Mas os primeiros futuristas italianos eram
nacionalistas, favoreciam por motivos estéticos a participação da Itália na Primeira
Guerra Mundial, celebravam a velocidade, a violência, o risco e, de certa
maneira, estes aspectos pareciam próximos ao culto fascista da juventude.
Quando o fascismo identificou-se com o império romano e redescobriu as
tradições rurais, Marinetti (que proclamava que um automóvel era mais belo que
a Vitória de Samotrácia e queria inclusive matar o luar) foi nomeado membro da
Accademia d'Italia, que tratava o luar com grande respeito.
Muitos dos futuros membros da
Resistência, e dos futuros intelectuais do futuro Partido Comunista, foram
educados no GUF, a associação fascista dos estudantes universitários, que
deveria ser o berço da nova cultura fascista. Esses clubes tornaram-se uma
espécie de caldeirão intelectual em que circulavam novas ideias sem nenhum
controle ideológico real, não tanto porque os homens de partido fossem
tolerantes, mas porque poucos entre eles possuíam os instrumentos intelectuais
para controlá-los.
No curso daqueles vinte anos, a
poesia dos herméticos representou uma reação ao estilo pomposo do regime: a
estes poetas era permitido elaborar seus protestos literários dentro da torre
de marfim. O sentimento dos herméticos era exatamente o contrário do culto
fascista do otimismo e do heroísmo. O regime tolerava esta distensão evidente,
embora socialmente imperceptível, porque não prestava atenção suficiente ao um
jargão tão obscuro.
O que não significa que o
fascismo italiano fosse tolerante. Gramsci foi mantido na prisão até a morte,
Matteotti e os irmãos Rosselli foram assassinados, a liberdade de imprensa
suspensa, os sindicatos desmantelados, os dissidentes políticos confinados em
ilhas remotas, o poder legislativo tornou-se pura ficção e o executivo (que
controlava o judiciário, assim como a mídia) emanava diretamente as novas leis,
entre as quais a da defesa da raça (apoio formal italiano ao Holocausto).
A imagem incoerente que descrevi
não era devida à tolerância: era um exemplo de desconjuntamento político e
ideológico. Mas era um “desconjuntamento ordenado”, uma confusão estruturada. O
fascismo não tinha bases filosóficas, mas do ponto de vista emocional era
firmemente articulado a alguns arquétipos.
Chegamos agora ao segundo ponto
de minha tese. Existiu apenas um nazismo, e não podemos chamar de “nazismo” o
falangismo hipercatólico de Franco, pois o nazismo é fundamentalmente pagão,
politeísta e anticristão, ou não é nazismo. Ao contrário, pode-se jogar com o
fascismo de muitas maneiras, e o nome do jogo não muda. Acontece com a noção de
“fascismo” aquilo que, segundo Wittgenstein, acontece com a noção de “jogo”. Um
jogo pode ser ou não competitivo, pode envolver uma ou mais pessoas, pode
exigir alguma habilidade particular ou nenhuma, pode envolver dinheiro ou não.
Os jogos são uma série de atividades diversas que apresentam apenas alguma
“semelhança de família”:
1 - 2 - 3 - 4
abc bcd cde def
abc bcd cde def
Suponhamos que exista uma série
de grupos políticos. O grupo 1 é caracterizado pelos aspectos abc, o grupo 2,
pelos aspectos bcd e assim por diante. 2 é semelhante a 1 na medida em que têm
dois aspectos em comum. 3 é semelhante a 2 e 4 e é semelhante a 1 (têm em comum
o aspecto c). O caso mais curioso é dado pelo 4, obviamente semelhante a 3 e a
2, mas sem nenhuma característica em comum com 1. Contudo, em virtude da
ininterrupta série de decrescentes similaridades entre 1 e 4, permanece, por
uma espécie de transitoriedade ilusória, um ar de família entre 4 e 1.
O termo “fascismo” adapta-se a
tudo porque é possível eliminar de um regime fascista um ou mais aspectos, e
ele continuará sempre a ser reconhecido como fascista. Tirem do fascismo o
imperialismo e teremos Franco ou Salazar; tirem o colonialismo e teremos o
fascismo balcânico. Acrescentem ao fascismo italiano um anticapitalismo radical
(que nunca fascinou Mussolini) e teremos Ezra Pound. Acrescentem o culto da
mitologia céltica e o misticismo do Graal (completamente estranho ao fascismo
oficial) e teremos um dos mais respeitados gurus fascistas, Julios Evola.
A despeito dessa confusão,
considero possível indicar uma lista de características típicas daquilo que eu
gostaria de chamar de “Ur-Fascismo”, ou “fascismo eterno”. Tais características
não podem ser reunidas em um sistema; muitas se contradizem entre si e são
típicas de outras formas de despotismo ou fanatismo. Mas é suficiente que uma
delas se apresente para fazer com que se forme uma nebulosa fascista.
1. A primeira
característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição. O tradicionalismo é
mais velho que o fascismo. Não somente foi típico do pensamento contra
reformista católico depois da Revolução Francesa, mas nasceu no final da idade
helenística como uma reação ao racionalismo grego clássico.
Na bacia do Mediterrâneo, povos de religiões diversas (todas aceitas com indulgência pelo Panteon romano) começaram a sonhar com uma revelação recebida na aurora da história humana. Essa revelação permaneceu longo tempo escondida sob o véu de línguas então esquecidas. Havia sido confiada aos hieróglifos egípcios, às runas dos celtas, aos textos sacros, ainda desconhecidos, das religiões asiáticas.
Essa nova cultura tinha que ser sincretista. “Sincretismo” não é somente, como indicam os dicionários, a combinação de formas diversas de crenças ou práticas. Uma combinação assim deve tolerar contradições. Todas as mensagens originais contêm um germe de sabedoria e, quando parecem dizer coisas diferentes ou incompatíveis, é apenas porque todas aludem, alegoricamente, a alguma verdade primitiva.
Como consequência, não pode existir avanço do saber. A verdade já foi anunciada de uma vez por todas, e só podemos continuar a interpretar sua obscura mensagem. É suficiente observar o ideário de qualquer movimento fascista para encontrar os principais pensadores tradicionalistas. A gnose nazista nutria-se de elementos tradicionalistas, sincretistas ocultos. A mais importante fonte teórica da nova direita italiana Julius Evola, misturava o Graal com os Protocolos dos Sábios de Sião, a alquimia com o Sacro Império Romano. O próprio fato de que, para demonstrar sua abertura mental, a direita italiana tenha recentemente ampliado seu ideário juntando De Maistre, Guenon e Gramsci é uma prova evidente de sincretismo.
Se remexerem nas prateleiras que nas livrarias americanas trazem a indicação “New Age”, irão encontrar até mesmo Santo Agostinho e, que eu saiba, ele não era fascista. Mas o próprio fato de juntar Santo Agostinho e Stonehenge, isto é um sintoma de Ur-Fascismo.
2. O tradicionalismo implica
a recusa da modernidade. Tanto os fascistas como os nazistas adoravam a
tecnologia, enquanto os tradicionalistas em geral recusam a tecnologia como
negação dos valores espirituais tradicionais. Contudo, embora o nazismo tivesse
orgulho de seus sucessos industriais, seu elogio da modernidade era apenas o
aspecto superficial de uma ideologia baseada no “sangue” e na “terra” (Blut und
Boden). A recusa do mundo moderno era camuflada como condenação do modo de vida
capitalista, mas referia-se principalmente à rejeição do espírito de 1789 (ou
1776, obviamente). O iluminismo, a idade da Razão eram vistos como o início da
depravação moderna. Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode ser definido como
“irracionalismo”.
3. O irracionalismo depende
também do culto da ação pela ação. A ação é bela em si, portanto, deve ser
realizada antes de e sem nenhuma reflexão. Pensar é uma forma de castração. Por
isso, a cultura é suspeita na medida em que é identificada com atitudes
críticas. Da declaração atribuída a Goebbels (“Quando ouço falar em cultura,
pego logo a pistola”) ao uso frequente de expressões como “Porcos
intelectuais”, “Cabeças ocas”, “Esnobes radicais”, “As universidades são um
ninho de comunistas”, a suspeita em relação ao mundo intelectual sempre foi um
sintoma de Ur-Fascismo. Os intelectuais fascistas oficiais estavam empenhados
principalmente em acusar a cultura moderna e a inteligência liberal de abandono
dos valores tradicionais.
4. Nenhuma forma de
sincretismo pode aceitar críticas. O espírito crítico opera distinções, e
distinguir é um sinal de modernidade. Na cultura moderna, a comunidade
científica percebe o desacordo como instrumento de avanço dos conhecimentos.
Para o Ur-Fascismo, o desacordo é traição.
5. O desacordo é, além
disso, um sinal de diversidade. O Ur-Fascismo cresce e busca o consenso
desfrutando e exacerbando o natural medo da diferença. O primeiro apelo de um
movimento fascista ou que está se tornando fascista é contra os intrusos. O
Ur-Fascismo é, portanto, racista por definição.
6. O Ur-Fascismo provém da
frustração individual ou social. O que explica por que uma das características
dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas,
desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política, assustadas pela
pressão dos grupos sociais subalternos. Em nosso tempo, em que os velhos
“proletários” estão se transformando em pequena burguesia (e o lumpesinato se
auto exclui da cena política), o fascismo encontrará nessa nova maioria seu
auditório.
7. Para os que se vêem
privados de qualquer identidade social, o Ur-Fascismo diz que seu único
privilégio é o mais comum de todos: ter nascido em um mesmo país. Esta é a
origem do “nacionalismo”. Além disso, os únicos que podem fornecer uma
identidade às nações são os inimigos. Assim, na raiz da psicologia Ur-Fascista
está a obsessão do complô, possivelmente internacional. Os seguidores têm que
se sentir sitiados. O modo mais fácil de fazer emergir um complô é fazer apelo
à xenofobia. Mas o complô tem que vir também do interior: os judeus são, em
geral, o melhor objetivo porque oferecem a vantagem de estar, ao mesmo tempo,
dentro e fora. Na América, o último exemplo de obsessão pelo complô foi o livro The
New World Order, de Pat Robertson.
8. Os adeptos devem
sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo. Quando eu
era criança ensinavam-me que os ingleses eram o “povo das cinco refeições”:
comiam mais frequentemente que os italianos, pobres mas sóbrios. Os judeus são
ricos e ajudam-se uns aos outros graças a uma rede secreta de mútua
assistência. Os adeptos devem, contudo, estar convencidos de que podem derrotar
o inimigo. Assim, graças a um contínuo deslocamento de registro retórico, os
inimigos são, ao mesmo tempo, fortes demais e fracos demais. Os fascismos estão
condenados a perder suas guerras, pois são constitutivamente incapazes de
avaliar com objetividade a força do inimigo.
9. Para o Ur-Fascismo não há
luta pela vida, mas antes “vida para a luta”. Logo, o pacifismo é conluio com o
inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente. Contudo, isso
traz consigo um complexo de Armagedon: a partir do momento em que os inimigos
podem e devem ser derrotados, tem que haver uma batalha final e, em seguida, o
movimento assumirá o controle do mundo. Uma solução final semelhante implica
uma sucessiva era de paz, uma idade de Ouro que contestaria o princípio da
guerra permanente. Nenhum líder fascista conseguiu resolver essa
contradição.
10. O elitismo é um aspecto
típico de qualquer ideologia reacionária, enquanto fundamentalmente
aristocrática. No curso da história, todos os elitismos aristocráticos e
militaristas implicaram o desprezo pelos fracos. O Ur-Fascismo não pode deixar
de pregar um “elitismo popular”. Todos os cidadãos pertencem ao melhor povo do
mundo, os membros do partido são os melhores cidadãos, todo cidadão pode (ou
deve) tornar-se membro do partido. Mas patrícios não podem existir sem plebeus.
O líder, que sabem muito em que seu poder não foi obtido por delegação, mas
conquistado pela força, sabe também que sua força baseia-se na debilidade das
massas, tão fracas que têm necessidade e merecem um “dominador”. No momento em
que o grupo é organizado hierarquicamente (segundo um modelo militar), qualquer
líder subordinado despreza seus subalternos e cada um deles despreza, por sua
vez, os seus subordinados. Tudo isso reforça o sentido de elitismo de
massa.
11. Nesta perspectiva, cada
um é educado para tornar-se um herói. Em qualquer mitologia, o “herói” é um ser
excepcional, mas na ideologia Ur-Fascista o heroísmo é a norma. Este culto do
heroísmo é estreitamente ligado ao culto da morte: não é por acaso que o mote
dos falangistas era: “Viva la muerte!” À gente normal diz-se que a
morte é desagradável, mas é preciso enfrentá-la com dignidade; aos crentes,
diz-se que é um modo doloroso de atingir a felicidade sobrenatural. O herói
Ur-Fascista, ao contrário, aspira à morte, anunciada como a melhor recompensa
para uma vida heroica. O herói Ur-Fascista espera impacientemente pela morte. E
sua impaciência, é preciso ressaltar, consegue na maior parte das vezes levar
os outros à morte.
12. Como tanto a guerra
permanente como o heroísmo são jogos difíceis de jogar, o Ur-Fascista transfere
sua vontade de poder para questões sexuais. Esta é a origem do machismo (que
implica desdém pelas mulheres e uma condenação intolerante de hábitos sexuais
não-conformistas, da castidade à homossexualidade). Como o sexo também é um
jogo difícil de jogar, o herói Ur-Fascista joga com as armas, que são seu Ersatz
fálico: seus jogos de guerra são devidos a uma inveja pênis permanente.
13. O Ur-Fascismo baseia-se
em um “populismo qualitativo”. Em uma democracia, os cidadãos gozam de direitos
individuais, mas o conjunto de cidadãos só é dotado de impacto político do
ponto de vista quantitativo (as decisões da maioria são acatadas). Para o
Ur-Fascismo os indivíduos enquanto indivíduos não têm direitos e “o povo” é
concebido como uma qualidade, uma entidade monolítica que exprime “a vontade
comum”. Como nenhuma quantidade de seres humanos pode ter uma vontade comum, o
líder apresenta-se como seu intérprete. Tendo perdido seu poder de delegar, os
cidadãos não agem, são chamados apenas pars pro toto, para assumir o papel de
povo. O povo é, assim, apenas uma ficção teatral. Para ter um bom exemplo de
populismo qualitativo, não precisamos mais da Piazza Venezia ou do estádio de
Nuremberg.
Em nosso futuro desenha-se um populismo qualitativo TV ou internet, no qual a resposta emocional de um grupo selecionado de cidadãos pode ser apresentada e aceita como a “voz do povo”. Em virtude de seu populismo qualitativo, o Ur-Fascismo deve opor-se aos “pútridos” governos parlamentares. Uma das primeiras frases pronunciadas por Mussolini no Parlamento italiano foi:“Eu poderia ter transformado esta assembleia surda e cinza em um acampamento para meus regimentos”. De fato, ele logo encontrou alojamento melhor para seus regimentos e pouco depois liquidou o Parlamento. Cada vez que um político põe em dúvida a legitimidade do Parlamento por não representar mais a “voz do povo”, pode-se sentir o cheiro de Ur-Fascismo.
14. O Ur-Fascismo fala a
“novilíngua”. A “novilíngua” foi inventada por Orwell em 1984, como língua
oficial do Ingsoc, o Socialismo Inglês, mas certos elementos de Ur-Fascismo são
comuns a diversas formas de ditadura. Todos os textos escolares nazistas ou
fascistas baseavam-se em um léxico pobre e em uma sintaxe elementar, com o fim
de limitar os instrumentos para um raciocínio complexo e crítico. Devemos,
porém estar prontos a identificar outras formas de novilíngua, mesmo quando
tomam a forma inocente de um talk-show popular.
Depois de indicar os arquétipos
possíveis do Ur-Fascismo, permitam-me concluir. Na manhã de 27 de julho de 1943
foi-me dito que, segundo informações lidas na rádio, o fascismo havia caído e
Mussolini tinha sido feito prisioneiro. Minha mãe mandou-me comprar o jornal.
Fui ao jornaleiro mais próximo e vi que os jornais estavam lá, mas os nomes
eram diferentes. Além disso, depois de uma breve olhada nos títulos, percebi
que cada jornal dizia coisas diferentes. Comprei um, ao acaso, e li uma
mensagem impressa na primeira página, assinada por cinco ou seis partidos
políticos como Democracia Cristã, Partido Comunista, Partido Socialista,
Partido de Ação, Partido Liberal. Até aquele momento pensei que só existisse um
partido em todas as cidades e que na Itália só existisse, portanto, o Partido
Nacional Fascista.
Eu estava descobrindo que, no meu
país, podiam existir diversos partidos ao mesmo tempo. E não só isso: como eu
era um garoto esperto, logo me dei conta de que era impossível que tantos
partidos tivessem aparecido de um dia para o outro. Entendi assim que eles já
existiam como organizações clandestinas.
A mensagem celebrava o fim da
ditadura e o retorno à liberdade: liberdade de palavra, de imprensa, de
associação política. Estas palavras, “liberdade”, “ditadura” — Deus meu —, era
a primeira vez em toda a minha vida que eu as lia. Em virtude dessas novas
palavras renasci como homem livre ocidental.
Devemos ficar atentos para que o
sentido dessas palavras não seja esquecido de novo. O Ur-Fascismo ainda está ao
nosso redor, às vezes em trajes civis. Seria muito confortável para nós se
alguém surgisse na boca de cena do mundo para dizer: “Quero reabrir Auschwitz,
quero que os camisas-negras desfilem outra vez pelas praças italianas!”. Ai de
mim, a vida não é fácil assim! O Ur-Fascismo pode voltar sob as vestes mais
inocentes. Nosso dever é desmascará-lo e apontar o indicador para cada uma de
suas novas formas — a cada dia, em cada lugar do mundo. Cito ainda as palavras
de Roosevelt: “Ouso dizer que, se a democracia americana parasse de
progredir como uma força viva, buscando dia e noite melhorar, por meios
pacíficos, as condições de nossos cidadãos, a força do fascismo cresceria em
nosso país” (4 de novembro de 1938). Liberdade, liberação são uma tarefa
que não acaba nunca. Que seja este o nosso mote: “Não esqueçam”.
E permitam-me acabar com uma
poesia de Franco Fortini:
Na amurada da ponte
A cabeça dos enforcados
Na água da fonte
A baba dos enforcados
No calçamento do mercado
As unhas dos fuzilados
Sobre a grama seca do prado
Os dentes dos fuzilados
Morder o ar morder as pedras
Nossa carne não é mais de homens
Morder o ar morder as pedras
Nosso coração não é mais de homens
Mas lemos nos olhos dos mortos
E sobre a terra a liberdade havemos de fazer
Mas estreitaram-na nos punhos os mortos
A justiça que se há de fazer.
Umberto Eco, O Fascismo Eterno,
in: Cinco Escritos Morais | Tradução: Eliana Aguiar, Editora
Record, Rio de Janeiro, 2002.
[1] Usado atualmente em lógica para
designar conjuntos “esfumados”, de contornos imprecisos, o termo fuzzy poderia
ser traduzido como “esfumado”, “confuso”, “impreciso”, “desfocado”.
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