José dos Remédios | O
País | opinião
O ser humano não morre quando o
seu coração deixa de bater
O ser humano morre quando, de alguma forma, deixa de se sentir importante
- in O vendedor de sonhos,
Jayme Monjardim
Há 31 anos, Ungulani Ba Ka Khosa
estreou-se em livro, num período em que a literatura moçambicana passava,
eventualmente, por um dos melhores momentos até aqui. Na década de 80, foi
lançado o primeiro concurso literário do país, foi criada a Associação dos
Escritores Moçambicanos (AEMO), e, enfim, foi lançada a primeira revista
literária moçambicana pós-independência, a Charrua, de que o nosso
escritor é co-fundador. Este foi um momento de ouro, que, inclusive, contribuiu
para a afirmação de uma escrita comprometida com a estética, por nela existir,
quiçá, os (des)equilíbrios cruciais à literatura. É neste contexto de
reinvenção de uma arte, num país recém-nascido, que Ba Ka Khosa ousa
apresentar-se em obra, depois de muito publicar na imprensa. Nessa altura,
tinha 30 anos de idade e havia vivido em todas as regiões de Moçambique.
E então, o livro escolhido para a
primeira aparição foi Ualalapi, colectânea de contos, para uns, romance,
para muitos, e novela, para os mais centristas. Neste livro, um dos dois que
constitui Gungunhana,
obra ora lançada pela editora Kapulana, Ungulani percorre os labirintos da
história, e, fugaz, aldraba a morte, retirando nela um personagem controverso
(ora herói, por ter travado toda uma luta contra o regime colonial português,
ora vilão, por tanto ter liderado ofensivas contra os chopes, uma etnia do
Sul de Moçambique): Gungunhana/ Ngungunhane. Ao ficcionar a vida do imperador
de Gaza, homem extremamente violento, Khosa constrói um cenário maquiavélico,
que ao tirano permite atingir o poder sem ameaças de o perder, delegando, por
isso, a morte do seu irmão, Mafemane, a Ualalapi.
A partir dos conflitos, da
ganância e dos jogos de interesse instituídos na narrativa, Ungulani
introduz-nos no raciocínio de um ditador que, à imagem de tantos outros de terno e
gravata, não medem consequências no longo percurso ao trono. Por isso, esta é
uma história actual e com muitos anos de vida.
O segundo livro que compõe a obra Gungunhana é
intitulado As mulheres do imperador, na qual temos um narrador didático
como cicerone no prosseguimento dos caminhos trilhados pelas rainhas de Gaza,
na desnecessária viagem que termina com um exílio delas na sua terra, mas longe
da sua gente. Se Ualalapi, essencialmente, ergue e derroca um império
nguni, essa etnia de Ngungunhane, As mulheres do imperador é mais uma
história além das peripécias que ditaram o fim de um reinado. Esta história
produz-se na viagem pelo Sul de Moçambique, por Portugal, São Tomé e, mais
profundo, pelas crenças, dores, desassossegos e sentimentos dessas rainhas
pretas, desabitadas de si mesmas por terem conquistado a preferência de
Ngungunhane. Também por isso, dá-se nesta ficção a grave degradação da
personagem. Mas comecemos pelo primeiro livro.
Em Ualalapi, temos pelo
menos dois momentos em que a degradação da personagem acontece. No primeiro, é
Damboia, tia do imperador, quem está no centro das atenções, quando morre ainda
viva, vítima de uma menstruação de três meses. Devido ao cheiro nauseabundo aí
causado, Damboia perde poder e influência, quando os seus movimentos ficam condicionados
ao átrio domiciliar. A linguaruda, que chama cães aos súbditos, enferma, perde
a capacidade de falar e é invadida por loucura: “Começou a andar de gatas e a
trepar as paredes da casa como um réptil em desespero. Durante
a noite uivava como os cães” (p. 48).
Num segundo momento, a degradação
da personagem, em Ualalapi, acontece quando o imperador, já nas mãos dos
portugueses, profere o seu último discurso ao seu povo. Sem poder nenhum,
Ngungunhane transforma-se numa entidade banal, ridícula, deprimida e cheia de
fel. Destarte, o outrora poderoso imperador vira um objecto falante, prémio de
guerra, conduzido, na verdade, não para um exílio, mas para um museu em que ele
é a síntese do passado.
Em As mulheres do
imperador essa degradação continua, quer em Ngungunhane quer nas suas
esposas. No caso do “leão de Gaza”, a situação é agravada porque, arrancado da
sua terra com as sete das tantas mulheres que possui, em Portugal, não fica nem
com uma sequer, um verdadeiro ultraje e castigo para quem tanto preza o calor
feminino. Além disso, mesmo tendo-se recusado a converter-se à religião dos
brancos, já dominado, o imperador é baptizado, passando a ter um nome
português. Morre triste e humilhado.
Não obstante, separadas do homem,
as rainhas de Gaza, igualmente, experimentam a derradeira condição do marido.
Logo, com a excepção de Namatuco, tornam-se vulneráveis, passando a comer peixe
e a desejarem ser amarfanhadas pelos braços dos homens. E o facto de Namatuco
ser a mais sisuda, não a impede de se tornar uma personagem amarga, pois,
desterrada de Moçambique, perde o contacto com os seus espíritos, daí a
incapacidade de enxergar o futuro.
Portanto, este Gungunhana encerra
nas suas linhas uma preocupação estética alicerçada a uma história que se vai
diluindo. Esta é uma porta de entrada para quem se preocupa com o passado e com
o presente de Moçambique. E faz sentido o livro ser publicado no Brasil, afinal
em causa está o conhecimento sobre a humanidade, que não se esgota na fronteira
dos nossos pés, que nos faz proprietários da nossa própria voz. A degradação da
personagem manifesta em Gungunhana também é nossa, por aceitarmos ser
parte de uma história cujos protagonistas são os narradores do esquecimento,
esses que nos afastam da nossa terra e das nossas particularidades.
Maputo, 20 de outubro de 2018
*Texto inicialmente publicado
pela editora Kapulana do Brasil
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