Poucas centenas de pessoas
aderiram a um protesto que juntou muitos milhares nas redes sociais. O que
falhou parece óbvio, explicam os organizadores. Mas os tempos estão de feição
para novas tentativas
Quando os planos da realização
televisiva se abrem, a realidade aumenta. Em plano fechado, vêm-se caras,
ombros, olhos com raiva. Quando as câmaras mostram o contexto - por exemplo, a
Praça do Marquês do Pombal, em Lisboa, com a sua estátua e as duas rotundas -
vê-se melhor a situação. Trinta ou quarenta cidadãos, vestindo coletes
amarelos, tentam cortar o trânsito. Uns sentam-se no chão, outros empurram a
polícia, outros gritam "vergonha".
À volta desta manifestação, o
dobro, ou o triplo, de polícias, de mãos dadas, observam o protesto que
prometia "parar Portugal" mas não chegou a ter expressão, em nenhum
dos 25 lugares escolhidos pela organização.
Esta versão portuguesa dos
"coletes amarelos" nasceu nas redes sociais - e foi lá que começou a
definhar. Ainda não eram 10 horas e já o fracasso levava os organizadores a
declarar que "o povo é covarde", usando as teclas temerárias do
WhatsApp. O resto das redes sociais ia gozando a situação com aquele sarcasmo
habitual nestas situações. O trânsito está melhor, gracejavam uns. Outros
partilhavam o vídeo de Idris, jogador de futebol do Boavista, que vestiu um
colete amarelo para que os manifestantes o deixassem passar o cordão que o
separava do treino da equipa, no Porto.
O desânimo dos organizadores
"Pá, o pessoal teve
medo", conclui Maria João Oliveira, a motorista do Montijo que se tornou
uma das (poucas) vozes do movimento que aceitaram dar a cara e falar aos
jornalistas.
Maria João entrou na organização
do protesto quando esta já estava em marcha, sendo adicionada como
administradora do evento inicial pelo grupo do Bombarral. Acontece que, no
fim-de-semana, o grupo desmobilizou e o evento - que contava com cerca de 50 mil
adesões - acabou por ser eliminado, o que valeu ao Facebook acusações de
censura. Foi a mesma Maria João que publicou um vídeo, no sábado,
explicando que os manifestantes em causa nada tinham a ver com a
extrema-direita ou especificamente com o PNR. Mas nessa altura já era do
domínio público que havia movimentos infiltrados, ou que vários elementos da
organização do protesto partilhavam nas suas páginas pessoais sites de
movimentos extremistas, memes alusivos a Salazar ou ao tempo do fascismo. E
essa terá sido uma das causas para afastar deste protesto quem genuinamente
pensava juntar-se e manifestar-se pelo aumento do salário mínimo, pelo fim da
corrupção na classe política, por mais justiça social.
Entre os diversos grupos de
WhatsApp destaca-se o dos "coletes vermelhos", que ameaçavam nos
últimos dias "entrar em ação no dia 22 se no dia 21 os coletes amarelos
não vingarem", como parece ser o caso. E é aí que reina a maior desilusão.
O grupo tem cerca de 50 membros, todos furiosos com o falhanço.
No Bombarral, onde tudo começou -
como o DN tem vindo a reportar - o grupo acabou por se desmembrar, com a saída
do principal mentor. Filipe Ferreira, o cavaleiro tauromáquico que decidiu
criar o evento depois de pagar o IMI, saiu do grupo no domingo passado, acusado
de ter prestado declarações ao DN.
Claques, nacionalistas e lesados
do BES
No Porto, alguns dos
manifestantes acreditam que é preciso continuar. "Vontade há, mas era
preciso as autoridades baixarem a guarda. É muita polícia", disse ao DN
Luís Pereira, um dos mais ativos a liderar a marcha com pouco mais de 100
pessoas que seguiu do nó de Francos, local inicial da concentração, até à
Avenida dos Aliados, atravessando a cidade com a PSP a fazer uma caixa de
segurança em volta do grupo. Luís tem experiência em "assumir um
cortejo destes", já que integra a claque do Leixões. De resto, os cânticos
futebolísticos ecoaram logo cedo e no grupo de coletes amarelos havia ainda,
segundo Luís Pereira, elementos dos Super-Dragões e de claques do Boavista. "Quando
os grupos das claques se unirem todos, ninguém vai parar este movimento",
antevê.
Carminda Silva, já na idade de
reforma, também fez o percurso a pé pelo Porto. Viajou de Esposende e resumiu
de forma positiva a iniciativa. "Para primeiro dia foi muito bom",
diz a mulher que "há cinco anos anda na luta". É uma das lesadas
do BES e o primeiro motivo que aponta para ali estar é esse: "Fui roubada
pelos banqueiros que têm uma vida de luxo à custa de quem trabalha." Não
era a única vítima das falências de bancos a estar de colete amarelo. Manuel
Sousa, 67 anos, saiu de casa "em Monção às quatro da manhã para estar no
Porto com uma bandeira francesa na mão. Para quê? "Denunciar a corrupção e
e exigir que me devolvam as minhas economias", explicou o emigrante, com
48 anos de vida em Paris, que é um dos lesados do BES e do BANIF.
Outro caso é o motorista de
transportes internacionais Helder Rios, 41 anos. Viu em França a revolta dos
'gilets jaunes' e depois de ler no Facebook a iniciativa em Portugal aderiu com
entusiasmo. No terreno esperava mais. "Podia estar melhor isto. Muitos não
acreditavam que é possível. Em França, conseguiram", disse. Ao lado,
vários jovens já começavam a entoar cânticos de cariz nacionalista enquanto
agitavam bandeiras nacionais. "Portugal é nosso é há-de ser" era um
dos slogans ouvidos, tal como "Portugal, Portugal" ou, numa variação
curiosa, "O povo unido jamis será vencido".
O vírus da desinformação
Esta foi a primeira experiência -
mas não será com certeza a última - de uma manifestação deste tipo. Quem a
convocou, desta vez, terá concluído que é fácil fazer o mais difícil: criar a
sensação de que vai acontecer e tem significado. As redes sociais já
rivalizam com a televisão enquanto principal meio de acesso à informação dos
portugueses. O Facebook (de longe o mais frequentado), o Twitter e o WhatsApp
são, também, a própria mensagem. Este protesto que juntou poucas centenas de
pessoas em todo o país, esta sexta-feira, 21, agregou mais de 50 mil pessoas
"virtuais". Da mesma forma, a "informação" que os juntou é
aquela que consegue mais impacto entre os milhões de utilizadores das redes: a
que revolta, enraivece, indigna.
Nas páginas anónimas que lideram,
semana após semana, os rankings de partilhas no Facebook, a corrupção, o crime
e a injustiça são quotidianos. Longe dos olhares de muitos - jornalistas,
políticos, analistas - ali se criam e crescem grupos fechados que multiplicam a
raiva, o desespero, o cinismo. "Estado=ladrão" é o resumo deste
programa político crescente, numa faixa usada por dois dos protestantes dos
"coletes amarelos". Basta ler o que lá está, na página do protesto:
mensagens anti-elite, anti-imigração, anti-política.
Muitas destas crenças são falsas.
As "mordomias" dos deputados, por exemplo, que se baseiam na
convicção de que os parlamentares portugueses são dos mais bem pagos da Europa,
é facilmente contrariada pela realidade: os salários dos deputados portugueses
são muito mais baixos (em alguns casos menos de metade...) do que em França,
Chipre, Alemanha, Finlândia, Bélgica, Itália, Irlanda, Áustria, Holanda,
Dinamarca, Luxemburgo, Suécia e Reino Unido.
No início, uma das reivindicações
do movimento era o cancelamento do Pacto Global para uma Migração Segura,
Ordenada e Regular, da ONU, assinado em Marraquexe por António Costa, no início
de dezembro. Para Portugal, os refugiados são um problema tão grave como, por
exemplo, o número de praticantes de saltos de esqui. Durante a crise que abalou
a Europa, chegaram ao país menos de 1700 migrantes. Quase metade saiu,
entretanto, do país.
Mas a forma como estas convicções
alastram é conhecida. Surgem associadas à ideia de que vivemos num
"sistema" dominado por "corruptos", gerido por
"ladrões". O tema é "popular", garante gostos e partilhas,
torna-se "viral", como agora se diz para comparar a difusão destas
mensagens políticas com uma epidemia de gripe.
Há um fundo de verdade neste
mundo de desinformação, como é regra. Há um descontentamento óbvio, mesmo que
não seja o que os criadores deste protesto apresentam. O IVA da eletricidade é
muito alto, de facto. A pobreza, a desigualdade, a precariedade laboral,
existem. O debate político é codificado e muitos dos seus protagonistas parecem
ignorar a forma como são avaliados pelos cidadãos. A "polarização" -
a forma como se tornam irredutíveis as crenças - está no seu auge.
E depois há a rapidez. Os coletes
amarelos de França podem ter começado com a criação de um grupo no Facebook
criado por um emigrante português. Da mesma forma, vários dos manifestantes
franceses participaram na organização do protesto português - lançando ideias
no Facebook e no WhatsApp. O mundo virtual é uma aldeia. E não será por acaso
que surgem, por toda a Europa, no Brasil, nos EUA, nas Filipinas e em tantos
outros lugares, movimentos "populistas", líderes autoritários,
projetos nacionalistas.
Paulo Pena com David Mandim e
Paula Sofia Luz | Diário de Notícias
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