Miguel Guedes* | Jornal de Notícias
| opinião
Apesar da época bastante propícia
a dormências, há quem não admita passar o Natal sem uma boa polémica, numa
espécie de surto que abale as frutas cristalizadas e aqueça o réveillon para o
ano que aí vem.
Um bolo que se transforma em bola
de neve. A nova ministra da Saúde parece ser uma das convivas predilectas
quando pensamos em animação viral para épocas de paz e amor instauradas por
decreto.
Enquanto equaciona "todas as
fórmulas" - caso permaneça o desacordo e a falta de consenso com os
enfermeiros -, Marta Temido não anestesia os outros profissionais da saúde.
Pelo contrário. Abre uma guerra, a corte de bisturi, com os médicos
anestesiologistas à boleia de uma "boca" à velocidade de 500
euros/hora. Surpreendente, não fosse esta ministra a mesma que, poucos dias
antes, pedira desculpa aos enfermeiros após considerar que encetar o diálogo
com a classe grevista seria beneficiar "o criminoso, o infractor".
Por melhores que sejam as intenções da ministra, uma anestesia para contenção
verbal até era coisa para não ter preço.
A justa luta dos enfermeiros vem
de longe e está para durar: os três pré-avisos de greve mantêm-se e são
suportados por recolhas de fundos dentro do sector. A carência de médicos
anestesiologistas é já ancestral: de acordo com os Censos de Anestesiologia do
ano passado, o SNS vivia com 541 médicos a menos. Entre Janeiro e Outubro, o
Infarmed indeferiu 391 pedidos de autorização dos hospitais para a utilização
excepcional de medicamentos inovadores no âmbito oncológico (em absoluto
contraste com os 96 indeferimentos de 2017). Perante tantas doses de realidade
sem sombra de anestesia, porque escolhe esta ministra o caminho da especulação?
A hipotética recusa por parte de um anestesista (requisitado pelo Centro
Hospitalar de Lisboa Central ou por uma empresa de prestação de serviços) em
trabalhar por 500 euros/hora na Maternidade Alfredo da Costa é uma historieta
repleta de dúvidas e insinuações que - mesmo a ser verdade - não passa de um
caso singular com dezenas de justificações.
A greve dos enfermeiros nos
blocos operatórios de cinco hospitais públicos, iniciada a 22 de Novembro, já
adiou entre 5000 a
7000 cirurgias. Tantas pessoas que não podem continuar a ser tratadas com
respostas de suspeição por parte do Estado. É precisamente esta enviesada ideia
de um Estado mau e não protector que potencia a mentira oportunista da falência
do sector público da saúde, tão conveniente para muitos. Convirá mesmo que os
mais altos responsáveis governativos deixem os casos únicos para abraçar os
casos exemplares.
*Músico e jurista
- O autor escreve segundo a antiga
ortografia
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