sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Portugal | A “boca” da ministra


Miguel Guedes* | Jornal de Notícias | opinião

Apesar da época bastante propícia a dormências, há quem não admita passar o Natal sem uma boa polémica, numa espécie de surto que abale as frutas cristalizadas e aqueça o réveillon para o ano que aí vem.

Um bolo que se transforma em bola de neve. A nova ministra da Saúde parece ser uma das convivas predilectas quando pensamos em animação viral para épocas de paz e amor instauradas por decreto.

Enquanto equaciona "todas as fórmulas" - caso permaneça o desacordo e a falta de consenso com os enfermeiros -, Marta Temido não anestesia os outros profissionais da saúde. Pelo contrário. Abre uma guerra, a corte de bisturi, com os médicos anestesiologistas à boleia de uma "boca" à velocidade de 500 euros/hora. Surpreendente, não fosse esta ministra a mesma que, poucos dias antes, pedira desculpa aos enfermeiros após considerar que encetar o diálogo com a classe grevista seria beneficiar "o criminoso, o infractor". Por melhores que sejam as intenções da ministra, uma anestesia para contenção verbal até era coisa para não ter preço.

A justa luta dos enfermeiros vem de longe e está para durar: os três pré-avisos de greve mantêm-se e são suportados por recolhas de fundos dentro do sector. A carência de médicos anestesiologistas é já ancestral: de acordo com os Censos de Anestesiologia do ano passado, o SNS vivia com 541 médicos a menos. Entre Janeiro e Outubro, o Infarmed indeferiu 391 pedidos de autorização dos hospitais para a utilização excepcional de medicamentos inovadores no âmbito oncológico (em absoluto contraste com os 96 indeferimentos de 2017). Perante tantas doses de realidade sem sombra de anestesia, porque escolhe esta ministra o caminho da especulação? A hipotética recusa por parte de um anestesista (requisitado pelo Centro Hospitalar de Lisboa Central ou por uma empresa de prestação de serviços) em trabalhar por 500 euros/hora na Maternidade Alfredo da Costa é uma historieta repleta de dúvidas e insinuações que - mesmo a ser verdade - não passa de um caso singular com dezenas de justificações.

A greve dos enfermeiros nos blocos operatórios de cinco hospitais públicos, iniciada a 22 de Novembro, já adiou entre 5000 a 7000 cirurgias. Tantas pessoas que não podem continuar a ser tratadas com respostas de suspeição por parte do Estado. É precisamente esta enviesada ideia de um Estado mau e não protector que potencia a mentira oportunista da falência do sector público da saúde, tão conveniente para muitos. Convirá mesmo que os mais altos responsáveis governativos deixem os casos únicos para abraçar os casos exemplares.

*Músico e jurista

- O autor escreve segundo a antiga ortografia

Sem comentários:

Mais lidas da semana