terça-feira, 9 de janeiro de 2018

BRASIL| Lambe-Lambe: o fotógrafo da praça

Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite* | Porto Alegre | Brasil
  
Entre as profissões que, ao longo do tempo, foram desaparecendo frente às novas tecnologias, a exemplo do amolador de faca, do consertador de panelas e do realejo, escolhi homenagear, por meio deste texto, a arte dos antigos fotógrafos lambe- lambes.

Inicialmente, esta atividade era associada a imigrantes que eram chamados genericamente de “gregos”, embora houvesse lambe-lambes turcos, armênios ou espanhóis. Em se tratando de um país, como o Brasil, marcado pela diversidade cultural, o ofício de lambe-lambe foi sendo transmitido para aqueles que demostrassem interesse em aprender. A atividade cresceu e passou a fazer parte do cotidiano das praças, ruas e jardins das principais cidades brasileiras. Estes fotógrafos ambulantes começaram a surgir nas primeiras décadas do século 20, exercendo a sua atividade ao ar livre. Procurados para registrarem momentos especiais, ou para tirar retratos para documentos do tipo 3x4, os lambe-lambes se transformaram em figuras tradicionais do cenário urbano.

A ferramenta de trabalho destes antigos fotógrafos era uma caixa de madeira sobre tripé, cujo equipamento tinha a função de bater as chapas e revelá-las ali mesmo. Além de ser utilizada para o registro fotográfico, esta servia também como mostruário, sendo as suas laterais cobertas de fotos. Montada e remontada, com a intuição e a experiência destes profissionais ambulantes, a máquina do lambe-lambe se tratava de um produto caseiro e artesanal, construída com sobras recicladas a partir de um primeiro modelo chamado “Bernardi”. Este parâmetro prevaleceu, ao longo do tempo, no qual cada fotógrafo, de acordo com a sua experiência, imprimiu–lhe uma variação técnica, seja quanto à regulagem da entrada da luz ou em relação às prensas onde obtinha suas cópias, O fundamental no processo é que a dupla função de câmera e laboratório fosse sempre mantida.

 O lambe–lambe e a sua técnica

Após ser batida, a fotografia do lambe-lambe era revelada e copiada dentro do mesmo caixote que sustentava a lente. Na realidade, podemos afirmar que, em seu interior, havia um micro laboratório. Ao entrar na “casaca’ (o pano preto), o fotógrafo obtinha o seu negativo no escuro. Esta rotina era a mesma de um laboratório comum da época, porém numa espaço ínfimo, onde a paciência do fotógrafo  permitia viabilizar, graças à sua destreza, o produto tão esperado pelo seu cliente : a  fotografia.

Após banhar o filme em sua química, ou seja, nos respectivos líquidos –  o revelador e o fixador- o lambe-lambe, num segundo momento, lavava o negativo, secando o mesmo ao vento. Importante que se registre: o início deste milagre se realizava dentro do caixote, procedendo à transferência da imagem para o papel.

O fotógrafo lambe-lambe se adaptava ao reduzido espaço e seguia registrando os rostos. A cópia de seus negativos – sempre com o mesmo formato - era realizada por um sistema idêntico ao dos filmes. A diferença básica residia num micro laboratório, cujo “ampliador” se tratava de um buraco. Tendo a sua abertura em cima do caixote, este poderia ser coberto por um vidro fosco ou papel vermelho, dando a luz da impressão – que era natural - quanto a luz do quarto escuro para o tratamento das fotos. Ao controlar a luz solar que passava por esse buraco, o lambe-lambe demonstrava a sua técnica e sua precisão durante o processo, pois o tempo de exposição era sujeito às múltiplas variações do clima, Este profissional se tornava, por exigência de seu ofício, um autodidata na área da meteorologia. Em teoria, bastava um segundo para a exposição de uma cópia, porém, em meio a árvores e pombos presentes numa praça, esta precisão acabava sofrendo variações. A chuva era a sua adversária principal e o Sol era a garantia do exercício do “seu pão de cada dia”. Em síntese, era preciso ficar de olho nas nuvens para ser um bom retratista.

Origem do nome

Existem algumas versões acerca do termo lambe-lambe, que merecem ser mencionadas.  A mais antiga afirma que o fotógrafo ao tirar a chapa do fixador - naquela época ainda não era usado o filme – a gelatina ficava com algumas partes elevadas, sendo necessário molhar com a saliva para que esta se assentasse. Outra versão - sem dúvida bastante curiosa – tem a sua origem no fato que a pessoa ao buscar o seu serviço, muitas vezes, não tinha um pente para um último “retoque” antes de tirar a sua foto, restando-lhe, assim, molhar os dedos, com a saliva, e passá-los nos cabelos. Uma terceira origem se refere a uma época em que não se usava bicabornato de potássio, então o fotógrafo lambia ou passava a foto no suor do seu braço, visando a dar brilho. Já a ferrotipia é considerada a origem mais viável. Trata-se de um processo que envolvia uma camada de asfalto sobre uma chapa de ferro em torno de 1mm, na qual era aplicada a emulsão. Após a revelação com sulfato de ferro, o fotógrafo lambia a chapa, resultando que a imagem se destacava do fundo preto asfáltico devido à ação do cloreto de sódio presente na saliva.

Tradição x modernidade

Ao desenvolver a sua atividade em espaços públicos, os lambe-lambes foram testemunhas oculares das transformações tecnológicas e do crescimento das cidades que foram tornando o papel do lambe-lambe obsoleto, permanecendo apenas o saudosismo de uma época presente no imaginário das pessoas que compartilharam essas vivências no espaço público da urbe. Profissão legada geralmente por herança e de tradição familiar, era basicamente regida pela intuição e por amor, sendo esta a forma genuína como os lambe-lambes se relacionavam com suas toscas e pesadonas máquinas nas praças, jardins e parques.
  
A partir de 1955, a profissão inicia um processo de decadência frente a vários fatores, como o surgimento de novas tecnologias no campo da fotografia, onde rapidez e qualidade da imagem se tornaram premissas fundamentais para os profissionais da área.

Junto com o aumento populacional e as dificuldades econômicas, praças e jardins públicos passaram a ser frequentados por uma população desocupada e considerada de má índole, gerando a desconfiança e o medo em seus frequentadores que foram se afastando desses locais públicos até então pontos de encontro e de sociabilidades da classe trabalhadora e da própria elite.

A indústria fotográfica ao despejar no mercado as mais variadas máquinas e equipamentos, de fácil manuseio e automáticos, contribuiu de forma incisiva para o desaparecimento destes profissionais, permanecendo apenas a lembrança e o registro histórico graças às pesquisas de incansáveis profissionais ligados à área das Ciências Humanas. O mundo se encontra em pleno domínio da fotografia digital, mas ainda é possível encontrar alguns lambe-lambes - hoje verdadeiras raridades  - como é o caso do fotógrafo lambe-lambe, Daniel Doval, que trabalha em uma praça de Olinda, Pernambuco, e de Varceli Freitas Filho , atualmente com  73 anos, que, por muito  tempo, exerceu este ofício num antigo e tradicional ponto de lazer de Porto Alegre. Trata-se do Chalé da Praça XV, localizado no centro de Porto Alegre, a capital dos gaúchos.

Reconhecimento

Escrito por Ana Maria Machado e publicado em 1974, o livro “Bem do teu tamanho” registra um diálogo da personagem principal, Helena, travado com um fotógrafo Lambe-lambe. No ano de 1984, o Museu de Comunicação Hipólito José da Costa, então sob a direção, à época, do diretor e roteirista cinematográfico Jorge Alberto Furtado, realizou uma exposição em homenagem aos fotógrafos ambulantes, tendo como título “ A arte do fotógrafo lambe-lambe”.

No ano de 2012, a Prefeitura Municipal de Belo Horizonte junto ao IEPHA, concluiu o processo de registro do ofício do fotógrafo lambe-lambe como bem cultural imaterial. Elaborado entre 2008 e 2011, teve três etapas: levantamento preliminar, identificação e documentação. Este reconhecimento foi acompanhado da exposição fotográfica "Fotógrafo lambe-lambe: retratos do ofício em Belo Horizonte", realizada na Casa do Baile.

Em 04 de setembro de 2009, no Rio Grande do Sul, como registrou o jornal Correio do Povo, no dia subsequente, o prefeito em exercício de Porto Alegre, Sebastião Melo, sancionou a lei que concedeu aposentadoria de dois salários mínimos a Varceli Freitas Filho. Ele é último fotógrafo lambe-lambe da Capital, tendo herdado de seu pai a técnica desta tradição. O benefício vitalício é destinado a cidadãos que prestaram relevantes serviços ao município.  O lambe-lambe Varceli ao fotografar sempre diz para os clientes “olha o passarinho”, remetendo ao famoso verso de seu poeta preferido, o alegretense Mario Quintana (1906-1994):”Todos esses que aí estão. Atravancando o meu caminho, Eles passarão… Eu passarinho! (Caderno H. 2 ª edição. São Paulo: Globo, 2006. p.107).

Em 2014, a Zit Editora, visando estimular a criatividade das crianças, trouxe a publico a coleção “Contadores de Histórias”, Dos três livros que compõem a coleção , um trata da figura do lambe-lambe, cujo título é “O lambe-lambe Malaquias” da autoria de Lenice Gomes com ilustrações de Anielizabeth.  

Os lambe-lambes - fotógrafos à la minute - fazem parte do nosso imaginário social, permanecendo viva a sua atividade nas lembranças de quem os conheceu, nas narrativas dos “mais velhos” e nos espaços de preservação de memória, como arquivos e museus.

Vídeo sobre o último fotógrafo lambe-lambe em Porto Alegre / SBT / RS:                          https://www.youtube.com/watch?v=2UdNBEq0cyg  
                                    
*Pesquisador e coordenador do setor de imprensa do Museu de comunicação HJC

 Bibliografia
ÁGUEDA, Abílio Afonso da. O fotógrafo Lambe-Lambe: guardião da memória e cronista visual de uma comunidade. Rio de Janeiro. 2008. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Tese de Doutorado.
XAVIER, Cássia. Recuperando a Fotografia Lambe-lambe. Universidade Senac - São Paulo, 2008. Tese de conclusão de curso.
Folheto da Exposição “A arte do fotógrafo lambe-lambe” / Secretaria de Educação e Cultura / Museu da Comunicação Hipólito José da Costa [s/d]

BRASIL | Reverter o retrocesso


O Brasil retrocede em todas as áreas, suprimindo direitos sociais e concentrando a riqueza na mão dos mais ricos, enquanto a maioria dos cidadãos é penalizada. As medidas anunciadas para 2018 vão agravar ainda mais esse quadro

Liszt Vieira* | Carta Maior

Aumento expressivo no preço do gás de cozinha, da gasolina e na conta de luz. Cortes no salário mínimo, na saúde e redução de investimentos nas universidades. Cortes drásticos na educação, na pesquisa e em toda a área social. Destruição de direitos sociais.

Aumentos de impostos, de um lado. De outro, perdão de dívidas bilionárias de grandes empresas. A isenção de imposto às empresas multinacionais de petróleo totaliza várias centenas de bilhões de reais.

O Brasil retrocede em todas as áreas, suprimindo direitos sociais e concentrando a riqueza na mão dos mais ricos, enquanto a maioria dos cidadãos é penalizada. São os mais pobres que vão pagar a conta da reforma previdenciária que não atinge os ricos, os parlamentares, os juízes nem os militares.

Segundo o Banco Mundial, até o final de 2017 o Brasil teve um aumento de 3,6 milhões de “novos pobres” vivendo na miséria. E a ONU já anunciou que o Brasil está retornando ao Mapa da Fome.

As medidas anunciadas para 2018 vão agravar ainda mais esse quadro. Intensa campanha da mídia aplaude as reformas de interesse do mercado apresentando-as como essenciais ao interesse nacional. O Poder Judiciário, cada vez mais atuante, parece sintonizado com os mesmos interesses. 

O Estado é execrado como fonte de todos os males e a privatização é apresentada como a panaceia que vai tudo resolver. Grande ofensiva da direita busca privatizar tudo o que pode, desde empresas até instituições ambientais ou culturais. Importantes setores da esquerda dão sua contribuição defendendo a privatização do patrimônio público quando invadido pelos sem teto. O caso do Jardim Botânico do Rio de Janeiro é emblemático, ao excluir a sociedade do acesso ao bem privatizado.

A inovação tecnológica é apresentada como produto exclusivo da empresa privada, e o Estado é visto apenas como burocracia indesejável. Poucos sabem que, até há alguns anos, 83% da inovação nos EUA foi financiada com recursos públicos. E a inovação tecnológica se baseia muitas vezes em pesquisas científicas desenvolvidas em instituições públicas. 

A figura abaixo, extraída do livro “O Estado Empreendedor. Desmascarando o mito do setor público vs. setor privado” (Mazzucato, Mariana. Portfolio-Penguin, São Paulo, 2014. p.153), mostra a origem pública dos recursos que financiaram a pesquisa que gerou os produtos da Apple (Ipod, Iphone e Ipad). Por detrás de todas as inovações, encontra-se o financiamento público por parte de órgãos do Estado norteamericano.


A política de Estado Mínimo em vigor no Brasil corta recursos para a pesquisa científica, educação, saúde, meio ambiente, agricultura familiar (que produz alimentos para o mercado interno), transporte etc. Há anos que 30% da receita da Previdência são desviados para pagar os juros da dívida no mercado financeiro, gerando, assim, um déficit artificial.

Nos EUA, Trump retoma a “trickle-down economics” que já havia fracassado no governo Reagan. O corte de impostos para as grandes empresas e o corte de benefícios para a sociedade (na pesquisa, educação, saúde, proteção ambiental etc) vai penalizar duramente a classe trabalhadora e a classe média em geral, e não vai gerar investimento produtivo no país. A grande “fábrica” norte americana está na Ásia, onde a mão de obra é mais barata. As que estão nos EUA se automatizaram e robotizaram, gerando poucos empregos.

O prêmio Nobel de Economia, Joseph Stiglitz, fez uma crítica severa à nova lei tributária dos EUA que torna ainda mais regressivo o sistema tributário americano, aumentando a desigualdade social. A lei recém aprovada reduz consideravelmente os impostos dos mais capazes de pagar (o quinto mais rico) e aumenta os impostos sobre a maioria dos americanos de renda média (O Globo, 4/1/2018, pág.12).

No Brasil, o sistema tributário também é regressivo. E os ricos são poupados. O imposto sobre herança, por exemplo, varia, conforme o Estado, entre 4 e 8%. Nos EUA e na Europa, varia entre 25 e 45%.

Por outro lado, o setor privado não investe na produção, prefere as aplicações financeiras que rendem mais no atual contexto de capitalismo rentista e improdutivo. O domínio absoluto do capital financeiro já aponta para uma nova crise global, provavelmente mais grave do que em 2008. Nesse caso, o Estado poderia ser uma âncora se não for totalmente esvaziado pela atual política econômica neoliberal.


Reverter o grave retrocesso em curso, eis a tarefa grandiosa do governo que vier a ser eleito em novembro de 2018.
* Liszt Vieira - Professor da PUC-Rio

ESTADO ISLÂMICO: O PESADELO CONTINUA


Hassan Hassan*

O sonho do califado desfez-se, mas os extremistas têm uma nova estratégia

O orgulhoso califado terminou, esmagado pelo poderio dos aviões de guerra russos, sírios e estadunidenses, pelas milícias apoiadas pelo Irã, pelas forças curdas e pelos exércitos lançados por Damasco e Bagdá.

Mas, se 2017 viu o fim do sonho do Estado Islâmico de dominar com sua visão distorcida de sociedade ideal, o ano acabou com um sinal poderoso de que sua campanha internacional mortífera contra os muitos povos e religiões que considera inimigos espirituais adquiriu nova energia.

Em 21 de dezembro, uma quinta-feira, dezenas de civis foram mortos em um ataque suicida contra um centro cultural xiita na capital afegã, Cabul. O ataque foi o último de uma série persistente de uma afiliada do EI, que demonstrou resiliência apesar da campanha incansável contra ela nos últimos meses.

Segundo o canal de notícias Amaq, ligado ao EI, três explosões foram detonadas no complexo, que também abriga uma agência de notícias. Depois um homem-bomba se explodiu entre a multidão no centro cultural Tebyan. Pelo menos 41 pessoas morreram e outras 90 ficaram feridas.

O ataque ocorre apesar de uma campanha intensa dos EUA e do Afeganistão para extirpar as ameaças gêmeas que emanam do EI e dos Taleban, especialmente depois que Donald Trump assumiu o cargo, em janeiro de 2017.

Atacar na capital afegã, apesar do aumento da segurança e das medidas militares, também desperta receios sobre a capacidade do grupo de permanecer, mesmo com o colapso do califado que ele havia estabelecido no Iraque e na Síria.

Em abril, os EUA despejaram a “mãe de todas as bombas” sobre uma base do EI no Afeganistão, indicando uma campanha feroz contra o grupo terrorista. Mas essa campanha não conseguiu derrubá-lo. Nos últimos meses, especialistas e autoridades indicaram um esforço bem-sucedido da afiliada do EI de deitar raízes em Cabul e recrutar dezenas de membros locais, inclusive crianças.

No Afeganistão, o EI fez muito com poucos recursos. Na Líbia, por exemplo, o grupo tem centenas de combatentes locais com experiência que remonta aos primeiros anos da Guerra do Iraque e que tiveram um papel vital nas primeiras iniciativas do EI na Síria em 2014. Mas suas fortunas minguaram nos últimos dois anos.

Sua derrota territorial poderia exacerbar outras insurgências se os militantes preencherem as fileiras de afiliadas em outros países.

A afiliada no Afeganistão, em comparação, tem a concorrência dos militantes Taleban que ressurgem com ligações mais profundas com o país, mas conseguiu reforçar sua presença. Os ataques na capital sugerem que o grupo evoluiu com sucesso de uma organização majoritariamente liderada por estrangeiros para uma cada vez mais localizada.

Além de sua persistência no Afeganistão, a natureza do ataque de 21 de dezembro é um prenúncio do que virá conforme o EI perder seu califado no Iraque e na Síria. Em um comunicado sobre o ataque, o canal de mídia do EI afirmou que o centro cultural era financiado e patrocinado pelo Irã.

“O centro é um dos locais mais conhecidos de proselitismo do xiismo no Afeganistão”, acrescentou a declaração. “Jovens afegãos seriam enviados ao Irã para receber estudos acadêmicos pelas mãos de religiosos iranianos.”

O EI tentou impor-se como defensor dos sunitas em toda a região e as palavras escolhidas para seu comunicado destinam-se a passar essa mensagem. O tema sectário provavelmente será o objetivo principal do grupo nos próximos anos, conforme ele recua de um califado para uma insurgência.

A narrativa sectária ajuda o grupo a apresentar uma “ideologia contígua” do Afeganistão à Síria no lugar do califado que parece ter perdido; sua mensagem aos seguidores é que as vítimas do ataque eram potenciais soldados do exército que o Irã está formando em toda parte.

Apresentar-se como a última linha de defesa contra o Irã garantirá que suas operações localizadas tenham um tema geral regional, mesmo perdendo o califado global. Esse foi um tema recorrente desde a sua ascensão em 2014, mas o grupo concentrou-se cada vez mais no sectarismo, não apenas contra os xiitas, mas também contra cristãos e outras minorias religiosas.

O ataque do grupo no interior do Irã em junho destinou-se a alcançar esse objetivo, e ataques que ele pinta como dirigidos contra interesses iranianos, como o de Cabul, servem a um propósito semelhante. Ao fazê-lo, o EI tenta um mercado onde nem a Al-Qaeda nem o Taleban podem competir com o mesmo vigor, pois a retórica desses dois grupos é relativamente menos sectária.

Em outubro, homens-bombas ligados ao grupo mataram pelo menos 57 fiéis em uma mesquita xiita em Cabul. O enfoque sectário do EI torna sua persistência ainda mais perturbadora para o país e a região em geral.

Um dia depois do atentado em Cabul, o grupo também reivindicou a responsabilidade por um tiroteio de militantes contra uma igreja no Cairo, matando mais de dez pessoas, em um de vários ataques que visaram civis e igrejas coptas no país nos últimos anos.

A lição desses ataques é que o grupo ainda pode ser mortífero, apesar de sua retração no Iraque e na Síria. De fato, a perda de território pode até exacerbar insurgências em outros lugares se os militantes fugirem em segurança dos campos de batalha para preencher as fileiras de afiliadas em outros países. Relatos de militantes que escaparam do califado em ruínas surgiram recentemente.

No início de dezembro, por exemplo, a Agência France Presse relatou que combatentes franceses e argelinos viajaram da Síria ao Afeganistão para unir-se ao ramo local do EI. Tendências semelhantes foram relatadas no Egito e na Líbia.

Uma autoridade da União Africana também advertiu em dezembro que muitos dos 6 mil insurgentes que tinham viajado à Síria em 2014 podem estar voltando para casa.

Esses combatentes poderão reabastecer e revitalizar insurgências espalhadas pela região de uma maneira que não poderiam quando o foco do grupo estava em seu núcleo no Iraque e na Síria. As ramificações do EI que surgiram continuavam limitadas em tamanho, e algumas enfraqueceram com a menor oferta de militantes.

Isso poderá mudar quando ex-combatentes saírem da Síria e do Iraque para países da região, onde é mais fácil ligar-se a afiliadas existentes do que se viajassem a seus países natais na Europa ou para a Grã-Bretanha.

O grupo prospera com a polarização, e as minorias religiosas representam alvos fáceis para voltar as pessoas umas contra as outras. Esses alvos também lhe permitem recolocar-se em oposição à Al-Qaeda e outros grupos islâmicos.

Além da estagnação política e de conflitos persistentes, o sectarismo continuará oferecendo ao grupo oportunidades progressivas em uma região com divisões cada vez mais profundas e em meio ao papel crescente do Irã no Oriente Médio.

O grupo espera que a narrativa mantenha sua atração entre os que veem o Irã como o usurpador de suas terras e o poder sectário dominante na região.

A queda territorial do califado poderá reduzir as ameaças ao Ocidente, mas para a região próxima, onde o EI pode movimentar-se com maior facilidade, ele continuará explorando as divisões sociais e a estagnação política para se reagrupar e entrincheirar.

*Hassan Hassan é coautor de Isis: Inside the Army of Terror e bolsista residente no Instituto Tahrir para Política do Oriente Médio.

Carta Capital | em The Observer | Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves.

Na foto: O ataque deixou dezenas de mortos no centro cultural xiita

O projecto francês de reconhecimento do «Rojava»

Thierry Meyssan*

Exemplo de um falso debate, animado por uma televisão e um jornalista que escondem as suas ligações aos auditores, a questão do lugar de julgamento dos jiadistas franceses visa preparar, na realidade, o apagar dos testemunhos sobre o papel militar da França contra a Síria. Sob reserva de aceitação pelos seus aliados, ela prepara o reconhecimento de um Estado de pacotilha, o «Rojava», na base do modelo do «Kosovo».

Presidente francês, Emmanuel Macron, recebeu a 5 de Janeiro de 2018 no Eliseu, o seu homólogo turco, Recep Tayyip Erdoğan.

Do ponto de vista de Ancara, este encontro devia permitir à Turquia reforçar os seus laços com a União Europeia evitando passar pelo seu parceiro tradicional, a Alemanha, com quem as relações estão tensas.

Sobretudo, Ancara desejava realizar acordos com Paris sobre os projectos futuros. O Reino Unido confiou à Turquia a gestão do dispositivo dos jiadistas, que são agora financiados pelo Catar. O Presidente Erdoğan visa dois objectivos de política externa:

- Primeiro, obter o apoio dos nacionalistas kemalistas realizando para tal o juramento nacional do Parlamento Otomano ; razão pela qual o Exército turco ocupa ilegalmente o Norte de Chipre, o Norte da Síria e o Norte do Iraque [1]. 

- Por outro lado, prosseguir as guerras, por jiadistas interpostos, deslocando o centro de combate da Síria para o Corno de África e para a Península Arábica; foi por isso que ele discretamente encaminhou, no decurso dos últimos seis meses, 1.500 soldados para a Somália e 35. 000 para o Catar. Além disso desloca alguns outros para o Sudão e apresta-se para fazer o mesmo para o Djibuti.

Do ponto de vista de Paris, tratava-se de renovar os compromissos mútuos, secretamente assumidos, em 2011, por Juppé e Davutoğlu com a concordância de Londres, afim de criar nomeadamente um novo Estado no Norte da Síria para onde a Turquia possa expulsar os seus Curdos [2]. Este acordo havia sido rompido unilateralmente pelo Presidente Hollande, após a batalha de Aïn al-Arab (dita «Kobane» segundo a terminologia da OTAN), provocando uma viva reacção turca : os atentados perpetrados pelo Daesh(EI) a 13 de Novembro de 2015 [3]. O que não é necessariamente contrário às opções actuais do Reino Unido e da Turquia.

Conhecendo as reticências do Parlamento a uma tal aventura, o Presidente Macron escolheu tornar as coisas inevitáveis abrindo para tal, de avanço um dossiê secundário.

O retorno dos jiadistas

Entrevistado por Jean-Jacques Bourdin, na RMC e BFM TV, a 4 de Janeiro de 2018, o Secretário de Estado e porta-voz do governo, Benjamin Griveaux, declarou que os jiadistas feitos prisioneiros na Síria pela Coligação Internacional contra o Daesh(EI) (quer dizer pelas tropas comandadas pelo Pentágono) poderão ser julgados no Norte da Síria, «se as instituições judiciais estiverem à altura de assegurar um processo justo» com «direitos da defesa respeitados».

No dia seguinte, 5 de Janeiro, Jean-Jacques Bourdin, sempre ele, entrevistava a Ministra da Justiça, Nicole Belloubet. Ela declara : «Não existe um Estado que reconheçamos, mas há autoridades no local, e nós podemos aceitar que elas possam proceder a acções de juízo».

Durante essas três entrevistas, jamais, absolutamente nunca, Jean-Jacques Bourdin perguntou aos seus convidados se as prisões que pudessem ser pronunciadas no «Rojava» seriam reconhecidas pela Justiça Francesa (Non bis in idem). Caso contrário, os arguidos teriam de ser julgados de novo e iriam amargar uma segunda pena pelos mesmos factos caso retornassem a França.

Quando entrevistou a Ministro da Justiça, Jean-Jacques Bourdin questionou-a sobre outros assuntos. Ele surpreendeu ao evocar pontos sobre os quais a Chancelaria não havia, de momento, comunicado. Também não especificou como tinha tido acesso a essas informações confidenciais.

Jean-Jacques Bourdin é o marido de Anne Nivat, uma repórter de guerra, violentamente anti-russa e notoriamente próxima da Direção-Geral da Inteligência Externa (DGSE). A BFM TV pertence ao grupo de Patrick Drahi e Bruno Ledoux. Este último providenciou gentilmente os locais da representação do «Rojava» em Paris.

Benjamin Griveaux e Nicole Belloubet evitaram, cuidadosamente, responder às perguntas do jornalista empregando as palavras «Curdo», «Curdistão» e «Rojava». Limitaram-se a evocar apenas as «autoridades» (sic) do Norte da Síria.

Directo a uma violação caracterizada do Direito

Se viesse a ser tomada a decisão de levar a julgamento Franceses pelo «Rojava» ela violaria :

- o Tratado franco-sírio reconhecendo a jurisdição da República Árabe Síria como a única autoridade legítima no conjunto do território sírio.

- a Convenção Europeia dos Direitos do homem e de salvaguarda das liberdades fundamentais. 

• O seu artigo 6 precisa que, para que a Justiça seja imparcial, é necessário nomeadamente um tribunal estabelecido segundo princípios da Lei e uma decisão que seja executável. Não dispondo o «Rojava» de prisões, apenas a absolvição ou a pena de morte (que não existe nos países do Conselho da Europa) poderão ser pronunciadas. Claro, nada impedirá recorrer a outras penas e reciclar discretamente os acusados para que eles venham a combater em outros teatros de operação. 

• O seu artigo 7 impõe o princípio segundo o qual não se pode pronunciar pena sem lei (Nullum crimen, nulla poena sine lege). Ora, não existe Código Penal curdo.

- a Declaração dos Direitos do homem e do cidadão de 1789, colocada no preâmbulo da Constituição Francesa, cujo artigo 7 estipula que aqueles que solicitem, despachem, executem ou façam executar ordens arbitrárias devem ser punidos.

- a Constituição Francesa, da qual 

• O artigo 55 estipula que os Tratados bilaterais regularmente aplicados pelas outras partes signatárias se impõem sempre em França, o que é o caso dos Tratados Franco-Sírios. 

• O artigo 68 indica a responsabilidade penal dos membros do governo e a do Presidente da República por qualquer «falha dos seus deveres manifestamente incompatíveis com o exercício do seu mandato».

Apagar os testemunhos

Antes de se envolver numa via que ele sabe ser profundamente contrária ao Direito, o governo francês utilizou os média (mídia-br) para criar a fobia do «retorno dos jiadistas». No entanto, nenhum outro país atingido pelo mesmo iniciou debates sobre este tema. Nada distingue esses arguidos de outros assassinos que são julgados pelos tribunais ordinários e que cumprem as suas penas normalmente.

Tendo cegado a opinião pública, o governo tenta sacudir a sua própria responsabilidade e a dos seus predecessores. Alguns dos arguidos não deixariam de evocar, durante as audiências públicas, os seus vínculos com a DGSE e o papel do Ministério da Defesa nesta guerra.

O governo Macron-Philippe segue assim sobre os passos dos seus predecessores [3]. Lembramos, por exemplo, como o governo Sarkozy-Fillon conseguiu fazer desaparecer os testemunhos de soldados franceses libertados pela Síria, no quadro do acordo de paz do Emirado Islâmico de Baba Amr. Nenhum média francês pegou nesta informação apesar dos artigos dos média árabes, em Março de 2012, aquando da entrega desses prisioneiros ao Almirante Édouard Guillaud na fronteira sírio-libanesa.

Para o reconhecimento automático do «Rojava»

O princípio da res judicata (matéria julgada-ndT) tornará automático o reconhecimento do «Rojava» como Estado soberano e independente.

Historicamente, os Curdos são um povo nómada, como os Ciganos na Europa, mas numa versão guerreira. Moviam-se pelo vale do Eufrates e podiam eventualmente atravessar o Norte da actual Síria [4]. No fim do Império Otomano, alguns de entre eles foram recrutados para participar no extermínio dos cristãos em geral e dos Arménios em particular [5]. Como recompensa pelos seus crimes, receberam as terras dos Arménios que tinham matado e sedentarizaram-se. Durante a colonização francesa, os Curdos da tribo Millis foram recrutados para esmagar o nacionalismo Árabe em Raqqa e Aleppo, depois deixaram a Síria assim que ela se tornou independente.

O «Rojava» foi criado em terras árabes, onde os curdos apenas estão presentes, de maneira contínua, desde a repressão de que foram colectivamente vítimas durante a guerra civil turca dos anos 1980. As populações muçulmanas e cristãs que aí viviam foram expulsas durante a guerra contra a Síria, e não poderão para lá voltar enquanto cidadãos.

O «Rojava» foi confiado ao PYD, um partido anteriormente marxista-leninista pró-soviético, subitamente tornado anarquista pró-EUA [6]. Apesar das pretensões dos seus comunicadores, ele conserva uma hierarquia extremamente estruturada, um culto totalitário do seu fundador e uma disciplina de ferro. No máximo, os postos de responsabilidade tornaram-se paritários : um homem e uma mulher ocupam-no sempre. Esta nova organização aplica-se também ao Estado-Maior, enquanto as mulheres são raras na sua milícia; em qualquer caso mais raras do que nos exércitos mistos da região, Tsahal (FDI) e Exército Árabe Sírio.

O Pentágono tinha previsto, em 2013, apoiar o plano franco-turco no quadro da remodelagem do Médio-Oriente Alargado. Simultaneamente, ele organizaria a criação de um «Sunnistão» a cavalo sobre o Iraque e a Síria(plano Robin Wright). No entanto, abandonou os dois projectos quando o Presidente Trump decidiu aniquilar o Daesh(EI), deixando de continuar a considerar a questão curda como um justificativo para a presença dos GI.s na Síria. Por conseguinte, será também necessário levar os Estados Unidos de volta ao plano inicial.

Além disso, tendo em conta o fracasso, no último ano, da criação por Israel de outro Estado curdo, desta vez no Norte do Iraque [7], Paris e Ancara devem antecipar a oposição do Irão, do Iraque, da Síria, e de um modo mais geral de quase todo o mundo árabe.

Ancara, que desejava activamente, em 2011, a criação de um pseudo-Estado curdo no Norte da Síria, opõe-se agora se a nova entidade for patrocinada pelos Estados Unidos (os quais tentaram assassinar por três vezes o Presidente Erdoğan e financiaram um partido curdo para lhe fazer perder a maioria no Parlamento). Aquando da sua conferência de imprensa conjunta com o Presidente Macron, Recep Tayyip Erdoğan indicou a sua linha vermelha: prevenir qualquer possibilidade de o PKK —que a França também qualifica de «organização terrorista»— criar um corredor que lhe permita importar armas a partir do Mediterrâneo para a Anatólia do Sudeste. Portanto, a questão limita-se a procurar garantir que os conflitos entre o PKK e o «Rojava» levem a uma ruptura definitiva e que o novo Estado não tenha acesso ao Mediterrâneo tal como estava previsto no plano inicial.

Thierry Meyssan* | Voltaire.net | Tradução Alva

*Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).


Notas
[1] “A estratégia militar da nova Turquia”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 14 de Outubro de 2017.
[2] “O inconfessável projecto de um pseudo-Curdistão”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 8 de Dezembro de 2015.
[3] “Formação de soldados franceses para enquadrar o Daesh (EI)”, Tradução Alva, Rede Voltaire, 2 de Novembro de 2016.
[4] Sobre os Curdos, deve ler-se l’enquête en trois parties de Sarah Abed, Traduction Jean-Marc Chicot et Marc Grossouvre, Réseau Voltaire, septembre 2017.
[5] « La Turquie d’aujourd’hui poursuit le génocide arménien », par Thierry Meyssan, Réseau Voltaire, 26 avril 2015.
[6] “As Brigadas anarquistas da OTAN”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 12 de Setembro de 2017.
[7] “Curdistão: o que esconde o referendum”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Al-Watan (Síria) , Rede Voltaire, 26 de Setembro de 2017.

Boaventura: A nova Tese Onze


“Os filósofos têm apenas interpretado o mundo. A questão é transformá-lo”, escreveu Karl Marx. Seria o caso de atualizar a frase, para livrá-la de certo viés eurocêntrico?

Boaventura de Sousa Santos | Outras Palavras | Imagens: Mural e Cartaz zapatistas

Karl Marx escreveu em 1845 as Teses sobre Feuerbach. Escrito logo depois dos Manuscritos Econômicos e Filosóficos de 1844, o texto constitui uma primeira formulação do seu propósito de construir uma filosofia materialista centrada na praxis transformadora, radicalmente distinta da que então dominava e de que era expoente máximo Ludwig Feuerbach.

Na célebre tese onze, a mais conhecida de todas, declara: “Os filósofos têm apenas interpretado o mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo.” O termo filósofos é usado num sentido amplo, como referência aos produtores de conhecimento erudito, podendo incluir hoje todo o conhecimento humanista e científico considerado fundamental por contraposição ao conhecimento aplicado. No início do século XXI esta tese levanta dois problemas.

O primeiro é que não é verdade que os filósofos alguma vez se tenham dedicado a contemplar o mundo sem que a sua reflexão tenha tido algum impacto na transformação do mundo. E mesmo que alguma vez isso tenha ocorrido, deixou de ocorrer com a emergência do capitalismo ou, se quisermos um termo mais abrangente, com a emergência da modernidade ocidental, sobretudo a partir do século XVI. Os estudos sobre a sociologia do conhecimento dos últimos cinquenta anos foram concludentes em mostrar que as interpretações do mundo dominantes numa dada época são as que legitimam, possibilitam ou facilitam as transformações sociais levadas a cabo pelas classes ou grupos dominantes.

O melhor exemplo disso é a concepção cartesiana da dicotomia natureza-sociedade ou natureza-humanidade. Conceber a natureza e a sociedade (ou a humanidade) como duas entidades, duas substâncias na terminologia de Descartes, totalmente distintas e independentes uma da outra, tal como acontece com a dicotomia corpo-alma, e construir nessa base todo um sistema filosófico é uma inovação revolucionária. Choca com o senso comum, pois não imaginamos nenhuma atividade humana sem a participação de algum tipo de natureza, a começar mesmo pela capacidade e atividade de imaginar, dada a sua componente cerebral, neurológica. Aliás, se os seres humanos têm natureza, a natureza humana, será difícil imaginar que essa natureza não tenha nada a ver com a natureza não-humana. A concepção cartesiana tem obviamente muitos antecedentes, dos mais antigos do Velho Testamento (livro do Gênesis) até aos mais recentes do seu quase contemporâneo Francis Bacon, para quem a missão do homem é dominar a natureza. Mas foi Descartes que conferiu ao dualismo a consistência de todo um sistema filosófico.

O dualismo natureza-sociedade, nos termos do qual a humanidade é algo totalmente independente da natureza e esta é igualmente independente da sociedade, é de tal maneira constitutivo da nossa maneira de pensar o mundo e a nossa presença e inserção no mundo que pensar de modo alternativo é quase impossível, por mais que o senso comum nos reitere que nada do que somos, pensamos ou fazemos pode deixar de conter em si natureza. Por que então a prevalência e quase evidência, no plano científico e filosófico, da separação total entre natureza e sociedade? Está hoje demonstrado que esta separação, por mais absurda, foi uma condição necessária da expansão do capitalismo. Sem tal concepção não teria sido possível conferir legitimidade aos princípios de exploração e de apropriação sem fim que nortearam a empresa capitalista desde o início.

O dualismo continha um princípio de diferenciação hierárquica radical entre a superioridade da humanidade/sociedade e a inferioridade da natureza, uma diferenciação radical porque assente numa diferença constitutiva, ontológica, inscrita nos planos da criação divina. Isto permitiu que, por um lado, a natureza se transformasse num recurso natural incondicionalmente disponível para ser apropriado e explorado pelo homem para seu exclusivo benefício.

E, por outro lado, que tudo o que fosse considerado natureza pudesse ser apropriado nos mesmos termos. Ou seja, a natureza em sentido amplo abrangia seres que, por estarem tão próximos do mundo natural, não podiam ser considerados plenamente humanos. Assim se reconfigurou o racismo para significar a inferioridade natural da raça negra e, portanto, a “natural” conversão dos escravos em mercadorias. Esta foi a outra conversão de que o Padre Antônio Vieira nunca falou mas que está pressuposta em todas as outras de que falou brilhantemente nos seus sermões. A apropriação passou a ser o outro lado da super-exploração da força de trabalho.

O mesmo aconteceu com as mulheres ao se reconfigurar sua inferioridade “natural”, que vinha muito detrás, convertendo-a na condição da sua apropriação e super-exploração, neste caso consistindo nomeadamente na apropriação do trabalho não-pago das mulheres no cuidar da família. Este trabalho, apesar de tão produtivo quanto o outro, foi convencionalmente considerado reprodutivo para poder ser desvalorizado, uma convenção que o marxismo não enjeitou. A partir de então, a ideia de humanidade passou a coexistir necessariamente com a ideia de sub-humanidade, a sub-humanidade dos corpos racializados e sexualizados. Podemos, pois, concluir que a compreensão cartesiana do mundo estava envolvida até à medula na transformação capitalista, colonialista e patriarcal do mundo.

À luz disto, a tese onze sobre Feuerbach levanta um segundo problema. É que para enfrentar os gravíssimos problemas do mundo de hoje – dos chocantes níveis de desigualdade social à crise ambiental e ecológica, ao aquecimento global irreversível, desertificação, falta de água potável, desaparecimento de regiões costeiras, acontecimentos “naturais” extremos, etc. – não é possível imaginar uma prática transformadora que resolva estes problemas sem uma outra compreensão do mundo. Essa outra compreensão tem de resgatar a um novo nível o senso comum da mútua interdependência entre a humanidade/sociedade e a natureza, uma compreensão que parta da ideia de que, em vez de substâncias, há relações entre a natureza humana e todas as outras naturezas, que a natureza é inerente à humanidade e que o inverso é igualmente verdadeiro, que é um contrassenso pensar que a natureza nos pertence se não pensarmos que, reciprocamente, pertencemos à natureza.

Não vai ser fácil. Contra a nova compreensão e, portanto, nova transformação do mundo militam muitos interesses bem consolidados nas sociedades capitalistas, colonialistas e patriarcais em que vivemos. Como tenho insistido, a construção de uma nova compreensão do mundo resultará de um esforço coletivo e epocal, ou seja,  ocorrerá no bojo de uma transformação paradigmática da sociedade. A civilização capitalista, colonialista e patriarcal não tem futuro, e o seu presente dá de tal modo testemunho disso que ela só prevalece por via da violência, da repressão, das guerras declaradas e não declaradas, do estado de exceção permanente, da destruição sem precedentes do que se continua a designar como recurso natural e, portanto, disponível sem limites.

Minha contribuição pessoal nesse esforço coletivo tem consistido na formulação do que designo por epistemologias do sul. Na minha concepção, o sul não é um lugar geográfico, é uma metáfora para designar os conhecimentos construídos nas lutas dos oprimidos e excluídos contra as injustiças sistêmicas causadas pelo capitalismo, colonialismo e patriarcado, sendo que muitos dos que constituem o sul epistemológico viveram e vivem no sul geográfico. Estes conhecimentos nunca foram reconhecidos como contribuições para uma melhor compreensão do mundo por parte dos titulares do conhecimento erudito ou acadêmico, seja ele filosofia ou ciências sociais e humanas. Por isso, a exclusão desses grupos foi radical, uma exclusão abissal decorrente de uma linha abissal que passou a separar o mundo dos plenamente humanos, onde “só” é possível a exploração (a sociabilidade metropolitana), do mundo dos sub-humanos, populações descartáveis onde é possível a apropriação e a super-exploração (a sociabilidade colonial). Uma linha e uma divisão que prevalecem desde o século XVI até hoje.

As epistemologias do sul procuram resgatar os conhecimentos produzidos do outro lado da linha abissal, o lado colonial da exclusão, de modo a poder integrá-los em amplas ecologias de saberes onde poderão interagir com os conhecimentos científicos e filosóficos com vista a construir uma nova compreensão/transformação do mundo. Ora esses conhecimentos, até agora invisibilizados, ridicularizados, suprimidos, foram produzidos, tanto pelos trabalhadores que lutaram contra a exclusão não abissal (zona metropolitana), como pelas vastas populações de corpos racializados e sexualizados em resistência contra a exclusão abissal (zona colonial). Ao centrar-se particularmente nesta última zona, as epistemologias do sul dão especial atenção aos sub-humanos, precisamente àqueles e àquelas que foram considerados mais próximos da natureza. Ora os conhecimentos produzidos por esses grupos, em que pese a sua imensa diversidade, são estranhos ao dualismo cartesiano e, pelo contrário, concebem a natureza não-humana como profundamente implicada na vida social-humana, e vice-versa. Como dizem os povos indígenas das Américas, “a natureza não nos pertence, nós pertencemos à natureza”. Os camponeses de todo o mundo não pensam de modo muito diferente. E o mesmo acontece com grupos cada vez mais vastos de jovens ecologistas urbanos em todo o mundo.

Isto significa que os grupos sociais mais radicalmente excluídos pela sociedade capitalista, colonialista e patriarcal, muitos dos quais foram considerados resíduos do passado em vias de extinção ou de branqueamento, são os que, do ponto de vista das epistemologias do sul, estão a nos indicar uma saída com futuro, um futuro digno da humanidade e de todas as naturezas humanas e não-humanas que a compõem. Sendo parte de um esforço coletivo, as epistemologias do sul são um trabalho em curso e apenas embrionário.

No meu próprio caso, penso que até hoje não dei conta de toda a riqueza analítica e transformadora contida nas epistemologias do sul que tenho proposto. Tenho salientado que os três modos principais de dominação moderna –classe (capitalismo), raça (racismo) e sexo (patriarcado) – atuam articuladamente e que essa articulação varia com o contexto social, histórico e cultural. Mas não tenho dado atenção suficiente ao fato de este modo de dominação assentar-se na dualidade sociedade/natureza, e de tal modo que sem a superação desta dualidade nenhuma luta de libertação poderá ter êxito.

Em face disto, a nova tese onze devia ter uma formulação do tipo: “os filósofos, filósofas, cientistas sociais e humanistas devem colaborar com todos aqueles e aquelas que lutam contra a dominação no sentido de criar formas de compreensão do mundo que tornem possíveis práticas de transformação do mundo que libertem conjuntamente o mundo humano e o mundo não-humano”. É muito menos elegante que a tese onze original, mas talvez nos seja mais útil.

* Boaventura de Sousa Santos é doutor em sociologia do direito pela Universidade de Yale, professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, diretor dos Centro de Estudos Sociais e do Centro de Documentação 25 de Abril, e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa - todos da Universidade de Coimbra. Sua trajetória recente é marcada pela proximidade com os movimentos organizadores e participantes do Fórum Social Mundial e pela participação na coordenação de uma obra coletiva de pesquisa denominada Reinventar a Emancipação Social: Para Novos Manifestos.

Mais lidas da semana