quarta-feira, 11 de julho de 2018

Lula e o punitivismo penal


Sua prisão é política, assim como a de centenas de milhares de brasileiros vítimas do encarceramento em massa. A partir de setembro, o ex-presidente e o país terão uma nova chance

Antonio Martins | Outras Palavras

I.

Num país sob estado de exceção e em crise, certas imagens podem ser muito perigosas. Por isso, o juiz Sérgio Moro e os desembargadores Gebran Neto e Thompson Flores, do IV Tribunal Regional Federal, mandaram às favas as férias e o domingo e se esfalfaram para impedir a todo custo que se produzisse, no fim de semana, uma fotografia de Lula livre. Não bastava o poder – que tinham – de mandar prendê-lo horas depois de solto. Era preciso evitar que o país o visse liberto; que surgisse um registro material de outra realidade possível, de uma sociedade capaz de superar a agenda de retrocessos.

Moro e os desembargadores venceram um round, embora com grande desgaste. Mas as próximas semanas prometem ser duras para os que defendem – em especial no STF – a prisão arbitrária de Lula e a de centenas de milhares de brasileiros. A ministra Cármen Lúcia deixará a presidência do tribunal em setembro. Já não terá poder para evitar um debate que bloqueia a todo custo, há dois anos. O Supremo terá, enfim, a possibilidade de julgar se é possível prender réus que ainda não esgotaram os recursos legais para demonstrar sua inocência. Uma decisão provisória em favor destas prisões, adotada em fevereiro de 2016, jamais foi examinada em definitivo. Ela reforça uma tendência social conservadora – o punitivismo penal – que vê no encarceramento em massa o caminho para uma sociedade mais segura. Embora particular, por suas consequências políicas óbvias, a prisão de Lula é também consequência da força desta visão.

II.

O eterno adiamento do debate, pela atual presidente do STF, é um ato assumidamente político. Ele distorce o papel do tribunal – que deveria ser o defensor da Constituição – e gera o caos jurídico que leva a população a suspeitar ainda mais do Supremo e do Judiciário. Desde março, diversos colegas de Cármen Lúcia no STF têm reivincado que a ministra inclua, na pauta de deliberações em plenário, a proibição de prender cidadãos condenados apenas em segunda instância. O apelo é reforçado por um conjunto de entidades jurídicas lideradas pela OAB.

Mas ao invés de ouvir seus próprios colegas e as entidades, Cármen Lúcia prefere agradar a facção do mundo jurídico e político que pensa como ela. Em 19/3, convidada especial num dos noticiários da TV Globo, afirmou que “não há razão nenhuma” para levar o tema a consideração coletiva. Assegurou que a prisão após segunda instância é um instrumento para “combater o crime”. Dias depois, chegou a articular a defesa desta postura com o movimento “Vem pra rua”, conhecido por seu extremismo direitista. A atitude foi comemorada por um site da mesma tendência. “Cármen Lúcia trancou a pauta do Supremo até o fim de seu mandato”, escreveu O Antagonista.

Para dar aparência de normalidade a este trancamento do debate, os partidários da prisão de réus após julgamento em segunda instância alegam que a decisão a respeito já foi tomada pelo STF. “Revê-la”, segundo eles, seria um casuísmo para beneficiar Lula. O argumento revela desonestidade intelectual. O Supremo nunca definiu posição de mérito sobre o tema. Um artigo da professora Eloísa Machado de Almeida (Direito FGV-SP), publicado pela Folha de S.Paulo em 23/3, explica didaticamente a questão. Em outubro de 2016, o tribunal decidiu cautelarmente (ou seja, de maneira urgente e provisória) que a prisão, nestas circunstâncias é possível. Mas, embora transcorridos mais de 20 meses desde então, “ainda não há decisão definitiva”, frisa Eloísa, o que “deixa o tribunal dividido”.

É exatamente esta ausência que transformou os julgamentos a respeito do tema no que muitos chamam de “uma loteria”. O STF tem duas turmas, com entendimentos opostos. O recurso de um réu é ou deixa de ser atendido segundo… o azar. Se o impetrante cai na primeira turma (apelidada de “Câmara de Gás”), permanece preso. Se o sorteio lhe favorece com a segunda turma (“Jardim do Édem”), será provavelmente solto. Um Supremo Tribunal que se permite tal tipo tal capricho jamais poderá ser respeitado como promotor de Justiça. No entanto, uma questão que poderia ser resolvida com facilidade é postergada indefinidamente – porque Cármem Lúcia e seus parcerios temem ser derrotados e não se importam com as consequências institucionais deste partidarismo.

O ministro Dias Toffoli, que em dois meses substituirá Cármen Lúcia na presidência do STF, parece disposto a encerrar a manobra desonrosa. Se isso enfim ocorrer, e a depender da decisão do plenário, Lula será libertado e aguardará livre o julgamento de seu recurso à sentança do TRF-4. Seu direito a disputar as eleições dependerá de outras ações – nos tribunais e sobretudo nas ruas. Mas a liberdade do ex-presidente, embora importantíssima em si mesma, é parte de um problema político mais amplo: o avanço do punitivismo penal e político, componente central do pensamento conservador que tanta influência exerce sobre o país, nos últimos anos.

III.

O punitivismo propõe, para problemas que exigem mudanças sociais profundas, soluções aparentemente fáceis e imediatas. Para o aumento da violência, uma chaga real, ele sugere o linchamento (“bandido bom é bandido morto”) ou, em uma versão mais branda, o encarceramento em massa. Não se trata de um fenômeno apenas brasileiro – mas aqui assumiu proporções incomuns, por razões que se verá adiante.

Entre 2001 e 2014, mostra um estudo1 do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (Ibccrim), a taxa de encarceramento da população brasileira mais que dobrou. Saltamos de 135 presos por 100 mil habitantes para 306/100.000. Ultrapassamos a marca de 720 mil prisioneiros, terceira maior população carcerária do mundo. Dentre eles, a proporção de negros tornou-se ainda maior; e a de mulheres nunca foi tão alta. Mas dos privados de liberdade, cerca de 10% apenas praticaram crimes contra a vida. Os novos presos são, especialmente, autores de pequenos delitos, relacionados à venda de drogas consideradas ilícitas e a furtos e roubos. Nestes casos, nota com sarcasmo o estudo do Ibccrim, os valores “são de monta muito menor que o custo de manter os autores atrás das grades”…

O encarceramento maciço foi produzido por novas leis, vendidas como “salvadoras” a uma população apavorada tanto pela insegurança real quanto por sua exploração em programas de TV manipuladores. Entre elas, destacam-se a Lei dos Crimes Hediondos (1990), entre os quais foi incluído, espantosamente, o tráfico de psicotrópicos; a Nova Lei de Drogas (2006), que um Judiciário ultra-draconiano usou como licença para aprisionar ainda mais indiscriminadamente; e a decisão provisória do STF que autoriza a prender réus antes de esgotados todos os recursos a que têm direito.

Em termos concretos, o fracasso do encarceramento é clamoroso. Quanto mais se prende, mais a violência aumenta. Entre 1996 e 2017, o número anual de homicídios no Brasil pulou de 35 mil para 54 mil. Num outro estudo2, o jurista Marcelo Semer explica parte das razões. Foi totalmente abandonada a ideia do papel correcional da prisão; e se esqueceu o uso de penas alternativas. Transformados em depósito de indesejáveis, os presídios converteram-se, também, em fortalezas do crime.

Mas os resultados patéticos do punitivismo não levaram, ainda, a um recuo da tendência – inclusive, porque a esquerda despreza o tema da Segurança Pública e mantém espaço aberto para o discurso conservador. Vale notar, por exemplo, que o avanço do encarceramento coincide com o período dos governos do PT e que Dilma Roussef deu sua contribuição particular ao crescimento da tendência. Em 2015, ela propôs e conseguiu aprovar uma “Lei Antiterrorismo” que estende para o campo político a tentativa de resolver temas complexos com tratamento simplório e, em particular, com violência do Estado.

IV.

Moro e os desembargadores do TRF-4 que não suportaram ver Lula livre farão, nos próximos meses, campanha acirrada contra uma decisão do STF que respeite o direito Constitucional à presunção de inocência. A mídia lhes dará respaldo. Se mantiverem o status-quo, eles ganham duplamente. Mantêm encarcerado (e impedido nas eleições presidenciais) seu principal adversário político. E continuam a oferecer à população uma narrativa falsa e simplória – porém eficaz – para os grandes problemas do país.

Diversas e às vezes contraditórias como são hoje, talvez as esquerdas brasileiras pudessem lançar um esforço para superar as divergências em relação a um tema tão decisivo. Certos setores permanecem indiferentes, ou ao menos pouco propensos a se mobilizar, diante da prisão arbitrária de Lula. Alegam que, nas periferias, a ditadura nunca terminou. É verdade, evidentemente. Mas não é da mesma forma óbvio que, enquanto vivermos um estado de exceção capaz de encarcerar o líder popular de maior prestígio no país, haverá cada vez mais violência contra os mais pobres?

Enquanto isso, alguns defensores de Lula parecem enxergar a prisão arbitrária do ex-presidente como uma perseguição isolada da direita – e não como parte da restrição geral às liberdades, num país dividido entre Casa Grande e Senzala. Ao fazê-lo, deixam de examinar em profundidade o punitivismo e repetem um erro que já cometeram. Para mudar o país de fato, basta eleger um novo presidente? Mais uma vez serão esquecidas as reformas estruturais já abandonadas no primeiro período da esquerda no governo?

A procrastinação patife de Cármen Lúcia está no fim – assim como o reinado de Temer. Mas, como se vê, os próximos meses serão, além de determinantes para o futuro do Brasil, muito reveladores.

1[1]“Encarceramento em massa e a tragédia prisional brasileira”, de Giane Silvestre e Felipe Athayde Lins de Melo, no Boletim do Ibccrim, número 293, Abril de 2017: https://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5947-Encarceramento-em-massa-e-a-tragedia-prisional-brasileira
2[1]“O pior do grande encarceramento brasileiro é o que ainda está por vir”, de Marcelo Semer, no site Justificando: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/12/16/o-pior-do-grande-encarceramento-brasileiro-e-o-que-ainda-esta-por-vir/

Boaventura: o que aprender com a Nicarágua


Ruína do governo Ortega convida a relembrar Revolução Sandinista e os déficits atuais da esquerda. Levante popular poderia repetir-se no Brasil ou Argentina?

Boaventura de Sousa Santos | Outras Palavras

Pertenço à geração dos que nos anos de 1980 vibraram com a Revolução Sandinista e a apoiaram ativamente. O impulso progressista reanimado pela revolução cubana de 1959 tinha sido estancado em grande medida pela intervenção imperialista dos EUA. A imposição da ditadura militar no Brasil em 1964 e na Argentina em 1976, a morte de Che Guevara em 1967, na Bolívia e o golpe de Augusto Pinochet contra Salvador Allende em 1973 foram os sinais mais salientes de que o sub-continente sul-americano estava condenado a ser o quintal dos EUA, submetido à dominação das grandes empresas multinacionais e das elites nacionais com elas coniventes. Estava, em suma, impedido de pensar-se como conjunto de sociedades inclusivas centradas nos interesses das grandes maiorias empobrecidas. A revolução sandinista [em 1979] significava a emergência de uma contra-corrente auspiciosa. O seu significado resultava não só das transformações concretas que protagonizava (participação popular sem precedentes, reforma agrária, campanha de alfabetização que mereceu prêmio da Unesco, revolução cultural, criação de serviço público de saúde, etc.), mas também do fato de tudo isto ser realizado em condições difíceis devido ao cerco extremamente agressivo dos EUA de Ronald Reagan, que envolveu o embargo econômico e o infame financiamento dos “contras” e o fomento da guerra civil. Igualmente significativo foi o facto de o governo sandinista ter mantido o regime democrático, o que em 1990 ditou o fim da revolução com a vitória do bloco opositor de que, aliás, fazia parte o partido comunista da Nicarágua.

Nos anos seguintes, a Frente Sandinista, sempre liderada por Daniel Ortega, perdeu três eleições, até que, em 2006, reconquistou o poder mantendo-o até hoje. Entretanto, a Nicarágua, como de resto toda a América Central, esteve fora do radar da opinião pública internacional e da própria esquerda latino-americana. Até que, em abril passado, os protestos sociais e a violenta repressão de que foram alvo chamou a atenção do mundo. Contam-se já muitas dezenas de mortes causadas pelas forças policiais e por milícias ligadas ao partido do governo. Os protestos, protagonizados inicialmente por estudantes universitários, visavam a displicência do governo perante a catástrofe ecológica na Reserva Biológica Indio-Maiz causada pelo incêndio e pelo desmatamento e invasão ilegais. Seguiram-se logo depois os protestos contra a “reforma” do sistema de segurança social que impunha cortes drásticos nas pensões e onerações adicionais impostas a trabalhadores e patrões. Aos estudantes juntaram-se sindicatos e demais organizações da sociedade civil.  Perante os protestos, o governo retirou a proposta, mas o país estava já incendiado pela indignação contra a violência e a repressão e pela repulsa causada por muitas outras facetas sombrias da governação sandinista, que entretanto começaram a ser mais conhecidas e mais abertamente criticadas. A Igreja Católica, que desde 2003 se “reconciliara” com o sandinismo, voltou a tomar as suas distâncias e aceitou mediar o conflito social e político sob condições.

O mesmo distanciamento ocorreu com a burguesia empresarial nicaraguense a quem Ortega oferecera volumosos negócios e condições privilegiadas de atuação em troca de lealdade política. O futuro é incerto e não está excluído que este país, tão massacrado pela violência, volte a sofrer um banho de sangue. A oposição ao orteguismo cobre todo o espectro político e, tal como tem acontecido noutros países (Venezuela e Brasil), só mostra unidade para derrubar o regime mas não para criar uma alternativa democrática. Tudo leva a crer que não haverá solução pacífica sem a renúncia do casal presidencial Ortega-Murillo e a convocação de eleições antecipadas livres e transparentes.

Os democratas, em geral, e as forças políticas de esquerda, em especial, têm razões para estar perplexos. Mas têm sobretudo o dever de reexaminar as opções recentes de governos considerados de esquerda em muitos países do continente e questionar o seu silêncio perante tanto atropelo de ideais políticos durante tanto tempo. Por esta razão, este texto não deixa de ser, em parte, uma auto-crítica. Que lições se podem colher do que se passa na Nicarágua? Ponderar as duras lições que a seguir enumero será a melhor forma de nos solidarizarmos com o povo nicaraguense e de lhe manifestarmos respeito pela sua dignidade.

Primeira lição: espontaneidade e organização

Durante muito tempo os protestos sociais e a repressão violenta ocorreram nas zonas rurais sem que a opinião pública nacional e internacional se manifestasse. Quando os protestos irromperam em Manágua a surpresa foi geral. O movimento era espontâneo e recorria às redes sociais que o governo promovera antes com o acesso gratuito à internet no país. Os jovens universitários, netos da revolução sandinista, que até há pouco pareciam alienados e politicamente apáticos, mobilizaram-se para reclamar justiça e democracia. A aliança entre o campo e a cidade, até então impensável, surgiu quase naturalmente e a revolução cívica saiu à rua em marchas pacíficas e barricadas que chegaram a atingir 70% das estradas do país. Como é que as tensões sociais se acumulam sem que sejam notadas e a sua explosão repentina colha a todos de surpresa? Decerto não pelas mesmas razões por que os vulcões não avisam. Pode esperar-se que as forças conservadoras nacionais e internacionais não se aproveitem dos erros cometidos pelos governos de esquerda? Qual será o ponto de explosão das tensões sociais noutros países do continente causadas por governos de direita — por exemplo, no Brasil e na Argentina?

Segunda lição: os limites do pragmatismo político e das alianças com a direita

A Frente Sandinista perdeu três eleições depois de ter sido derrotada em 1990. Uma facção da Frente liderada por Ortega entendeu que a única maneira de poder voltar ao poder era fazer alianças com os seus adversários, mesmo com os que mais visceralmente tinham hostilizado o sandinismo, a Igreja Católica e os grandes empresários. No que respeita à Igreja Católica, a aproximação começou no início da década de 2000. O Cardeal Obando y Bravo foi durante boa parte do período revolucionário um opositor agressivo do governo sandinista e aliado ativo dos contras, apelidando Ortega de “víbora moribunda” durante toda a década de 1990. No entanto, Ortega não teve pejo em dele se aproximar a ponto de lhe pedir em 2005 que oficiasse o casamento com a sua companheira de muitos anos, Rosário Murillo, atual vice-presidente do país.

Entre muitas outras concessões à Igreja, uma das primeiras leis do novo governo sandinista, ainda em 2006, foi aprovar a lei da proibição total do aborto, mesmo em caso de violação ou de perigo de vida para mulher. Isto, num país com alta incidência de violência contra mulheres e crianças. A aproximação às elites econômicas deu-se pela submissão do programa sandinista ao neoliberalismo, com a desregulação da economia, a assinatura de tratados de livre comércio e a criação de parcerias público-privadas que garantiam polpudos negócios ao setor privado capitalista à custa do erário público. Incluiu também um acordo com o ex-presidente conservador e grande proprietário, Arnoldo Aleman, que foi considerado um dos dez chefes de Estado mais corruptos do mundo.

Estas alianças garantiram uma certa paz social.  Deve-se salientar que em 2006 o país estava à beira da falência e que as políticas adotadas por Ortega permitiram o crescimento econômico. Tratou-se, no entanto, do crescimento típico da receita neoliberal: grande concentração da riqueza, total dependência dos preços internacionais dos produtos de exportação (nomeadamente café e carne), autoritarismo crescente perante o conflito social causado pela extensão da fronteira agrícola e pelos megaprojetos (por exemplo, o grande canal interoceânico, com financiamento chinês), aumento desordenado da corrupção, a começar pela elite política no governo.  A crise social só foi minorada devido à generosa ajuda da Venezuela (doações e investimentos) que chegou a ser uma parcela importante do orçamento do Estado e permitiu algumas políticas sociais compensatórias.

A situação iria fatalmente explodir quando os preços internacionais baixassem, houvesse mudança de política econômica no principal destino das exportações (EUA), ou secasse o apoio da Venezuela. Foi tudo isso que sucedeu nos últimos dois anos. Entretanto, acabada a orgia dos favores, as elites econômicas tomaram distância e Ortega ficou cada vez mais isolado. Pode um governo continuar a designar-se de esquerda (e até revolucionário) apesar de seguir todo o ideário do capitalismo neoliberal com as condições que este impõe e as consequências que gera? Até que ponto as alianças tácticas com o “inimigo” se transformam na segunda natureza de quem as protagoniza? Por que as alianças com as diferentes forças de esquerda parecem sempre mais difíceis do que as alianças entre a esquerda hegemônica e as forças de direita?

Terceira lição: autoritarismo político, corrupção e desdemocratização

As políticas adotadas por Daniel Ortega e a sua facção criaram cisões importantes no seio da Frente Sandinista e oposição em outras forças políticas e nas organizações da sociedade civil que tinham encontrado no sandinismo dos anos de 1980 a sua matriz ideológica e social e a sua vontade de resistência. As organizações de mulheres tiveram um protagonismo especial. É sabido que o neoliberalismo, ao agravar as desigualdades sociais e ao gerar privilégios injustos, só se pode manter pela via autoritária e repressiva. Foi isso o que fez Ortega. Por todos os meios, incluindo cooptação, supressão da oposição interna e externa, monopolização das mídias, alterações constitucionais que garantiram a reeleição indefinida, instrumentalização do sistema judicial e criação de forças repressivas paramilitares. As eleições de 2016 foram o retrato de tudo isto e a vitória do slogan “uma Nicarágua cristã, socialista e solidária” mal disfarçava as profundas fraturas na sociedade.

De um modo quase patético, mas talvez previsível, o autoritarismo político foi acompanhado pela crescente apropriação patrimonialista do Estado. A família Ortega acumulou riqueza e mostrou apetite para se perpetuar no poder. A tentação autoritária e a corrupção são um desvio ou são constitutivas dos governos de matriz econômica neoliberal? Que interesses imperiais explicam a ambiguidade da OEA (Organização dos Estados Americanos) face ao orteguismo, em contraste com a sua radical oposição ao chavismo? Porque é que boa parte da esquerda latino-americana e mundial manteve (e continua a manter) o mesmo silêncio cúmplice? Por quanto tempo a memória de conquistas revolucionárias turva a capacidade de denunciar as perversidades que se lhes seguem, a ponto de a denúncia chegar quase sempre demasiado tarde?

Imagem: Mural sandinista na cidade de León retrata a repressão de um levante por soldados da ditadura Somoza. Em bizarra repetição, o atual presidente, Daniel Ortega, também recorre a soldados e paramilitares contra protestos

*Boaventura de Sousa Santos é doutor em sociologia do direito pela Universidade de Yale, professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, diretor dos Centro de Estudos Sociais e do Centro de Documentação 25 de Abril, e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa - todos da Universidade de Coimbra. Sua trajetória recente é marcada pela proximidade com os movimentos organizadores e participantes do Fórum Social Mundial e pela participação na coordenação de uma obra coletiva de pesquisa denominada Reinventar a Emancipação Social: Para Novos Manifestos.

Mais lidas da semana