Sua prisão é política, assim como
a de centenas de milhares de brasileiros vítimas do encarceramento em massa. A
partir de setembro, o ex-presidente e o país terão uma nova chance
Antonio Martins | Outras Palavras
I.
Num país sob estado de exceção e
em crise, certas imagens podem ser muito perigosas. Por isso, o juiz Sérgio
Moro e os desembargadores Gebran Neto e Thompson Flores, do IV Tribunal
Regional Federal, mandaram às favas as férias e o domingo e se esfalfaram para
impedir a todo custo que se produzisse, no fim de semana, uma fotografia de
Lula livre. Não bastava o poder – que
tinham – de mandar prendê-lo horas depois de solto. Era preciso evitar
que o país o visse liberto; que surgisse um registro material de outra
realidade possível, de uma sociedade capaz de superar a agenda de retrocessos.
Moro e os desembargadores
venceram um round, embora com grande desgaste. Mas as próximas semanas
prometem ser duras para os que defendem – em especial no STF – a prisão
arbitrária de Lula e a de centenas de milhares de brasileiros. A ministra
Cármen Lúcia deixará a presidência do tribunal em setembro. Já não terá poder
para evitar um debate que bloqueia a todo custo, há dois anos. O Supremo terá,
enfim, a possibilidade de julgar se é possível prender réus que ainda não
esgotaram os recursos legais para demonstrar sua inocência. Uma decisão
provisória em favor destas prisões, adotada em fevereiro de 2016, jamais foi
examinada em definitivo. Ela reforça uma tendência social conservadora – o
punitivismo penal – que vê no encarceramento em massa o caminho para uma
sociedade mais segura. Embora particular, por suas consequências políicas
óbvias, a prisão de Lula é também consequência da força desta visão.
II.
O eterno adiamento do debate,
pela atual presidente do STF, é um ato assumidamente político. Ele distorce o
papel do tribunal – que deveria ser o defensor da Constituição – e gera o caos
jurídico que leva a população a suspeitar ainda mais do Supremo e do
Judiciário. Desde março, diversos colegas de Cármen Lúcia no STF têm
reivincado que a ministra inclua, na pauta de deliberações em
plenário, a proibição de prender cidadãos condenados apenas em segunda
instância. O apelo é reforçado por um conjunto
de entidades jurídicas lideradas pela OAB.
Mas ao invés de ouvir seus
próprios colegas e as entidades, Cármen Lúcia prefere agradar a facção do mundo
jurídico e político que pensa como ela. Em 19/3, convidada especial num dos
noticiários da TV Globo, afirmou que
“não há razão nenhuma” para levar o tema a consideração coletiva. Assegurou que
a prisão após segunda instância é um instrumento para “combater o crime”. Dias
depois, chegou a articular a
defesa desta postura com o movimento “Vem pra rua”, conhecido por seu
extremismo direitista. A atitude foi comemorada por um site da mesma tendência.
“Cármen Lúcia trancou a pauta do Supremo até o fim de seu mandato”, escreveu O
Antagonista.
Para dar aparência de normalidade
a este trancamento do debate, os partidários da prisão de réus após
julgamento em segunda instância alegam que a decisão a respeito já foi tomada
pelo STF. “Revê-la”, segundo eles, seria um casuísmo para beneficiar Lula. O
argumento revela desonestidade intelectual. O Supremo nunca definiu
posição de mérito sobre o tema. Um artigo da
professora Eloísa Machado de Almeida (Direito FGV-SP), publicado pela Folha
de S.Paulo em 23/3, explica didaticamente a questão. Em outubro de 2016, o
tribunal decidiu cautelarmente (ou seja, de maneira urgente e
provisória) que a prisão, nestas circunstâncias é possível. Mas, embora
transcorridos mais de 20 meses desde então, “ainda não há decisão definitiva”,
frisa Eloísa, o que “deixa o tribunal dividido”.
É exatamente esta ausência que
transformou os julgamentos a respeito do tema no que muitos chamam de “uma
loteria”. O STF tem duas turmas, com entendimentos opostos. O recurso de um réu
é ou deixa de ser atendido segundo… o azar. Se o impetrante cai na primeira
turma (apelidada de “Câmara de Gás”), permanece preso. Se o sorteio lhe
favorece com a segunda turma (“Jardim do Édem”), será provavelmente solto. Um
Supremo Tribunal que se permite tal tipo tal capricho jamais poderá ser
respeitado como promotor de Justiça. No entanto, uma questão que
poderia ser resolvida com facilidade é postergada indefinidamente – porque
Cármem Lúcia e seus parcerios temem ser derrotados e não se importam com as
consequências institucionais deste partidarismo.
O ministro Dias Toffoli, que em
dois meses substituirá Cármen Lúcia na presidência do STF, parece disposto a
encerrar a manobra desonrosa. Se isso enfim ocorrer, e a depender da decisão do
plenário, Lula será libertado e aguardará livre o julgamento de seu recurso à
sentança do TRF-4. Seu direito a disputar as eleições dependerá de outras ações
– nos tribunais e sobretudo nas ruas. Mas a liberdade do ex-presidente, embora
importantíssima em si mesma, é parte de um problema político mais amplo: o
avanço do punitivismo penal e político, componente central do pensamento
conservador que tanta influência exerce sobre o país, nos últimos anos.
III.
O punitivismo propõe, para
problemas que exigem mudanças sociais profundas, soluções aparentemente fáceis
e imediatas. Para o aumento da violência, uma chaga real, ele sugere o
linchamento (“bandido bom é bandido morto”) ou, em uma versão mais branda, o
encarceramento em massa. Não se trata de um fenômeno apenas brasileiro – mas
aqui assumiu proporções incomuns, por razões que se verá adiante.
Entre 2001 e 2014, mostra um
estudo1 do Instituto Brasileiro de
Ciências Criminais (Ibccrim), a taxa de encarceramento da população brasileira
mais que dobrou. Saltamos de 135 presos por 100 mil habitantes para 306/100.000.
Ultrapassamos a marca de 720 mil prisioneiros, terceira maior população
carcerária do mundo. Dentre eles, a proporção de negros tornou-se ainda maior;
e a de mulheres nunca foi tão alta. Mas dos privados de liberdade, cerca de 10%
apenas praticaram crimes contra a vida. Os novos presos são, especialmente,
autores de pequenos delitos, relacionados à venda de drogas consideradas
ilícitas e a furtos e roubos. Nestes casos, nota com sarcasmo o estudo do
Ibccrim, os valores “são de monta muito menor que o custo de manter os autores
atrás das grades”…
O encarceramento maciço foi
produzido por novas leis, vendidas como “salvadoras” a uma população apavorada
tanto pela insegurança real quanto por sua exploração em programas de TV
manipuladores. Entre elas, destacam-se a Lei dos Crimes Hediondos (1990), entre
os quais foi incluído, espantosamente, o tráfico de psicotrópicos; a Nova Lei
de Drogas (2006), que um Judiciário ultra-draconiano usou como licença para
aprisionar ainda mais indiscriminadamente; e a decisão provisória do STF que
autoriza a prender réus antes de esgotados todos os recursos a que têm direito.
Em termos concretos, o fracasso
do encarceramento é clamoroso. Quanto mais se prende, mais a violência aumenta.
Entre 1996 e 2017, o número anual de homicídios no Brasil pulou de 35 mil para
54 mil. Num outro
estudo2, o jurista Marcelo Semer explica
parte das razões. Foi totalmente abandonada a ideia do papel correcional da
prisão; e se esqueceu o uso de penas alternativas. Transformados em depósito de
indesejáveis, os presídios converteram-se, também, em fortalezas do crime.
Mas os resultados patéticos do
punitivismo não levaram, ainda, a um recuo da tendência – inclusive, porque a
esquerda despreza o tema da Segurança Pública e mantém espaço aberto para o
discurso conservador. Vale notar, por exemplo, que o avanço do
encarceramento coincide com o período dos governos do PT e que Dilma
Roussef deu sua contribuição particular ao crescimento da tendência. Em 2015,
ela propôs e conseguiu aprovar uma “Lei
Antiterrorismo” que estende para o campo político a tentativa de
resolver temas complexos com tratamento simplório e, em particular, com
violência do Estado.
IV.
Moro e os desembargadores do
TRF-4 que não suportaram ver Lula livre farão, nos próximos meses, campanha
acirrada contra uma decisão do STF que respeite o direito Constitucional à
presunção de inocência. A mídia lhes dará respaldo. Se mantiverem o status-quo, eles
ganham duplamente. Mantêm encarcerado (e impedido nas eleições presidenciais)
seu principal adversário político. E continuam a oferecer à população uma
narrativa falsa e simplória – porém eficaz – para os grandes problemas do país.
Diversas e às vezes
contraditórias como são hoje, talvez as esquerdas brasileiras pudessem lançar
um esforço para superar as divergências em relação a um tema tão decisivo.
Certos setores permanecem indiferentes, ou ao menos pouco propensos a se
mobilizar, diante da prisão arbitrária de Lula. Alegam que, nas periferias, a
ditadura nunca terminou. É verdade, evidentemente. Mas não é da mesma forma
óbvio que, enquanto vivermos um estado de exceção capaz de encarcerar o líder
popular de maior prestígio no país, haverá cada vez mais violência contra os
mais pobres?
Enquanto isso, alguns defensores
de Lula parecem enxergar a prisão arbitrária do ex-presidente como uma
perseguição isolada da direita – e não como parte da restrição geral às
liberdades, num país dividido entre Casa Grande e Senzala. Ao fazê-lo, deixam
de examinar em profundidade o punitivismo e repetem um erro que já cometeram.
Para mudar o país de fato, basta eleger um novo presidente? Mais uma vez serão
esquecidas as reformas estruturais já abandonadas no primeiro período da
esquerda no governo?
A procrastinação patife de Cármen
Lúcia está no fim – assim como o reinado de Temer. Mas, como se vê, os próximos
meses serão, além de determinantes para o futuro do Brasil, muito reveladores.
1[1]“Encarceramento em massa e a tragédia
prisional brasileira”, de Giane Silvestre e Felipe Athayde Lins de Melo,
no Boletim do Ibccrim, número 293, Abril de 2017: https://www.ibccrim.org.br/boletim_artigo/5947-Encarceramento-em-massa-e-a-tragedia-prisional-brasileira
2[1]“O pior do grande encarceramento brasileiro é
o que ainda está por vir”, de Marcelo Semer, no site Justificando: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/12/16/o-pior-do-grande-encarceramento-brasileiro-e-o-que-ainda-esta-por-vir/
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