quarta-feira, 11 de julho de 2018

Boaventura: o que aprender com a Nicarágua


Ruína do governo Ortega convida a relembrar Revolução Sandinista e os déficits atuais da esquerda. Levante popular poderia repetir-se no Brasil ou Argentina?

Boaventura de Sousa Santos | Outras Palavras

Pertenço à geração dos que nos anos de 1980 vibraram com a Revolução Sandinista e a apoiaram ativamente. O impulso progressista reanimado pela revolução cubana de 1959 tinha sido estancado em grande medida pela intervenção imperialista dos EUA. A imposição da ditadura militar no Brasil em 1964 e na Argentina em 1976, a morte de Che Guevara em 1967, na Bolívia e o golpe de Augusto Pinochet contra Salvador Allende em 1973 foram os sinais mais salientes de que o sub-continente sul-americano estava condenado a ser o quintal dos EUA, submetido à dominação das grandes empresas multinacionais e das elites nacionais com elas coniventes. Estava, em suma, impedido de pensar-se como conjunto de sociedades inclusivas centradas nos interesses das grandes maiorias empobrecidas. A revolução sandinista [em 1979] significava a emergência de uma contra-corrente auspiciosa. O seu significado resultava não só das transformações concretas que protagonizava (participação popular sem precedentes, reforma agrária, campanha de alfabetização que mereceu prêmio da Unesco, revolução cultural, criação de serviço público de saúde, etc.), mas também do fato de tudo isto ser realizado em condições difíceis devido ao cerco extremamente agressivo dos EUA de Ronald Reagan, que envolveu o embargo econômico e o infame financiamento dos “contras” e o fomento da guerra civil. Igualmente significativo foi o facto de o governo sandinista ter mantido o regime democrático, o que em 1990 ditou o fim da revolução com a vitória do bloco opositor de que, aliás, fazia parte o partido comunista da Nicarágua.

Nos anos seguintes, a Frente Sandinista, sempre liderada por Daniel Ortega, perdeu três eleições, até que, em 2006, reconquistou o poder mantendo-o até hoje. Entretanto, a Nicarágua, como de resto toda a América Central, esteve fora do radar da opinião pública internacional e da própria esquerda latino-americana. Até que, em abril passado, os protestos sociais e a violenta repressão de que foram alvo chamou a atenção do mundo. Contam-se já muitas dezenas de mortes causadas pelas forças policiais e por milícias ligadas ao partido do governo. Os protestos, protagonizados inicialmente por estudantes universitários, visavam a displicência do governo perante a catástrofe ecológica na Reserva Biológica Indio-Maiz causada pelo incêndio e pelo desmatamento e invasão ilegais. Seguiram-se logo depois os protestos contra a “reforma” do sistema de segurança social que impunha cortes drásticos nas pensões e onerações adicionais impostas a trabalhadores e patrões. Aos estudantes juntaram-se sindicatos e demais organizações da sociedade civil.  Perante os protestos, o governo retirou a proposta, mas o país estava já incendiado pela indignação contra a violência e a repressão e pela repulsa causada por muitas outras facetas sombrias da governação sandinista, que entretanto começaram a ser mais conhecidas e mais abertamente criticadas. A Igreja Católica, que desde 2003 se “reconciliara” com o sandinismo, voltou a tomar as suas distâncias e aceitou mediar o conflito social e político sob condições.

O mesmo distanciamento ocorreu com a burguesia empresarial nicaraguense a quem Ortega oferecera volumosos negócios e condições privilegiadas de atuação em troca de lealdade política. O futuro é incerto e não está excluído que este país, tão massacrado pela violência, volte a sofrer um banho de sangue. A oposição ao orteguismo cobre todo o espectro político e, tal como tem acontecido noutros países (Venezuela e Brasil), só mostra unidade para derrubar o regime mas não para criar uma alternativa democrática. Tudo leva a crer que não haverá solução pacífica sem a renúncia do casal presidencial Ortega-Murillo e a convocação de eleições antecipadas livres e transparentes.

Os democratas, em geral, e as forças políticas de esquerda, em especial, têm razões para estar perplexos. Mas têm sobretudo o dever de reexaminar as opções recentes de governos considerados de esquerda em muitos países do continente e questionar o seu silêncio perante tanto atropelo de ideais políticos durante tanto tempo. Por esta razão, este texto não deixa de ser, em parte, uma auto-crítica. Que lições se podem colher do que se passa na Nicarágua? Ponderar as duras lições que a seguir enumero será a melhor forma de nos solidarizarmos com o povo nicaraguense e de lhe manifestarmos respeito pela sua dignidade.

Primeira lição: espontaneidade e organização

Durante muito tempo os protestos sociais e a repressão violenta ocorreram nas zonas rurais sem que a opinião pública nacional e internacional se manifestasse. Quando os protestos irromperam em Manágua a surpresa foi geral. O movimento era espontâneo e recorria às redes sociais que o governo promovera antes com o acesso gratuito à internet no país. Os jovens universitários, netos da revolução sandinista, que até há pouco pareciam alienados e politicamente apáticos, mobilizaram-se para reclamar justiça e democracia. A aliança entre o campo e a cidade, até então impensável, surgiu quase naturalmente e a revolução cívica saiu à rua em marchas pacíficas e barricadas que chegaram a atingir 70% das estradas do país. Como é que as tensões sociais se acumulam sem que sejam notadas e a sua explosão repentina colha a todos de surpresa? Decerto não pelas mesmas razões por que os vulcões não avisam. Pode esperar-se que as forças conservadoras nacionais e internacionais não se aproveitem dos erros cometidos pelos governos de esquerda? Qual será o ponto de explosão das tensões sociais noutros países do continente causadas por governos de direita — por exemplo, no Brasil e na Argentina?

Segunda lição: os limites do pragmatismo político e das alianças com a direita

A Frente Sandinista perdeu três eleições depois de ter sido derrotada em 1990. Uma facção da Frente liderada por Ortega entendeu que a única maneira de poder voltar ao poder era fazer alianças com os seus adversários, mesmo com os que mais visceralmente tinham hostilizado o sandinismo, a Igreja Católica e os grandes empresários. No que respeita à Igreja Católica, a aproximação começou no início da década de 2000. O Cardeal Obando y Bravo foi durante boa parte do período revolucionário um opositor agressivo do governo sandinista e aliado ativo dos contras, apelidando Ortega de “víbora moribunda” durante toda a década de 1990. No entanto, Ortega não teve pejo em dele se aproximar a ponto de lhe pedir em 2005 que oficiasse o casamento com a sua companheira de muitos anos, Rosário Murillo, atual vice-presidente do país.

Entre muitas outras concessões à Igreja, uma das primeiras leis do novo governo sandinista, ainda em 2006, foi aprovar a lei da proibição total do aborto, mesmo em caso de violação ou de perigo de vida para mulher. Isto, num país com alta incidência de violência contra mulheres e crianças. A aproximação às elites econômicas deu-se pela submissão do programa sandinista ao neoliberalismo, com a desregulação da economia, a assinatura de tratados de livre comércio e a criação de parcerias público-privadas que garantiam polpudos negócios ao setor privado capitalista à custa do erário público. Incluiu também um acordo com o ex-presidente conservador e grande proprietário, Arnoldo Aleman, que foi considerado um dos dez chefes de Estado mais corruptos do mundo.

Estas alianças garantiram uma certa paz social.  Deve-se salientar que em 2006 o país estava à beira da falência e que as políticas adotadas por Ortega permitiram o crescimento econômico. Tratou-se, no entanto, do crescimento típico da receita neoliberal: grande concentração da riqueza, total dependência dos preços internacionais dos produtos de exportação (nomeadamente café e carne), autoritarismo crescente perante o conflito social causado pela extensão da fronteira agrícola e pelos megaprojetos (por exemplo, o grande canal interoceânico, com financiamento chinês), aumento desordenado da corrupção, a começar pela elite política no governo.  A crise social só foi minorada devido à generosa ajuda da Venezuela (doações e investimentos) que chegou a ser uma parcela importante do orçamento do Estado e permitiu algumas políticas sociais compensatórias.

A situação iria fatalmente explodir quando os preços internacionais baixassem, houvesse mudança de política econômica no principal destino das exportações (EUA), ou secasse o apoio da Venezuela. Foi tudo isso que sucedeu nos últimos dois anos. Entretanto, acabada a orgia dos favores, as elites econômicas tomaram distância e Ortega ficou cada vez mais isolado. Pode um governo continuar a designar-se de esquerda (e até revolucionário) apesar de seguir todo o ideário do capitalismo neoliberal com as condições que este impõe e as consequências que gera? Até que ponto as alianças tácticas com o “inimigo” se transformam na segunda natureza de quem as protagoniza? Por que as alianças com as diferentes forças de esquerda parecem sempre mais difíceis do que as alianças entre a esquerda hegemônica e as forças de direita?

Terceira lição: autoritarismo político, corrupção e desdemocratização

As políticas adotadas por Daniel Ortega e a sua facção criaram cisões importantes no seio da Frente Sandinista e oposição em outras forças políticas e nas organizações da sociedade civil que tinham encontrado no sandinismo dos anos de 1980 a sua matriz ideológica e social e a sua vontade de resistência. As organizações de mulheres tiveram um protagonismo especial. É sabido que o neoliberalismo, ao agravar as desigualdades sociais e ao gerar privilégios injustos, só se pode manter pela via autoritária e repressiva. Foi isso o que fez Ortega. Por todos os meios, incluindo cooptação, supressão da oposição interna e externa, monopolização das mídias, alterações constitucionais que garantiram a reeleição indefinida, instrumentalização do sistema judicial e criação de forças repressivas paramilitares. As eleições de 2016 foram o retrato de tudo isto e a vitória do slogan “uma Nicarágua cristã, socialista e solidária” mal disfarçava as profundas fraturas na sociedade.

De um modo quase patético, mas talvez previsível, o autoritarismo político foi acompanhado pela crescente apropriação patrimonialista do Estado. A família Ortega acumulou riqueza e mostrou apetite para se perpetuar no poder. A tentação autoritária e a corrupção são um desvio ou são constitutivas dos governos de matriz econômica neoliberal? Que interesses imperiais explicam a ambiguidade da OEA (Organização dos Estados Americanos) face ao orteguismo, em contraste com a sua radical oposição ao chavismo? Porque é que boa parte da esquerda latino-americana e mundial manteve (e continua a manter) o mesmo silêncio cúmplice? Por quanto tempo a memória de conquistas revolucionárias turva a capacidade de denunciar as perversidades que se lhes seguem, a ponto de a denúncia chegar quase sempre demasiado tarde?

Imagem: Mural sandinista na cidade de León retrata a repressão de um levante por soldados da ditadura Somoza. Em bizarra repetição, o atual presidente, Daniel Ortega, também recorre a soldados e paramilitares contra protestos

*Boaventura de Sousa Santos é doutor em sociologia do direito pela Universidade de Yale, professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, diretor dos Centro de Estudos Sociais e do Centro de Documentação 25 de Abril, e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa - todos da Universidade de Coimbra. Sua trajetória recente é marcada pela proximidade com os movimentos organizadores e participantes do Fórum Social Mundial e pela participação na coordenação de uma obra coletiva de pesquisa denominada Reinventar a Emancipação Social: Para Novos Manifestos.

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