A - A estrutura e a atuação
do capital
O capitalismo aprecia lucros,
acima de tudo; e para os garantir atende a todos os meios de os conseguir,
avaliando os custos que tem de incorrer para o efeito, procedendo tecnicamente
ao que se chama análise custo-benefício.
Essa análise cinge-se a uma abordagem
meramente técnica e contabilística, no caso de pequenos negócios. Isso já não
acontece quando se trata de grandes negócios, envolvendo vultuosos meios
financeiros, humanos e de capital; aí, além daquelas abordagens, triviais, são
enquadradas as variáveis envolventes, como as económicas, as sociais, as
políticas, as ideológicas e, mais recentemente, as ecológicas.
Vejamos de seguida, um ensaio de
definição da organização global do capitalismo
1 - Objetivo essencial do
capitalismo - A acumulação de capital
Essa acumulação alimenta-se da
produção de bens e serviços, para consumo ou investimento, tendo como base o
trabalho humano;
E, sob a forma de especulação no
mercado financeiro, com base em decisões tomadas por algoritmos.
Principais instrumentos da acumulação
capitalista
O consumismo é captura
psicológica de massas, é um vício, uma adição que alimenta o
"mercado". Essa captura torna as próprias vítimas do capitalismo em
interessados na sua continuidade;
O endividamento é uma
alavanca do consumo e para o comprometimento de rendimentos futuros. Por seu
intermédio, o sistema financeiro apossa-se dos salários e dos bens das pessoas;
garante uma fatia da carga fiscal aplicada pelos governos sobre a multidão; e
condiciona ad aeternum as finanças públicas através da dívida:
Os gastos
militares animam a atividade económica dos países produtores; são
elementos de contenção de intervenções externas, embora na generalidade pouco
possam conter; ou, são instrumentos de intervenções no exterior na base de um
ilegítimo direito de intervenção. Em todos os casos suportam parasitárias
castas militares;
As transnacionais, o sistema
financeiro e o capital do crime entrelaçam-se numa matriz complexa e
mutável de conluios e conflitos, cujos fins justificam todos os meios,
incluindo um cortejo enorme de disfunções e sofrimento nas relações entre os
povos e no seio de cada um destes. São os elementos estruturantes da reprodução
de capital;
Os estados-nação são
unidades geográficas de divisão
e gestão diferenciada do rebanho humano, uma herança do capitalismo
colonialista e concorrencial dos séculos passados, atualmente enquadrados, na
sua grande maioria, pelas transnacionais e pelo capital financeiro que
estruturam o mundo globalizado de hoje. É no seu âmbito que as classes
políticas nacionais procedem à gestão de proximidade da mansidão dos povos;
Várias organizações
internacionais funcionam como gestores setoriais de nível planetário -
OMC. FMI/BM, OMS, UNCTAD... - ou associando vários países, num âmbito regional
alargado - OCDE, UE, NATO, ASEAN, OCX... Claro que nessas organizações se
evidencia a hierarquia existente entre os estados-nação, muitos dos quais não
têm sequer capacidades de acompanhamento dos assuntos, por dificuldades
financeiras ou técnicas, limitando-se a votar ao lado dos mais fortes, por
convicção ou compra de voto;
As classes políticas nacionais
são as zeladoras dos interesses dos capitalistas nacionais e da sua integração
e compatibilização face ao capital global; hierarquizam os interesses dos
grupos nacionais que bem sabem como cooptar ou corromper membros influentes das
classes políticas. Em regra, apresentam-se divididas entre governo e oposição,
um género de Dupont e Dupond mas, com mais aptidões para o teatro. Em foracomo
o Bilderberg são chamados anualmente a prestar provas os mandarins locais
tomados como promissores candidatos a cargos supranacionais;
As ideologias nacionalistas,
patrioteiras ou xenófobas atravessam os espetros políticos nacionais como
instrumentos de divisão, diversão e controlo dos povos. O inimigo torna-se a
globalização - embora já tenha séculos e as suas crises de depressão tenham
promovido nacionalismos e guerras apocalíticas. Os capitalistas nacionais ficam
isentos de responsabilidades e a culpa das desgraças é o Outro - imigrante,
refugiado, islâmico, negro, estrangeiro; um discurso que inflama gente perdida
num mundo que não entende, que a tv não explica;
Os grandes media conjugam
várias caraterísticas - manipuladores de opinião, por ocultação ou deturpação
de factos, propagandistas de futilidades sociais, desportivas ou políticas e de
tradutores dos grandes media globais. Essas qualidades empurram as pessoas para
as redes sociais onde, no seio de uma grande vacuidade é possível alguma
expressão livre, com uma margem menor quanto a censura; embora a contrapartida
seja a exploração massificada de dados. Como pertencentes a grupos empresariais
detêm relações íntimas com os grandes negócios e as classes políticas;
A autoridade estatal desenvolve
atividade no âmbito da repressão policial ou judiciária, socialmente muito
discriminatória e ainda, através da via fiscal no contexto da redistribuição
regressiva do rendimento. É o Estado que procura conjugar benefícios que
atendam à competitividade dos capitalistas com uma carga fiscal que se torne
compaginável com as capacidades dos sindicatos para a contenção social; e ainda
que proceda à produção legislativa que forneça de modo discreto, elementos
favoráveis ao empresariato, à movimentação de capitais, à exploração dos
trabalhadores;
A simbiose entre o Estado e
o capital, mormente financeiro, corresponde a uma captura do primeiro pela
lógica do segundo; são os casos dos sistemas de saúde, educação, ação social,
segurança social, do abandono de uma política de habitação, dos transportes
públicos, das vias de comunicação, do abastecimento público de água,
eletricidade, comunicações, etc;
O sistema educativo -
público ou privado - encontra-se mercantilizado, parcelarizado em extremo (ao
contrário do que significa universidade) mormente a nível superior. É o grande
doutrinador do individualismo, da competição e do empreendedorismo
tecnocrático, da preparação para o "mercado" de trabalho, para a
máquina burocrática das empresas ou das instituições públicas e ainda para
enformar a classe política;
A democracia de mercado vulgarmente
conhecida por representativa (embora só os gangs partidários estejam
representados) não passa de um placebo de uma real democracia. Estabelece um
fosso entre os eleitos e os eleitores, colocados de fora de qualquer
possibilidade de representação; eterniza os membros da classe política como
"representantes"; exclui, na realidade, qualquer referendo ou outra
iniciativa popular, sobretudo para a retirada de mandatos a quem demonstre
incapacidade ou comportamentos indignos.
3 - Efeitos colaterais do modelo
de acumulação de capital
Desenvolve-se uma luta acerba -
comercial, política, militar - entre empresas e Estados, pelos recursos
materiais do planeta, como pelo controlo dos ditos mercados consumidores;
Face aos danos ambientais
motivados pela competição inerente aos grupos capitalistas e aos seus Estados,
revelam-se duas atitudes por parte de capitalistas e das classes políticas - a
da gestão mercantil desses danos, como mais uma oportunidade de negócio ou, a
da sua efetiva desvalorização enquanto problema, como se observa pelas
considerações de Trump e Bolsonaro;
Na ausência de uma narrativa
política globalizante e suficientemente consensual de superação do capitalismo,
tornam-se dominantes fórmulas tecnocráticas ou politicamente inócuas de encarar
os problemas sociais, políticos, económicos ou ambientais; e, recentemente têm
surgido narrativas fascizantes recolhidas no sótão de avós pouco recomendáveis;
O aumento da parcela dos
rendimentos nacionais embolsados pelos ricos - bem como da riqueza na sua posse
- empurra as populações para dificuldades económicas que geram estagnação ou
redução dos seus padrões de vida que, contudo, não têm sido origem de
levantamentos populares; Perante a crise sistémica de baixas taxas de
reprodução do capital é mobilizado o Estado para desempenhar um papel supletivo
ou preventivo dos efeitos da desestruturação económica, social e ambiental,
causados pela acumulação capitalista. Esse papel consubstancia-se ainda no
apoio a grupos capitalistas, mormente bancos ou, no apoio a desempregados para
que se lancem na aventura do empresariado em nome individual, que na grande
maioria dos casos termina em falência, endividamento e frustração;
O papel da propaganda promovida
pelas classes políticas tem-se acentuado para gerar a mansidão da multidão -
com a criteriosa utilização de instrumentos vários, como a manipulação, a
ameaça e a repressão. A ideia de que os modelos em vigor - económico e político
- são os melhores e os mais eficientes de todos - there is no alternative
- vai vingando, ao contrário de outras épocas, dada a ausência de uma
esquerda anticapitalista com notoriedade e alheia aos novelos que embrulham e
indiferenciam as classes políticas;
O magno objetivo da acumulação
vem conduzindo ao afogamento da Humanidade em dívida[1] - pública ou privada - com regulares crises financeiras
que a inércia dos povos permite sejam temporariamente superadas. A dívida, em
geral, serve para antecipar consumos e, sobretudo, capturar os devedores; desse
ponto de vista não é pagável, haja ou não pífias reestruturações. Por outro
lado, as cascatas de títulos de dívida que alimentam a especulação financeira
servem para esse efeito e não para serem liquidadas; até porque o devedor
inicial, o real, rapidamente fica desconhecido após sucessivas titularizações;
Parte das inovações tecnológicas
visam o controlo social através da vacuidade e da manipulação - redes sociais,
media, a focagem de tempo e atenção em smartphones - para além de
gerar negócios impulsionadores de rápidas formas acumulação de capital; um
controlo social muito mais intenso e eficaz do que no tempo em que a imprensa
era dominante;
A crescente parcela da acumulação
de capital que provém dos delírios financeiros, associada aos avanços atuais e
futuros na gestão da informação ou na robotização, colocam às altas esferas do
capital - e os seus think tanks - a questão, a médio prazo, de uma
redução drástica dos efetivos humanos.
B - A insuficiência de
qualquer abordagem parcelar do capitalismo
Como sistema, global e integrado,
o capitalismo, pode ser observado de vários ângulos - económico, social,
político, tecnológico e ambiental, entre outros; e, devido a essas
caraterísticas, qualquer medida ou acontecimento setorial, de per si, interage
com outros sectores, melhorando o desempenho nuns mas afetando negativamente
outros. A II Guerra, provocou enorme destruição material e humana mas, daí
resultaram alterações profundas, no ordenamento global a nível tecnológico,
económico, social e político. Os celebrados 30 gloriosos anos conduziram, na
Europa, à instauração do modelo social europeu que depois foi adulterado e
extinto pelo neoliberalismo, o qual, por sua vez, gerou novos paradigmas na
área laboral. O desmoronar da URSS e do seu capitalismo de estado facilitou a
integração da Europa de Leste na UE e empurrou a Rússia para alianças
estratégicas baseadas na Ásia... Contudo, globalmente, pode dizer-se que houve
apenas reajustamentos no âmbito do modo de produção capitalista.
Outro caso de reajustamento,
obviamente menos profundo e mais estrito, é o da proibição dos
clorofluorcarbonetos (CFC) e dos halons em 1987, que contribuiu para a redução
do buraco do ozono, embora o acordo para essa supressão tenha sido facilitado
porque a sua produção estava centrada uma grande empresa, a DuPont; ... e ainda
porque logo se encontraram sucedâneos, não havendo danos para o sistema
capitalista. Aliás, curiosamente, o CO2 ajuda a aumentar o ozono na
estratosfera ao contrário do metano, num efeito líquido que estará em estudo.
Enquanto os grupos de contestação
- ainda que com méritos técnicos e políticos em questões circunscritas - se
cingirem a abordagem parcelares e sem um perfil estratégico, o capitalismo
saberá proceder à gestão das concessões, cooptações e repressões, necessárias e
convenientes para a sua continuidade; sobretudo, porque dispõe de vários
organismos, think tanks e consultores com meios poderosos, de
caráter técnico, financeiro e de conhecimentos, capazes de proceder a sínteses,
estratégias políticas, táticas, de âmbito geográfico e social, mais específico
ou alargado, mais verídico ou mais falsificado[2].
Quanto mais circunscrita - no
espaço e no âmbito - for a contestação, mais facilitada será a repressão e mais
difícil será a congregação de apoios populares face às atitudes do poder. Se os
grupos de contestação, cada qual com uma base circunscrita de atuação - aspetos
ambientais, sociais, políticos, económicos... - se concertarem ou federarem os
seus objetivos contra o capitalismo como elemento bloqueador do bem-estar dos
povos, a sua atuação ganhará força, consistência, recursos, visibilidade e
abrangência no combate. Por outro lado, essa integração, pela troca de ideias e
pela interação entre os vários grupos temáticos, contribuirá para uma maior
maturidade na consciência da necessária supressão do capitalismo.
O fracasso
da luta anticapitalista - mesmo nas suas distintas áreas - está
garantido enquanto não tiver por detrás a força vital e a vontade expressa e
militante da multidão de seres humanos, despidos de complexos nacionalistas,
étnicos ou religiosos; ou ainda, se incorporarem instituições verticalizadas e
autoritárias, como são os Estados ou os partidos políticos que, aliás, estão
ficando desacreditados, como se tem observado em França na revolta dos Coletes
Amarelos. Os Estados nasceram, no dealbar do capitalismo, para dar coesão aos
estados-nação, como coutadas de restritos grupos de capitalistas, procurando
vincar no "seu" povo, através da escola e do serviço militar, a
diferença e o antagonismo face aos outros povos; fazendo esquecer que dos dois
lados de uma fronteira há apenas seres humanos com os mesmos propósitos
essenciais de vida.
Assim, os estados-nação com
os seus instrumentos de repressão e saque da multidão estão sendo, na sua
maioria, subalternizados pela globalização daí
surgindo duas tendências. Uma cosmopolita, inclusiva, de cruzamento de corpos e
culturas, de construção do comum; e outra, temerosa do futuro e que se refugia
por detrás da xenofobia, da fronteira e do antagonismo face ao Outro, sempre
visto como ameaça, esperando recriar o paraíso dentro da narrativa oitocentista
de "a cada povo uma nação".
Assim, na luta global e em todas
as frentes nas quais o capitalismo exerce o seu domínio ou influência, a supressão
daquele deverá exercer-se a partir de enxames
de redes rizomáticas, com decisão democrática, horizontal, tomada por
todos, uma vez que a existência de hierarquias e dos privilégios facilita casos
de traições,
de cooptações ou conluiosvindas de instituições que servem o capital -
mormente as classes políticas.
Este e outros textos em:
[1] Como o sistema financeiro captura a Humanidade
através da dívida
Reestruturar a dívida pública
nada resolve na nossa vida
[2] Como exemplo das típicas manipulações produzidas
por consultores, recorde-se, nos anos 90, que a EDP pretendia construir uma
barragem no rio Coa mas, a descoberta de pinturas rupestres veio levantar
obstáculos ao empreendimento. Expedita, a gestão da EDP recorreu a um
"reputado especialista" que negou valor histórico aos achados, que
seriam obra de pastores do século... XIX. Descobriu-se que o especialista era
um burlão e, com a mudança de governo, a construção da barragem foi abandonada.
Em http://grazia-tanta.blogspot.com/
** Extraído de Pravda.ru
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