domingo, 27 de janeiro de 2019

Portugal | “Não se deve generalizar” e eu às vezes vejo pretos


Isabel Moreira | Expresso | opinião

As recentes acontecimentos no Bairro da Jamaica foram analisados, como não podia deixar de ser, em si mesmos. Estando em circulação um vídeo que gerou a revolta de uns e a defesa da atuação da polícia por parte de outros, não se espera que em cima do acontecimento se paralise o direito à indignação de quem tem um acumulado de histórias às costas em nome de uma mesa redonda, com acesso restrito, que “vá ao fundo da questão” com o mote “não se deve generalizar”.

Bem ou mal comparado, quando tantas e tantos de nós saímos à rua para protestar contra sentenças sexistas, exortando ao fim da “justiça machista”, não vi Partidos “institucionalistas” e vozes tão acesas nos últimos dias a acusarem-nos de “generalizar”, a acusarem-nos de lançar uma suspeita sobre todas e todos os juízes do país ou a desvalorizar a importância da Justiça.

O debate profundo sobre o racismo estrutural, institucional e sobre o apartheid social é um debate urgente, mas não se pode exigir a quem reage a um caso que merce e terá investigação e a quem se manifesta na Avenida da Liberdade que tenha cuidadinho, não vá o seu protesto manchar “toda” uma instituição.

Pelo contrário: cada atuação policial alegadamente violenta e/ou racista tem de ser denunciada e investigada; ainda bem que há associações como o SOS racismo com gente que não se cala há mais de vinte anos; devíamos agradecer a existência, em democracia, de relatórios como ESTE denunciando que em Portugal o racismo é tolerado pela Polícia e que as denúncias não são investigadas a fundo.

Afinal, a melhor forma de dignificar a nossa democracia e as suas instituições é, precisamente, identificar as suas falhas no curto e no longo prazo.

Ou não?

Afirmar que há um historial de violência policial contra pessoas racializadas em bairros periféricos é repudiar a instituição PSP? Claro que não.

Um pouco de seriedade e um pouco de respeito por quem vive invisível e sem voz e sem direito a ser versão oficial do que quer que seja.

Não sei o que é viver no Bairro da Jamaica, agora finalmente com um plano de realojamento em ação. Não sei o que é ser a preta da periferia sem dinheiro para casa digna condenada ao bairro dos prédios inacabados. Não sei o que é ser o preto que ali está há mais de vinte anos à espera de ser gente. Não sei o que é viver policiada, mergulhada na pobreza e nos dramas socias que a pobreza acarreta. Não sei o que é o insulto diário, a não identificação da minha pele com a nacionalidade portuguesa, não sei o que é ouvir e ler “volta para a tua terra”.

Pior.

Não sei de pretos e pretas. Só de alguns que se safaram.

Desde que me lembro de mim, nos bairros em que vivi, só sei de gente branca. Quer dizer: a gente branca era e é a gente “igual”. Da infância até agora, longe da periferia, a gente preta existe: limpa-nos as casas, faz as obras na via pública e recolhe o lixo.
Isto é assim, mas há pretos e pretas que se safaram.

É que eu não quero generalizar e às vezes até vejo pretos.

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