domingo, 27 de janeiro de 2019

Venezuela | Guaidó, governos genuflexos, petróleo e a cortina de fumaça de Trump


Aram Aharonian*

A autoproclamação do opositor Juan Guaidó como presidente encarregado da Venezuela, e seu imediato reconhecimento (via twitter) por parte do governo de Donald Trump e de outros países alinhados com as políticas de Washington, constitui o início de uma intervenção maior, orientada a provocar um confronto de grande escala entre os venezuelanos.

O governo de Donald Trump usa esta situação como cortina de fumaça para invisibilizar a paralisação de já mais de um mês da sua da administração, problema que deixou mais de 800 mil funcionários sem salário (enquanto Trump chantageia o Congresso para que entregue financiamento para seu muro na fronteira com o México), e também como desculpa para se apropriar do petróleo venezuelano.

Neste contexto, Rússia e China só atuaram verbalmente. O governo russo reiterou seu apoio ao governo de Maduro e rechaçou a estratégia de Washington de gerar uma “dualidade de poder” no país sul-americano. “É perceptível o propósito de aplicar o roteiro, já usado em outras ocasiões, de derrubada de governos indesejados”, afirmou a chancelaria russa, advertindo que qualquer intervenção militar estrangeira seria “uma via direta na direção da anarquia e do banho de sangue”.

A nota fala em “ações descaradas de Washington”, e que a Rússia observa “uma nova demonstração de desprezo total pelas normas e princípios do direito internacional, e uma tentativa de se impor como juiz dos destinos de outros países”.

Com a autoproclamação, fica claro, segundo analistas ligados ao chavismo, que a oposição voltou a apostar no golpe de Estado, mas a pergunta agora é como farão para materializá-lo, ou seja, tirar Nicolás Maduro à força do poder, quando não se vislumbra a possibilidade de se construir uma correlação de forças suficiente para tanto, ainda mais com as Forças Armadas respaldando o governo legal.

A evolução da frente externa tampouco evoluiu como esperava Washington. A Assembleia Nacional (em rebeldia) enviou um representante do “novo governo” à Organização dos Estados Americanos, e a direita parece ter recuperado um pouco da sua capacidade de mobilização (e nisso se baseia todo o discurso das empresas transnacionais de informação), após a queda de credibilidade devido ao terror desestabilizador promovido pela direita em 2014 e em 2017, que deixou um saldo de mais de 200 mortos, e que agora quer somar alguns cadáveres mais.

Neste emaranhado de conflitos, os meios internacionais cartelizados impõem seu imaginário coletivo adulterado. “Os atos são apresentados comunicacionalmente como espontâneos, embora sejam ações programadas, ativadas por grupos armados –manifestantes pagos – para desatar ações de incêndio, assédio, intimidação a moradores das zonas populares, para gerar uma sensação de que o chavismo está isolado e que a direita tem apoio popular”, comenta o analista Marco Teruggi.

A ameaça expressada por Trump, no sentido de que a Casa Branca considera todas as opções no caso de que o governo de Nicolás Maduro responda com violência após a autoproclamação de Guaidó, revela que este se encontra sob a proteção de Washington, o que o desqualifica como ator legítimo no cenário local da Venezuela, e o define como instrumento de uma intervenção declarada e aberta.

Os fios que sustentam o governo-marionete estão atados a uma pessoa que era um completo desconhecido para a maioria dos venezuelanos até o dia 5 de janeiro, quando assumiu a presidência da Assembleia Nacional, devido à casualidade de rotação de partidos. Agora, onde governará este presidente virtual? Em Washington?

A ruptura das relações com os Estados Unidos, anunciada por Maduro, era a resposta lógica. Contudo, o que acontecerá se os diplomatas estadunidenses não se retirarem no lapso de 72 horas dado pelo presidente?

Não há dúvidas de que a aventura intervencionista estadunidense foi coordenada (ou imposta) aos governos totalmente alinhados e dependentes de Washington, como Colômbia, Brasil (vizinhos que já enviaram tropas à fronteira) e Argentina.

“Não queremos uma América bolivariana, como há pouco existia no Brasil, nos governos anteriores. A esquerda não prevalecerá nesta região, o que é muito bom na minha opinião, não só para a América do Sul como também para o mundo”, disse o ultradireitista brasileiro Jair Bolsonaro, no mesmo dia, durante sua participação no Foro Econômico Mundial, em Davos.

Estas atitudes de cumplicidade destoam um pouco das posturas da União Europeia e de países como México, Uruguai e uma centena de outras nações. A chancelaria mexicana, em ação conjunta com o Uruguai, pediu às partes em disputa e à comunidade internacional uma postura visando “reduzir as tensões e evitar uma escalda de violência que possa agravar a situação, e a encontrar uma solução pacífica e democrática para o complexo panorama venezuelano, de forma a empreender um novo processo de negociação com inclusão, credibilidade e o pleno respeito ao Estado de direito e os direitos humanos”.

É o petróleo

A decisão de Donald Trump de reconhecer Juan Guaidó como presidente interino do país pode levar ao bloqueio dos ativos da Venezuela no país norte-americano, e fazer também com que o pagamento pelo petróleo não seja mais cobrado pela estatal PDVSA, segundo indicam os economistas opositores Francisco Rodríguez e Luis Oliveros.

“Acabo de escutar que Trump retirou o reconhecimento de um regime brutal controlado por um petroestado. Significa que finalmente percebeu que os sauditas são os caras maus?”, ironizou o estadunidense Paul Krugman, Prêmio Nobel de Economia.

O controle da Citgo, empresa que a estatal petroleira PDVSA mantém nos Estados Unidos, poderia passar às mãos de Juan Guaidó, o que obrigaria a empresa venezuelana a buscar onde levar o petróleo que processa nas refinarias que possui na América do Norte. Atualmente, os Estados Unidos são o melhor cliente da PDVSA.

Além disso, o governo de Trump poderia impor novas sanções, através de uma série de medidas potenciais, entre elas a restrição às importações de petróleo venezuelano, e inclusive uma proibição total.

Irmãos de sangue

Durante os últimos meses, além das consultas formais, os serviços de inteligência e de segurança (a chamada diplomacia secreta) dos Estados Unidos, Israel, Brasil e Argentina coordenaram as formas de fraturar o governo venezuelano, através de um movimento concertado com o Grupo de Lima. A meta era forçar uma transição que estava condicionada pela ausência de um líder opositor que pudesse enfrentar o governo e demolir sua frente militar.

O plano foi encomendado por Trump a Mauricio Clavier, agente de origem cubana e membro do Conselho de Segurança da Casa Branca. Guaidó era a engrenagem que faltava: filho de militares, com um discurso articulado, estudos em Washington e pertencente a um partido (Vontade Popular) que demonstrou, em 2014 e em 2017, possuir a capacidade para impor o terror nas ruas e liderar uma ofensiva contra Maduro.

Hoje, o presidente Nicolás Maduro estuda como responder um cenário doméstico que oferece escassas variáveis. Se prender Guaidó por se autoproclamar presidente interino, Trump pode mover suas tropas a Caracas. Se o deixa em liberdade, reconhecerá que já não controla todas as variáveis de governo e que seu destino político está à mercê de uma possível revolta militar.

Enquanto isso, o Grupo de Lima, composto por governos alinhados com Washington, prepara uma nova ofensiva diplomática para evitar uma guerra civil, a qual pode ser potenciada pelos interesses regionais de Estados Unidos, China e Rússia.

Mas o plano estadunidense não se completou, ao menos até agora. Macri reconheceu Guaidó como presidente interino, mas não rompeu relações com a Venezuela, aconselhado por sua chancelaria. Portanto, também reconhece a Maduro. A estratégia consiste em manter o status quo (dois presidentes) e fazer com que, no futuro, o apoio militar ao presidente eleito se quebre, e que as Forças Armadas aceitem respaldar uma transição encabeçada por Guaidó e respaldada por Trump, Bolsonaro e Macri.

A cortina de fumaça de Trump

O presidente norte-americano enfrenta um formidável problema político interno e busca uma cortina de fumaça para ocultar esta grave crise doméstica. Logo, uma guerra de baixa intensidade na Venezuela seria ideal para a lógica diplomática de Trump. Macri (enrascado com a situação insustentável da economia argentina) e Bolsonaro (outro já que enfrenta escândalos internos em seu país) assumem estas intenções, mas reiteram que não apoiarão uma solução militar encabeçada pelo Pentágono.

A jogada não alcançou o resultado esperado, que era o de estimular que alguma facção militar tomasse o Palácio de Miraflores e termine com os 20 anos de bolivarianismo. A verdade é que dificilmente um presidente da América Latina apoiará um golpe contra Maduro que envolva a invasão de marines sob ordens (sejam elas expressas ou secretas) do Pentágono e da Casa Branca.

Depois de um mês, a paralisação do governo estadunidense significa a estagnação mais longa vista na história moderna do país, e já deixou sem salário mais de 800 mil funcionários. Ademais, há poucas evidências de que Donald Trump e os democratas do Congresso se unirão para resolver a crise a curto prazo.

O presidente magnata exige 5,7 bilhões de dólares do orçamento nacional para construir o muro na fronteira sul com o México (sua mais famosa promessa eleitoral de 2016) e, para impor seus desejos, paralisou o país.

O que virá?

O chavismo se encontra diante da pergunta de como enfrentar esse avanço nacional e internacional do golpismo, que busca quebrar a Força Armada Nacional Bolivariana, promover zonas de conflito na fronteira para justificar ações de força (o fator Colômbia parece ser central nesse aspecto) e colapsar a economia, empurrando a população ao enfrentamentos entre civis.

Também enfrenta o desafio de não cair nas provocações de uma direita que começa a levar o conflito aos bairros populares desde o início da escalada – diferente do que fez em 2017, quando concentrou as ações violentas nos bairros do centro. Se espera que, com o avançar dos acontecimentos, a violência se distribua a diferentes pontos do território, com o assédio armado a bairros e povoados, em ações apresentadas como pacíficas e trabalhadas com grande poder comunicacional através das redes sociais.

Com respeito à Assembleia Nacional, fica a pergunta sobre o que fazer a partir de agora. Sua ação foi declarada ilegal pelo Tribunal Supremo de Justiça, mas como poderá atuar depois da proclamação do governo paralelo, que é uma declaração de guerra? A Venezuela entra numa fase que não parece ter retorno. O plano anunciado por Guaidó, dirigido pelos Estados Unidos, só pode se materializar através da violência.

Poderá a direita manter um conflito destas características por um tempo prolongado e a nível nacional? Em 2017, a violência prolongada a fez perder legitimidade e isolou o golpismo. Nesta terceira tentativa de assalto violento ao poder em cinco anos, pensam que conseguirão se impor somente com o apoio internacional, ou com a esperança de que surja um Pinochet que incline as Forças Armadas para o lado do golpismo e da repressão – as mesmas premissas que fracassaram nas outras duas vezes.

Não se pode esquecer que o desgaste produzido pela grave crise econômica e social, que Maduro não é capaz de solucionar nem aliviar, também tem efeitos nesse tabuleiro. Tampouco se pode subestimar o povo chavista. Diante de tudo isso, o que dirá o Santo Padre, que vive em Roma?

*Aram Aharonian é jornalista e comunicólogo uruguaio, magister em Integração. Fundador do canal TeleSur, atualmente preside a Fundação para a Integração Latino-Americana (FILA) e dirige o Centro Latino-Americano de Análise Estratégica (CLAE)

*Publicado em estrategia.la | Tradução de Victor Farinelli | em Carta Maior

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