Apresentada por Temer e apoiada
por Bolsonaro e Moro, nova lei “anterrorismo” abre brecha para que PF e
Ministério Público persigam movimentos sociais sem ordem da Justiça. Nosso
texto analisa, ponto a ponto, as ameaças
João Telésforo* | Outras Palavras
Em junho do ano passado, o
governo Temer enviou para a Câmara o Projeto de Lei nº 10.431/2018, alegando
que precisava ser aprovado com urgência, para que o Brasil se adequasse às
exigências internacionais de cumprimento das resoluções do Conselho de Segurança
da ONU que determinassem o bloqueio de bens de pessoas acusadas de atos
terroristas ou de financiamento do terrorismo. Sérgio Moro tem atuado pela
aprovação do projeto desde outubro, com os mesmos argumentos. Em 13/5, os
deputados o aprovaram. Ele começará, agora, a tramitar no Senado.
O discurso do governo é
simplesmente mentiroso. O Brasil já conta com uma lei para garantir a rápida
execução das sanções de bloqueio de bens determinadas pelo Conselho de
Segurança da ONU (CSNU). Trata-se da Lei nº 13.170, de 2015, segundo a qual a
Advocacia-Geral terá até 24 horas para pedir ao Judiciário que execute essas
sanções definidas pelo CSNU, e o juiz determinará, em no máximo outras 24
horas, o seu cumprimento. Somente depois de executadas as medidas, as pessoas
físicas ou jurídicas afetadas serão intimadas pelo juiz, para que possam se
defender e tentar desbloquear os bens.
O Projeto de Lei encaminhado por
Temer, e defendido por Moro e Bolsonaro, visa justamente a revogar a Lei nº
13.170, de 2015, gerando três mudanças significativas, de extrema gravidade.
(I) Mudança na “designação
nacional” de terroristas: a possibilidade de o governo bloquear bens de
movimentos sociais sem controle do Judiciário
A Lei nº 13.170, de 2015,
determinava que o Ministério da Justiça deve informar o Ministério das Relações
Exteriores sobre sentenças judiciais condenatórias relacionadas à prática de
atos terroristas, para que, quando necessário, estas sejam encaminhadas ao
Conselho de Segurança da ONU – para facilitar o bloqueio dos bens dessas
pessoas físicas ou jurídicas em outros países, por exemplo. Esse procedimento
recebe o nomes de “designação nacional”, porque diz respeito à indicação de
terroristas (ou seus financiadores) pelo Brasil, para que sejam incluídos na
lista da ONU.
O Projeto de Lei defendido por
Moro cria uma hipótese absurda, no art. 25: a de que basta um pedido da Polícia
Federal ou do Ministério Público, sem necessidade de ordem judicial, para que o
governo brasileiro faça a outros países o pedido de indisponibilidade de bens
em razão de terrorismo ou seu financiamento. A Polícia Federal está subordinada
ao Ministério da Justiça; em suma, o governo não teria nenhum mecanismo de
controle para impedi-lo de pedir arbitrariamente a seus aliados da
extrema-direita de outros países – como Colômbia – que bloqueiem bens da Via
Campesina (organização internacional de movimentos camponeses, integrada por
movimentos como o MST, a Comissão Pastoral da Terra e o MAB, movimento dos
atingidos por barragens), por exemplo, por rotular como “terroristas” suas
ocupações de latifúndios.
Para piorar ainda mais, a redação
vaga de outro dispositivo do projeto (art. 3º, III), combinada com o art. 25,
abria margem para que também bastasse um pedido da Polícia Federal para o
governo determinar o bloqueio de bens de pessoas e movimentos dentro do Brasil,
sem qualquer controle judicial ou defesa prévia.
A oposição denunciou essas
arbitrariedades, e conseguiu que esses dois dispositivos fossem suprimidos,
ontem, quando o PL foi aprovado na Câmara dos Deputados. Porém, ainda
subsistiram graves retrocessos no texto, motivo pelo qual o PSOL e o PT votaram
pela rejeição do projeto. Indicamos esses pontos a seguir.
(II) O procedimento de exceção
para o cumprimento de sanções do Conselho de Segurança da ONU, sem
possibilidade de ampla defesa ou controle de legalidade pelo Judiciário
O projeto de lei determina que as
resoluções do Conselho de Segurança da ONU que versarem sobre terrorismo,
financiamento ao terrorismo e proliferação de armas de destruição em massa são
dotadas de executoriedade imediata no Brasil. Isso significa que, uma vez que o
Conselho de Segurança determine o bloqueio dos bens de uma pessoa física ou
jurídica, ou a proibição de entrada ou saída de alguém do território nacional,
as empresas que atuam no Brasil deverão automaticamente cumprir a sanção:
bloquear contas bancárias dos acusados, por exemplo.
Somente se não houver o
cumprimento da decisão, o Ministério da Justiça fará o pedido ao Judiciário,
que terá prazo de 24 horas para determinar as medidas pertinentes para o
cumprimento da sanção. A pessoa afetada poderá, então, impugnar a sanção, mas,
segundo o projeto de lei, poderá alegar somente que foi excluída da lista de
sanções do CSNU (ou que o prazo da sanção expirou), que houve erro na sua
identificação ou dos ativos a serem bloqueados. Não poderá aduzir, em sua
defesa, argumentos de direito ou outras razões de fato. Diferentemente da Lei
nº 13.170, de 2015, portanto, o PL nº 10.431/2018 impede o Poder Judiciário
brasileiro de realizar o controle da legalidade dos atos do Conselho de
Segurança da ONU.
Obviamente, o terrorismo merece
todo repúdio – como está inscrito, aliás, no art. 4º, VIII, da nossa
Constituição. Em nome do imprescindível enfrentamento ao terrorismo,
entretanto, não se pode admitir que sejam jogados na lata do lixo os direitos
fundamentais ao contraditório e à ampla defesa, e a garantia fundamental de que
“a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a
direito”, cláusulas pétreas da nossa Constituição (art. 5º, LV e XXXV,
respectivamente).
Observe-se, aliás, que a Corte
Europeia de Justiça decidiu, no caso Kadi, em 2008, que deveria ser anulado o
ato da União Europeia que bloqueou bens de um cidadão, com base em resolução do
Conselho de Segurança da ONU, que incluíra seu nome na lista de supostos
terroristas. A decisão afirmou que o ato violava a Carta da União Europeia, ao
impor sanções definidas de modo arbitrário pelo Conselho de Segurança da ONU,
ignorando o direito ao devido processo legal, e sem apresentar justificativa
para elas. O professor brasileiro Antonio Augusto Cançado Trindade – maior
referência brasileira em Direito Internacional , ex-Presidente da Corte
Interamericana de Direitos Humanos, atual Juiz da Corte Internacional de Justiça,
em Haia – já se manifestou de
modo favorável à decisão da Corte Europeia, e da possibilidade de controle
de legalidade das decisões do Conselho de Segurança da ONU.
Na versão do texto aprovada pela
Câmara, estabeleceu-se somente que, ao invés de imediatamente executáveis, as
resoluções do CSNU devem ser internalizadas por ato sigiloso do Ministério da
Justiça, para que tenham eficácia na nossa ordem interna. Permaneceram, no
entanto, os retrocessos fundamentais que consistem na essência do projeto, em
comparação com a Lei que já tratava do tema: mantiveram-se a vedação ao
controle judicial da legalidade da sanção do CSNU e a violação aos direitos ao
contraditório e ampla defesa.
A ampliação do Estado de exceção,
pelo PL, é ainda mais grave porque não se aplica somente ao bloqueio de bens,
mas a quaisquer sanções determinadas pelo Conselho de Segurança da ONU,
envolvendo terrorismo e seu financiamento, ou proliferação de armas de
destruição em massa. O PL
cita, exemplificativamente, que o mesmo rito sumário – sem autorização prévia
de um juiz, nem possibilidade posterior de exercício de ampla defesa nem
efetivo controle de legalidade por parte do Judiciário – aplica-se também a
sanções como as de entrada e saída de pessoas do território nacional.
(III) Construindo as bases
jurídicas para a “Operação Condor 2.0” ?
O PL dedica um capítulo inteiro,
por fim, a instituir uma nova hipótese de rito sumário para bloqueio de bens de
pessoas acusadas de terrorismo: a requerimento de autoridades estrangeiras.
Para estes casos, os Ministérios da Justiça e das Relações Exteriores avaliarão
se o pedido tem “bases razoáveis”, e encaminharão o pedido à Justiça, que
deverá executar a sanção em até 24 horas, abrindo-se prazo posterior para que a
pessoa acusada possa se defender. Neste caso (contrariamente ao que estabelece
para o cumprimento das sanções do CSNU), o PL explicita que a defesa poderá
alegar a “ausência de bases razoáveis para estabelecer a relação entre os
ativos e os fatos investigados”.
O absurdo, aqui, é a
possibilidade de execução sumária de uma sanção contra uma pessoa física ou
jurídica, sem prévia defesa, a pedido de qualquer autoridade estrangeira, como
resultado de “investigações administrativas ou criminais e ações em curso”. Não
se exige, portanto, que o pedido tenha por base uma sentença judicial, nem
sequer tenha tido qualquer espécie de controle judicial, no país de origem nem
no Brasil.
Suponhamos que os governos do
Brasil, Chile e Colômbia, atualmente governados por forças da direita mais
extremada, articulem-se para promover uma perseguição conjunta a movimentos sociais.
Imaginemos que o Chile – que já utilizou a Lei Antiterrorista, há anos, para
criminalizar a resistência indígena Mapuche – criminalize como terrorista a
Resistência Urbana (articulação internacional de movimentos que atuam nas
cidades, como o MTST, brasileiro, e o chileno Movimiento de Pobladores Ukamau,
entre outros). Sem qualquer processo judicial, caso peça ao Brasil que bloqueie
os bens do MTST, esse pedido será submetido somente à análise dos Ministros da
Justiça e das Relações Exteriores do governo Bolsonaro, antes de ser executado.
Diante do avanço da articulação
internacional da extrema-direita, esse PL torna-se ainda mais preocupante por
facilitar, mediante a suspensão de direitos e garantias, que governos
“cooperem” para perseguirem pessoas e movimentos sociais. Ninguém poderá alegar
surpresa, caso seja um dos instrumentos da edição de uma nova Operação Condor,
levada a cabo entre ditaduras sul-americanas nas décadas de 1970 e 1980, com
cooperação da CIA, para coordenar a perseguição, tortura e eliminação de
militantes de esquerda.
(IV) Um projeto feito sob
encomenda do GAFI: “Guerra ao terror”, Estado de exceção global e o mercado
financeiro
Não é novidade que a “guerra ao
terror” tenha se constituído, em especial após os atentados de 11 de setembro
de 2001, como o grande discurso de justificação do aprofundamento das medidas
de exceção no mundo, em especial por parte dos Estados Unidos, que promoveram
guerras, tortura e grampos ilegais como políticas sistemáticas, além das
dezenas de prisões
secretas ilegais da CIA, espalhadas por diversos países.
Outra tônica da guerra ao terror,
que aparece no PL nº 10.431/2018, tem sido excluir do Poder Judiciário a
possibilidade de apreciar e anular sanções executadas pelos governos, quando a
alegação é de combate ao terrorismo. Por vezes, os próprios juízes acataram,
vergonhosamente, essa barreira ao controle de legalidade dos atos do Poder
Executivo. Foi esse o caso da Suprema Corte dos EUA, no paradigmático e absurdo caso Maher Arar, há
alguns anos: o mais alto tribunal estadunidense recusou-se a sequer examinar o
recurso desse cidadão canadense, que fora arbitrariamente acusado de terrorista
pela CIA, deportado e mantido preso por mais de um ano, sob torturas, em uma
prisão secreta no Oriente Médio, para ao final, constatada sua completa
inocência, ser solto, sem receber qualquer indenização por parte do governo
estadunidense.
Além de promover violações
massivas de direitos, a “guerra ao terror” obviamente não foi eficaz no
enfrentamento ao terrorismo. O objetivo real, claro, nunca foi esse; afinal, os
Estados Unidos, que utilizaram sua força para promover essa política
globalmente, como um dos principais eixos de sua política exterior neste
século, têm uma longa trajetória – que se estende até o presente – de
terrorismo de Estado e de financiamento e apoio a diversos grupos terroristas,
inclusive a Al Qaeda e o Estado Islâmico (ISIS). Sobre o tema, leia-se o
indispensável livro “A
origem do Estado Islâmico: o fracasso da Guerra ao Terror e a ascensão
jihadista”, de Patrick Cockburn.
A “guerra ao terror”, a serviço
do aprofundamento global dos mecanismos de exceção, serve a outros interesses.
Quando observamos qual a origem das pressões para que o Brasil tenha aprovado a
Lei Antiterrorismo, em 2016, e encaminhe agora esta nova lei que suspende
direitos e garantias cidadãs, entendemos que interesses são esses.
Diversos ministros, desde o
governo Dilma até o de Bolsonaro, argumentam que essas Leis seriam necessárias
para atender às recomendações do GAFI, o Grupo de Ação Financeira
Internacional. Criado em 1989, pelos Ministros do G-7 (países mais ricos do
mundo), o GAFI é um grupo intergovernamental destinado a elaborar propostas de
combate à lavagem de dinheiro e, desde o 11 de setembro, ao terrorismo. Suas
recomendações não são vinculantes juridicamente, não geram nenhum tipo de
obrigação do ponto de vista do direito internacional. Há uma chantagem
econômica, porém, por parte do mercado financeiro internacional: as agências
internacionais de classificação de risco ameaçam rebaixar o status de
investimento de um país, caso não cumpra as recomendações do grupo.
Com base nessa coerção econômica
informal, o GAFI tem orientado e pressionado governos a violarem as liberdades
de associação e de manifestação de movimentos sociais. O professor Eduardo
Cambi e o pesquisador Felipe Ambrosio registram que
“em fevereiro de 2012, a
Transnational Institute e a Statewatch, duas organizações internacionais, após
realizarem ampla pesquisa sobre o teor das reformas legais nacionais
deflagradas pela Recomendação Especial VIII do GAFI, demonstraram que o sistema
de avaliação desse organismo aprovou alguns dos mais restritivos regimes
regulatórios de organizações sem fins lucrativos de todo o mundo, e encorajou
fortemente governos que já têm caráter repressivo a introduzir novas regras
capazes de restringir ainda mais o espaço político de ONGs e atores da
sociedade civil” (ver aqui).
Nos Estados Unidos, inclusive, a legislação antiterror tem sido utilizada para
criminalizar grupos ambientalistas, como verifica a
pesquisadora Veronica Freitas.
O relatório da Transnational
Institute e da Statewatch, citado por Cambi e Ambrosio, conclui ainda que a
“falta de controle democrático, fiscalização e accountability” sobre o GAFI
“tem permitido regulações que violam os direitos humanos, a proporcionalidade e
a efetividade”, mas que são propagandeadas como parte dos “padrões da boa
governança” do sistema financeiro internacional.
O Brasil não deve se submeter a
essa chantagem. Não é verdade que o descumprimento de recomendações do GAFI
leve, por si só, ao rebaixamento do status de risco de investimento no país.
Além disso, segundo explicam o professor Marcus Faro de Castro e o advogado
Thiago Jabor (aqui, aqui, aqui e aqui),
as chamadas agências de classificação de risco não passam de empresas privadas,
que adotam critérios desprovidos de transparência, independência ou controle
democrático, com métodos ocultos, muitas vezes protegidos por regras de
propriedade intelectual. Não são instituições confiáveis, não ajudaram a
prevenir a grande crise do capitalismo iniciada em 2007-2008 – nascida
justamente a partir do setor financeiro dos Estados Unidos, que sempre recebeu
a melhor avaliação de risco por parte das agências, que lucram com a ciranda
das bolsas de valores. “Até mesmo entidades como o Fundo Monetário
Internacional (FMI)”, adverte o
professor Marcus Faro, “têm procurado sugerir que as ACRs sejam marginalizadas
do processo de avaliação de riscos financeiros. Contudo, curiosamente, em
nenhum dos seus aspectos, a atuação dessas agências foi considerada ilícita até
hoje”.
Devemos abandonar, ademais, a ilusão
neoliberal com a atração de capitais externos, como suposto grande meio para
garantir o desenvolvimento nacional. Até mesmo economistas ortodoxos, antigos
adeptos dessa tese, como o ex-Ministro de FHC Bresser-Pereira, convenceram-se
de que essa estratégia é capaz somente de reafirmar nossa condição
subdesenvolvida, periférica e dependente. O caminho para o desenvolvimento
brasileiro não é a submissão às exigências dos países e instituições o
capitalismo central, mas a desobediência – segundo argumenta, com base na
observação empírica da história, o economista Ha-Joon Chang, professor de
Cambridge, no já clássico livro “Chutando
a escada”.
Observe-se, por fim, a
seletividade e hipocrisia dos próceres da direita brasileira, em sua oscilação
entre discurso nacionalista conservador e prática de reiterada submissão às
grandes potências. Recusam-se a cumprir a determinação da Corte Interamericana
de Direitos Humanos, que condenou o Brasil por não responsabilizar os agentes
do Estado que praticaram tortura e outros crimes de lesa-humanidade durante a
ditadura empresarial-militar de 1964-85. Recusaram-se a cumprir a recomendação
do Conselho de Direitos Humanos da ONU para que se assegurasse ao ex-Presidente
Lula o direito de ser candidato, no ano passado. Mas querem cumprir com
celeridade as recomendações do GAFI, um mero grupo informal, criado pelos
países ricos para promover seus interesses, e as decisões do Conselho de
Segurança da ONU – órgão que precisa ser reformado, para que construamos uma
ordem internacional multipolar, equilibrada, com maior peso e voz para a
maioria dos países, que são os países periféricos ou subdesenvolvidos.
O efetivo combate ao terrorismo
exige, sim, cooperação internacional, mas a partir de outro internacionalismo:
a partir das periferias do mundo, vocacionado a transformar uma ordem mundial
injusta e violenta, em que o terrorismo aparece como arma dos Estados e
subproduto – injustificável – das situações de caos social e anomia que
produzem.
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