quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

Castel-Branco: Dívidas ocultas deviam ser declaradas "dívidas odiosas"


Economista Nuno Castel-Branco critica a justiça moçambicana por apenas apressar o tratamento do caso das dívidas ocultas após a intervenção dos EUA. Sociedade deve recusar assumir responsabilidade pelas dívidas, defende.

A sociedade moçambicana deve recusar assumir a responsabilidade pelo pagamento das dívidas ocultas, defende, o economista moçambicano Carlos Nuno Castel-Branco, que é a favor da responsabilização judicial dos principais culpados.

O académico falou à DW África à margem do seminário "Desafios Contemporâneos e Mudança em África", que decorreu esta quarta-feira (20.02) no ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa, onde explicou "A lógica histórica do modelo de acumulação de capital em Moçambique". 

DW África: Até onde pode ir a justiça moçambicana para a devida clarificação da questão das dívidas ocultas?

Carlos Nuno Castel-Branco (CNCB): A  justiça moçambicana pode ir até onde quiser. A primeira coisa que tem que fazer é esclarecer o ilícito das dívidas. Portanto, há um processo que foi desencadeado há três anos, quando as dívidas começaram a ser reveladas. São empréstimos ilícitos feitos a entidades privadas com garantias do Governo moçambicano. Estes créditos foram contraídos em condições ilícitas do ponto de vista da lei, da Constituição e da legislação moçambicanas. Isso está demonstrado desde o princípio. Portanto, não há muita dúvida sobre o caráter ilícito destas dívidas. O segundo aspeto, além de violar a Constituição e a legislação específica sobre a gestão das finanças públicas, estes empréstimos têm uma outra característica que é não sabermos em que é que eles foram aplicados. Quer dizer, quem contraiu os empréstimos e foi co-responsável pela sua aplicação não consegue demonstrar em que foram aplicados.

Houve uma auditoria internacional feita pela Kroll, e que produziu um relatório há dois anos sobre a questão, e o que o relatório encontra é que dos 2,2 mil milhões de dólares de créditos é possível identificar a despesa de cerca de 400 milhões em compra de equipamento inútil para as funções a que esses equipamentos se destinavam. Portanto, são os barcos de patrulha e os barcos de pesca, ambos inúteis para essas funções. Mas pelo menos existem e é possível dizer que o dinheiro foi gasto nisto. Mas isso é um sexto do montante da dívida. Os outros cinco sextos onde é que estão? Portanto, não é um assunto duvidoso. O que não está oculto neste assunto é que estas dívidas, estes empréstimos, são ilícitos em duas dimensões: uma é a violação da lei e a outra é uma aplicação desconhecida dos fundos com a responsabilização do Estado.

O Estado ficou responsável por assumir as dívidas destes empréstimos concedidos a entidades privadas, que nunca exerceram nenhuma função a não ser receber o dinheiro e drenar o dinheiro para algum lado. A questão que se coloca é que esta evidência existe. Agora, o processo de identificar quem fez, como é que se fez, responsabilização, etc., é uma coisa que a justiça moçambicana já devia ter feito há muito tempo. E só se apressou no tratamento deste assunto infelizmente quando os Estados Unidos intervieram. Para Moçambique é uma vergonha, é um ato estranho, que é preciso uma potência internacional que está a proteger interesses de especuladores financeiros desse país intervir para decretar que há indivíduos moçambicanos a quem se pode atribuir responsabilidades criminais específicas neste caso, para que justiça moçambicana comece a agir. Para responder à sua pergunta, a justiça pode ir até onde deve ir, até onde a lei obriga a ir e permite ir. Se vai fazer isso ou não depende das condições políticas de Moçambique. Não depende da lei, não depende de limites impostos à justiça por razões legais, depende das condições políticas impedirem a justiça de agir porque a justiça em Moçambique ainda não é independente dessas condições. O que a Procuradoria-Geral da República faz não é independente do ordenamento político e das condições políticas do país. E isso cria um problema.

DW África: Tendo em conta as recentes detenções, faz sentido Moçambique pagar as dívidas ocultas? Na sua opinião, não seria mais sensato declará-la ilegal e recusar o seu pagamento?

CNCB:  Sim, sem dúvida. Esta é uma questão que já estamos a discutir desde que as dívidas foram reveladas. Quando o caso destes empréstimos começou a ser revelado em finais de 2015 e princípios de 2016, nessa altura colocamos logo a questão de que por serem ilícitos por um lado e, por outro lado, ser desconhecida a sua aplicação. Portanto, não sabemos onde é que os empréstimos foram aplicados. Não foram aplicados em benefício do país, porque não sabemos, não há registos da sua aplicação. Há registos de comissões dos bancos, das comissões individuais, há evidência de que há dinheiro e não se sabe em que é que foi gasto. 

Mas é evidente que estas dívidas deviam ter carácter odioso, entrar na categoria de dívidas odiosas que não devem ser pagas. Isso não é por causa das prisões. Isso é por causa da natureza dos empréstimos, que não deviam ser pagos porque foram contraídos ilicitamente, ilegalmente, do ponto de vista da legislação nacional e foram contraídos para objetivos que não são ao serviço do país. Então, o país não tem que assumir isso.Agora, quando nós queremos decretar essas dívidas como não pagáveis, ilícitas, etc., alguém tem que ser responsabilizado por isso. Estes empréstimos foram contraídos por quem exatamente? Foi feito o quê com este dinheiro? Isso tem que ser identificado. A identificar isso há responsabilização e essa responsabilização fica limitada pelo contexto político moçambicano. Não é a lei. Pode ser a capacidade das instituições, pode ser o contexto político, mas não é a lei em si. Portanto, o caráter destes empréstimos é ilícito independentemente de haver prisões ou não.

DW África: O que tem a dizer sobre a repressão contra os que pedem o não-pagamento da dívida - como o caso das t-shirts do Centro de Integridade Pública (CIP)?

CNCB:  É muito estranho que a polícia, os instrumentos de justiça são tão lentos a investigar, a responsabilizar e a punir os autores de crimes contra a soberania financeira e política do país e aqueles que reclamam acerca destes crimes, que denunciam os crimes e que dizem que não querem assumir a responsabilidade pelos crimes são imediatamente perseguidos e reprimidos nas suas manifestações. O facto de as pessoas não serem autorizadas a usar t-shirts a dizer que não pagam as dívidas, a polícia inventou leis, inventou a ideia de que duas pessoas juntas com uma t-shirt dizendo que não paga a dívida é uma manifestação não autorizada, portanto não pode ter lugar. Em Moçambique, a lei não obriga as manifestações a serem autorizadas, obriga a prestar informação, não a autorização. O direito de associação, de manifestação, está garantido pela Constituição. O comandante da Polícia veio dizer que, para defender a ordem pública, a Polícia pode intervir mesmo sem legislação a regular essa atividade. Isso é contrário à Constituição, é uma invenção da Polícia, e, portanto, essas coisas não podem ser aceites.


Há pessoas que no contexto do endividamento ilícito de Moçambique são responsáveis por isso. São responsáveis por 2,2 mil milhões de dólares cujo destino não se sabe e que foram contraídos ilicitamente e que são um encargo financeiro para Moçambique e para os moçambicanos. Esses indivíduos, alguns foram presos agora, mas antes da intervenção americana não tinha acontecido nada. As pessoas dizem "eu não quero pagar essas dívidas, que são ilícitas, que são crimes contra a soberania do Estado", essas pessoas são reprimidas. É bastante estranho que isso aconteça, embora seja compreensível no contexto moçambicano que as instituições públicas estão ao serviço do processo de acumulação privada, ilícito ou lícito, mas estão ao serviço desse processo de acumulação e os instrumentos de repressão do Estado estão ao serviço desse processo de acumulação. Isso não se manifesta só no caso das dívidas ilícitas. Isso manifesta-se por exemplo quando as grandes companhias expropiam terras aos camponeses, os cidadãos protestam e a polícia reage contra os cidadãos, mesmo quando existem violações flagrantes da legislação da terra por parte das companhias. Mesmo que não existam violações da lei, mas existe uma imposição de pobreza, de miseração das pessoas, a polícia vai agir sempre contra quem se manifesta contra o poder do grande capital. A reação das autoridades em reprimir as manifestações sobre a dívida ilícita é reflexo de um Estado ao serviço do grande capital e que usa os seus instrumentos de repressão para proteger o grande capital contra os cidadãos.

DW África: Na sua opinião, quem está a sofrer as consequências do pagamento da dívida?

CNCB:  São os cidadãos moçambicanos em geral, a economia moçambicana de um modo geral, as pressões sobre o Orçamento de Estado que se refletem na austeridade social, as pressões sobre sistema financeiro doméstico por causa do endividamento, que se reflete no encarecimento do capital e nas limitações da disponibilização de recursos para as pequenas e médias empresas. Portanto, é a economia que sofre, é a possibilidade de diversificar a base produtiva que sofre, é a possibilidade de diversificar o emprego que sofre, é a possibilidade de expandir o carácter social do Estado que sofre. E é por isso que a sociedade moçambicana deve recusar assumir a responsabilidade por essas dívidas. 

Esse não é o único problema da economia de Moçambique. É um problema dentro de uma lógica dívido-dependente da economia de Moçambique, mas este é um problema que pode ser resolvido de imediato e não por via de a sociedade assumir a responsabilidade por isso, mas por via da declaração dessas dívidas como odiosas e o seu não pagamento. Claro que o Estado moçambicano não pode fazer isso unilateralmente. Terá que negociar com instituições financeiras internacionais. Terá que garantir apoios políticos domésticos que são massivos e internacionais, que provavelmente vai ser possível conseguir com instituições como o FMI, para poder dar o apoio necessário, tanto apoio social, político-institucional como apoio em termos de capacidade de realização para o Estado conseguir negociar com os credores a eliminação desta dívida das contas públicas.

DW África: Que lições Moçambique poderá retirar de todo este processo?

CNCB: Há um assunto mais geral da economia de Moçambique, que tem que ser tratado, tem que ser concebido de forma mais estrutural, mas não vamos tratar desta questão agora. Há um aspeto que é o funcionamento das instituições, dos processos que permitem ou não que estas coisas aconteçam. Portanto, além da transparência, é o problema da maneira como os processos de decisões dentro do Estado acontecem, a relação desses processos com a legislação, com a Constituição. O poder da lei sobre esses processos, as decisões de investimento público, as decisões de despesa pública, etc., são tomadas, monitoradas. Outro lado do assunto é o funcionamento da justiça, do ponto de vista de ser célere e rigorosa no tratamento de casos desta natureza. Mas há um assunto mais geral que se prende com a lógica de acumulação dívido-dependente que Moçambique tem e que tem que ser tratado.

É um problema mais geral das dinâmicas sociais e económicas de Moçambique e que tem que ser resolvido, tem que ser tratado de uma forma estratégica em benefício amplo da sociedade moçambicana e não apenas em benefício da acumulação privada de capital por um grupo oligopolista construído à volta dos poderes políticos em Moçambique. Depois concentram muito poder capaz de tornar possível estas situações com impunidade, que foi o que aconteceu até agora. Um dos reflexos da pobreza institucional, da pobreza da democracia nacional, é que estas coisas que deviam ser normais - alguém que cometeu crime contra as finanças públicas deve ser investigado, responsabilizado e levado a tribunal, e chegar às conclusões que se chegar - quando isso acontece ninguém acredita. Porque é que não acreditam? Porque é um contexto institucional completamente descredibilizado.

João Carlos (Lisboa) | Deutsche Welle

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