"Fernando Pessoa, dono desse ignóbil pensamento, é a figura escolhida pela CPLP para patrono de um projecto de intercâmbio universitário no Espaço de Língua Portuguesa. Essa iniciativa, cópia do programa europeu Erasmus, visa a educação, formação e mobilidade de jovens do espaço de língua portuguesa, oferecendo-lhes oportunidades de estudo, aquisição de experiência e voluntariado por um período curto num dos países da CPLP à sua escolha. Que Portugal, país onde a mentalidade esclavagista fascista ainda é dominante, tenha escolhido promover, branquear essa figura sinistra não me espanta. Agora, o que verdadeiramente me deixa perplexa é a aceitação pelos países africanos, as vítimas da escravatura."Luzia Moniz* | opinião
Aos 28 anos escreveu: “A escravatura é lógica e legítima; um zulu (negro da
África do Sul) ou um landim (moçambicano) não representa coisa alguma de útil
neste mundo. Civilizá-lo, quer religiosamente, quer de outra forma qualquer, é
querer-lhe dar aquilo que ele não pode ter.
O legítimo é obrigá-lo, visto que
não é gente, a servir aos fins da civilização. Escravizá-lo é que é lógico. O
degenerado conceito igualitário, com que o cristianismo envenenou os nossos
conceitos sociais, prejudicou, porém, esta lógica atitude”.
Em 1917, aos 29 anos continua: “A escravatura é a lei da vida, e não há outra
lei, porque esta tem que cumprir-se, sem revolta possível. Uns nascem escravos,
e a outros a escravidão é dada.”
Aos 40 anos consolida a sua ideologia racista, escrevendo: “Ninguém ainda
provou que a abolição da escravatura fosse um bem social”. E ainda: “Quem nos
diz que a escravatura não seja uma lei natural da vida das sociedades sãs”?
Fernando Pessoa, dono desse ignóbil pensamento, é a figura escolhida pela CPLP
para patrono de um projecto de intercâmbio universitário no Espaço de Língua
Portuguesa. Essa iniciativa, cópia do programa europeu Erasmus, visa a
educação, formação e mobilidade de jovens do espaço de língua portuguesa,
oferecendo-lhes oportunidades de estudo, aquisição de experiência e
voluntariado por um período curto num dos países da CPLP à sua escolha. Que
Portugal, país onde a mentalidade esclavagista fascista ainda é dominante,
tenha escolhido promover, branquear essa figura sinistra não me espanta. Agora,
o que verdadeiramente me deixa perplexa é a aceitação pelos países africanos,
as vítimas da escravatura.
Se foi para a isso que Portugal fez a guerra para assumir o secretariado
executivo da CPLP, tudo indica que a coisa começa mal.
Denunciei isso mesmo, esta quarta-feira, na Assembleia da República de
Portugal, durante a cerimónia de abertura do ano da CPLP para a Juventude, onde
estavam deputados portugueses, governantes dos Estados da CPLP, jovens,
activistas, intelectuais e académicos afro-descendentes, brasileiros,
portugueses e africanos.
Não sei se Pessoa é ou não bom
poeta. Isso pouco interessa para o caso. A minha inquietação é o uso da CPLP
para branquear o pensamento de um acérrimo defensor do mais hediondo crime
contra a Humanidade: a escravatura.
Atribuir o seu nome a um projecto que envolve jovens, descendentes dos
escravizados, configura um insulto fascista.
Na AR alguém, para tentar justificar o injustificável, alegou que as convicções
esclavagistas fascistas de Pessoa reflectem o pensamento da sua época,
ignorando que, por exemplo, Eça de Queirós, contemporâneo de Pessoa, era contra
a Escravatura e que, quando Pessoa escreve tais alarvidades, já a escravatura
tinha sido abolida oficialmente. Outros diziam que precisamos de olhar para o
futuro, esquecendo o passado. Como se Pessoa fosse futuro. Pessoa representa o
que é preciso combater hoje para defender o futuro. Como construir um futuro
salutar sem olhar para os erros do passado?
E se nos cingirmos apenas ao “pensamento da época”, qualquer dia temos o nome
de outro colonialista-fascista António de Oliveira Salazar atribuído ao
Conselho de Finanças da CPLP, com o argumento de que “tinha as contas em ordem”
e de que foi “fascista à época”.
Se se pretende criar uma comunidade envolvendo as populações e não se limitando
aos políticos, mais ou menos distraídos, é imperativo que o nome de Fernando
Pessoa não figure em projectos comuns. Em sua substituição, sugeri Mário Pinto
de Andrade, académico, um dos mais brilhantes intelectuais do espaço de língua
portuguesa.
Angolano que iniciou o seu
percurso académico em Angola, passando por Portugal antes de ser ministro da
Informação e Cultura na Guiné Bissau, que teve passaporte cabo-verdiano e deu
aulas em Moçambique.
Espera-se dos países africanos membros que revertam essa situação, opondo-se ao
nome de Fernando Pessoa, mesmo que com esse digno gesto se crie um novo
irritante. Os irmãos de Cabo verde, que neste momento presidem a CPLP, têm uma
responsabilidade acrescida nesta questão. Se Portugal olha para a CPLP como um
instrumento de dominação dos outros, cabe-nos a nós, africanos, impedir que
isso aconteça.
*Jornal de Angola, opinião
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