Muito provavelmente Armando
Guebuza é o Presidente mais apedrejado da história de Moçambique. Será esse o
preço a pagar em nome de uma revolução incompreendida e mal sucedida? Que moveu
afinal a Presidência de Guebuza?
Quando assumiu a Presidência de
Moçambique, em 2005, muitos viam-no como o Messias que faria as reformas que o
país exigia. Armando Guebuza era visto como homem de pulso, afinal o seu
passado político tinha deixado referências. Mas não foi preciso muito tempo
para que reinasse uma deceção generalizada em relação ao Presidente. Nos
momento críticos nem sempre assumiu posicionamentos esperados pela maioria. E a
sua mutação, aos olhos do povo, foi tal que já na reta final do seu mandato era
visto como Judas. E as famigeradas dívidas ilegais contraídas pelo seu Governo
foram determinantes para essa má imagem. Mas entre esses dois extremos, Messias
e Judas, existe uma outra faceta pouco explorada pela opinião
pública. Haverá nele um revolucionário incompreendido? Conversamos sobre
Armando Guebuza com o sociólogo moçambicano Elísio Macamo:
DW África: Embora em Moçambique a
independência muitas vezes seja vista como um processo concluído, ela
mostra-se, na verdade um processo inacabado. Viu na presidência de Armando
Guebuza algum contributo para esse processo contínuo?
Elísio Macamo (EM): Nenhuma
independência é um processo concluído, a independência é uma espécie de
plebiscito de todos os dias. É a maneira como a sociedade política, sobretudo,
lida com os desafios que resultam da própria independência, como gerir a
liberdade e as expetativas. De modo que nunca poderemos dizer que a
independência está concluída, porque a história não se faz dessa maneira. Nesse
sentido penso que a Presidência de Guebuza foi marcante, naturalmente teve as
suas próprias caraterísticas. Teve um desafio completamente diferente dos dois
anteriores Presidentes, sobretudo no que diz respeito ao facto de que ele foi
chamado para consolidar o processo de paz que foi iniciado e mais ou menos fechado
pelo seu antecessor Joaquim Chissano, ao mesmo tempo que procurou incutir uma
nova dinâmica na maneira de fazer politica, na questão da autonomia,
auto-estima, empreendedorismo, mas penso que colocar isso no topo da sua
política revela um político astuto e com visão e que sabe o que quer fazer.
Nesse sentido acho que foi extremamente marcante.
DW África: Relativamente à esta
causa, em que lugar colocaria Guebuza, se comparado com os outros Presidentes
moçambicanos?
EM: A comparação que faz
mais sentido é com Joaquim Chissano, que teve missões bastante
claras. Chissano teve de encetar as negociações para por termo a
guerra de desestabilização movida pela África do Sul através da RENAMO contra o
projeto político que se instalou logo depois da independência. Guebuza levou o
processo de paz até ao fim ao mesmo tempo que tinha a missão de repensar o país
e penso que foi o que ele fez. Não incluo Machel porque o período depois
da independência foi completamente atípico. E para mim foi uma grande
perda de tempo. Esse Governo praticamente criou as condições para todo o tipo
de problemas que tivemos mais tarde, um projeto muito particularista, um
projeto que refletia as preferências políticas de algumas pessoas, um projeto
completamente sem respeito pelos direitos das pessoas, um projeto que não tinha
nenhuma noção de dignidade para os moçambicanos. No fundo um Governo e um
partido que até certo ponto traíram a sua própria luta. Não há como comparar
Guebuza e Chissano, de um lado, e Machel, do outro, ainda que tenha feito parte
do mesmo partido. Penso que cada um deles esteve a altura, Chissano e Guebuza,
que se colocaram no momento em que assumiram o poder.
DW África: Sei que olha para a
criação das empresas envolvidas nas dívidas ilegais como um engajamento de
Guebuza no processo contínuo da conquista de independência, na medida em que
duas delas iriam, entre outras coisas, garantir a soberania do país. Mas o
corporativismo dita as regras do jogo mundial... Será que os ideais de Guebuza
foram vítimas dessa ordem mundial?
EM: Acho que o projeto de
Guebuza foi vítima de duas coisas: por um lado, foi vítima da cultura política
implantada pela FRELIMO, sobretudo a FRELIMO gloriosa, uma FRELIMO que sempre
se confundiu com o povo, uma FRELIMO fechada, pouco comunicativa, pouco
sensível ao diálogo, inclusivamente dentro do próprio partido. Quando digo que
o projeto foi vítima da cultura política dessa FRELIMO quero dizer
essencialmente duas coisas: uma, é que justamente por causa dessa ideia de
confundir a FRELIMO com o destino de Moçambique nunca houve uma cultura de
pensar fora da FRELIMO, que fora da FRELIMO possam haver igualmente ideias boas
para Moçambique e isso faz com que fora do partido a FRELIMO só veja inimigos
da pátria. E isso não cria condições para uma cultura de debate aberto, foi uma
das coisas que falhou. E o outro fator é a intransparência que foi
determinante, num contexto em que as coisas são a porta fechada e que existe
essa ideia de que todos os outros são inimigos da pátria é muito difícil ouvir
uma voz sensata. Todo o contexto dentro do qual o país deve se desenvolver é e
vai ser sempre hostil, acarreta muitos riscos. Essa decisão foi
propositadamente tomada a revelia dos doadores justamente porque existe a
sensação de que aquilo que o nosso Governo e que os moçambicanos pensam que
podia ser bom não são do interesse dos doadores, que existe uma intenção
malévola da parte dos doadores para impedir que as coisas sejam feitas.
Naturalmente que isso pode criar condições para que haja esse tipo de atuação
que vimos e com resultados catastróficos como agora estamos a saber.
DW África: As empresas em causa
sob batuta inteiramente nacional são questionadas a nível internacional, mas se
houver participação externa, como de Erik Prince por exemplo, já pouco se
questiona externamente. Que leitura faz deste paradoxo?
EM: Sim, esse tipo de coisas
acontecem, mas não iria atribuir assim tanto peso a isso. É verdade que as
condições em que operamos e atuamos são naturalmente difíceis. Há sempre a
suspeita que não somos sérios, que somos corruptos por natureza e por causa
disso dá-se o benefício da dúvida mais a um estrangeiro, sobretudo a um
estrangeiro conhecido. E Erik Prince com todas as suas ligações a segurança
norte-americana é uma pessoa conhecida e até certo ponto de confiança e nós não
gozamos disso. Mas penso que isso não é assim tão importante, é normal,
infelizmente é assim e temos de aceitar. Talvez tenha um valor mais académico
que é de chamar a nossa atenção para o facto de que isto também cria
condições para que governantes de países em desenvolvimento também não tenham confiança
nos doadores e que procurem fazer coisas a revelia deles, coisas que acham que
fazem sentido e que pensam que se os doadores não vêm que essas coisas fazem
sentido é porque os doadores têm outras motivações.
DW África: Acha que Guebuza está
a pagar por ter ousado nos seus sonhos?
EM: Não, não acho que esteja
a pagar pelos sonhos que teve. Ele é um homem ousado, pelo que sei dele pela
imprensa, livros e por aí fora, tenho a impressão que é uma pessoa ousada, que
arrisca e assume responsabilidades pelos riscos. Ele arriscou, e conforme ele
disse quando foi ouvido no Parlamento, com o tipo de informações que teve na
altura ele voltaria a tomar a mesma decisão. Para mim isso é extremamente
coerente e aumenta a minha admiração por ele e mostra, de facto, que ele tinha
um projeto e esperava através desta decisão, que depois se revelou má,
esperava realmente executar esse programa que tinha. Portanto, não acredito que
esteja a pagar pela sua ousadia numa posição que deve assumir responsabilidade
pelo que fez conscientemente. E acho que é este tipo de políticos que
precisamos em Moçambique que sempre precisamos, mas que infelizmente neste
momento não temos.
DW África: Em que medida a
pujança de Guebuza, enquanto homem de negócios, prejudicou a sua imagem e
atuação enquanto estadista?
EM: De facto, existe esse
mito de que Guebuza é um homem de negócios e que a sua atuação como político
foi pontuada por essa caraterística, mas penso que esse é o aspeto menos
importante da personalidade dele. Aliás, essa questão de ser homem de negócios
manifesta o que me parece ser a sua verdadeira caraterística que é a de um
homem que sabe o que quer e que quer fazer o que quer e que fica impaciente
quando o que quer não é feito. Nesse sentido penso que a nossa atenção devia ir
justamente para essa caraterística pessoal e não tanto para o facto de ser
homem de negócios. Sei que as pessoas enfatizam esse lado para depois poderem
falar das questões de corrupção e por aí fora, mas penso que essas questões são
menos importantes. Tivemos um Presidente que sabia o que queria, mesmo se não
tinha as pessoas certas para traduzirem isso em políticas claras, mas sabia o
que queria. Teve iniciativas extremamente importantes, inéditas no contexto
político do pós-independência como a ideia dos sete milhões de
meticais para os distritos, uma ideia genial que mostrava pela primeira
vez em Moçambique, depois que houve a abertura do sistema político, pela
primeira vez um presidente da FRELIMO com uma ideia clara do que queria
fazer para tornar o país melhor.
DW África: No famigerado caso das
dívidas ilegais Guebuza era a autoridade máxima do país. Não terá ele uma cota
de responsabilidade, mesmo que se prove que os ilícitos tenham sido feitos por
gente do seu Governo?
EM: Ele tem toda a
responsabilidade pelo que aconteceu e penso que ele próprio não vai fugir a
essa responsabilidade. Pelo que sei dele, já houve outros casos em que esteve a
frente, por exemplo lembro-me da famosa operação 20-24 [ordem de expulsão do
país em 24 horas, com direito a 20 quilos de bagagem], ele era o ministro da
Administração Estatal no Governo de transição, sei de várias fontes que houve
outras pessoas que foram responsáveis por isso [e nunca assumiram], mas ele
sempre assumiu a responsabilidade. Segundo soube de terceiros, ele assumiu
porque era o ministro e não iria passar a responsabilidade aos seus
subordinados. Do ponto de vista jurídico não sei, porque há muita coisa que a
gente ainda não sabe em relação a este assunto. A forma como a acusação vem dos
EUA dá a impressão de que todo este negócio foi montado para as pessoas
burlarem. E até que provem o contrário, eu não acredito nisso. Acho que houve
uma intenção genuína de fazer alguma coisa nessas áreas que foram identificadas
e penso que o Presidente Guebuza também acreditou na viabilidade e importância
disso para o desenvolvimento do país. O que ele não acautelou ou nenhum de nós
acautelamos foi a possibilidade de aproveitamento por parte de várias
pessoas que estiveram envolvidas nisso, não só da parte do Governo, da parte
dos serviços de segurança, como também da parte dos parceiros estrangeiros.
Essa é um outra questão e não tenho resposta para isso, mas penso que do ponto
de vista político não há como fugir a isso uma vez que ele era o Presidente.
DW África: Face a "ordem
mundial" prevalecente e aos apetecíveis recursos que Moçambique tem,
acredita que o país está condenado a permanecer longamente no estado disfórico
em que se encontra?
EM: Os recursos não são um
problema, é verdade que os académicos gostam de falar da maldição dos recursos,
gostam de falar da Líbia, da Síria e agora estão a falar da Venezuela, da
cobiça do imperialismo, das potências capitalistas, por aí fora, e depois temos
o caso de Cabo Delgado que dá a impressão de que realmente ter recursos é um
risco. Acho que não é um grande problema, muito mais importante do que isso é
ter Governo, não importa de que partido, que tenha uma visão e que saiba para
onde quer levar o país e que faça isso. Tivemos isso com Guebuza, apesar
de todos os problemas que estamos a ter agora. Ele pode não ter sido capaz de
traduzir essa visão da melhor maneira possível, mas tivemos uma pessoa que
tinha uma ideia clara do que esse país deveria ser. É isso que precisamos para
evitar todos os males que são associados a posse de recursos. E muito importante
aqui não é ter uma política económica, não é ter uma ideia de como lidar com os
investidores, mas é de saber que princípios queremos promover e que valores
precisam de ser protegidos para que a nossa independência continue a ter
significado para nós. Enquanto tivermos Governos que não tenham noção disso vai
ser difícil e esse que é o maior problema, muito maior do que ter recursos.
Nádia Issufo | Deutsche Welle
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