quinta-feira, 11 de abril de 2019

Crise na Argentina: a fome já atinge a classe média


A assistência aos bandejões comunitários da cidade cresceu entre 40% e 50% no último ano. Até as famílias de classe média frequentam esses locais. Mas o governo portenho destina cada vez menos fundos ao programa que busca diminuir a desigualdade

Os bandejões comunitários de Buenos Aires vêm contando com uma presença cada dia maior de pessoas nos últimos anos, o que inclui muitas famílias de classe média que precisam de uma alternativa mais barata para sua alimentação.

Esses centros que oferecem refeições a preços muito baratos, dedicado a pessoas de poucos recursos, tiveram um aumento entre 40% e 50 nos últimos 12 meses, o que significa que são cada mais as famílias que os frequentam, por ser a melhor forma de se alimentar sem ter que gastar tanto dinheiro, incluindo pessoas que podem ser consideradas de classe média, mas que já não possuem renda suficiente para manter o padrão de vida de outros tempos.

Essa realidade evidencia como a situação social na cidade de Buenos Aires tem piorado cada vez mais. A indigência se duplicou nos últimos três anos (período em que Mauricio Macri está no poder) e a pobreza cresceu em 20%. Assim, pode-se dizer que um de cada cinco habitantes da capital argentina é pobre, dado vergonhoso para a cidade mais rica de um dos países mais ricos da América Latina.


O prefeito da cidade, Horacio Rodríguez Larreta (macrista), destina cada vez menos orçamento ao programa Cidadania Portenha, cujo objetivo é diminuir a desigualdade através de subsídios orientados a garantir o acesso a produtos de primeira necessidade, o cuidado da saúde e a continuidade educativa.

Segundo um informe realizado pelo Centro de Estudos Metropolitanos (CEM), “o programa vem perdendo muitos recursos nos últimos quatro anos”, e destaca a quantidade de lares ajudados por outras políticas relacionadas a ele, o que também vem diminuindo, seja por redução orçamentária ou por não execução das verbas destinadas.

“A análise do orçamento do programa Cidadania Portenha tem como objetivo determinar o investimento realizado pela cidade para os setores mais vulneráveis. O que observamos claramente é que a cidade mais rica do nosso país tomou a decisão de esvaziar programas sociais e de assistência a esses setores, justamente quando o país vive um aumento da indigência”, declarou Nicolás Trotta, reitor da Universidade Metropolitana para a Educação e o Trabalho (UMET), em entrevista ao diário Página/12. A UMET é uma das casas de estudo que integra o CEM.

O benefício outorgado pelo programa consiste em um subsídio mensal, através da entrega de um cartão de compra pré-pago, emitido pelo Banco Ciudad de Buenos Aires para ser utilizado somente na Rede de Comércios ligados ao programa, exclusivamente para a compra de alimentos, produtos de limpeza e higiene, combustível para cozinha e artigos escolares.

As cifras são contundentes. Segundo dados do Departamento Geral de Estatísticas e Censos da cidade, no terceiro trimestre de 2018 havia 639 mil pobres na cidade, dos quais 198 mil estavam em situação de indigência. Apesar do aumento da pobreza e da indigência na cidade, as verbas para as políticas sociais que permitem conter e dar resposta à crise definharam, segundo o informe do CEM: “entre 2015 e 2019, as metas orçamentárias do programa Cidadania Portenha se mantiveram em valores suficientes para cobrir até 96 mil lares em situação de pobreza, embora os lares vulneráveis tenha passado de 123 mil a 191 mil (55% mais) no mesmo período”.

“O que se observa é que o nível de recursos investidos é marcadamente inferior ao próprio crescimento do orçamento do governo portenho. Se analisamos o período entre 2015 e 2019, o crescimento nesse aspecto foi de 276%, tendo em conta esses anos de forte inflação e também de aumento da capacidade arrecadatória do Município. Mas quando observamos os recursos destinados ao programa, vemos que foi de 150%. Isso está claramente abaixo da inflação – que na cidade de Buenos Aires se calcula em 185% durante o período de Mauricio Macri na Casa Rosada – e do crescimento do orçamento como um todo”, detalhou Trotta.

“Isso demonstra a falta de acompanhamento do governo portenho aos setores que mais sofrem o impacto das políticas macroeconômicas nacionais”, analisou o acadêmico.

Trotta aponta que há dois fatores primordiais que explicam o aumento da pobreza e da indigência não só na capital, mas em todo o país: a enorme perda do poder de compra dos salários (só em 2018 foi de 11%) e a destruição dos postos de trabalho. Nesse sentido, o advogado e docente universitário insiste no impacto da crise sobre a classe média. “Os setores médios estão sofrendo uma crise profunda, em parte por esta queda da capacidade de compra do salário, que é acompanhada por um aumento irracional das tarifas dos serviços públicos, porque há certos gastos que não podem ser evitados (como água, luz e gás) e que tiveram aumentos de 2000% em média. Se além disso contamos também o aumento da média dos aluguéis, acaba impactando fortemente as famílias de setores médios, que se viram empobrecidas neste período”, sustentou.

Nessa mesma linha, a deputada Claudia Neira, da Assembleia portenha, assegura que a assistência aos bandejões da cidade aumentaram “principalmente porque as famílias de classe média passaram a precisar deles, especialmente no fim do mês, quando é preciso ajustar os recursos que restam até o próximo pagamento, embora também há os que vêm regularmente durante o mês”, relata.

“Os bandejões comunitários estão realmente lotados, atendendo mais gente do que o esperado. Temos um caso, no bairro Mugica, onde havia mais ou menos 500 por dia até o primeiro semestre do ano passado, e agora são mais de mil diariamente, e as rações enviadas pelo Ministério de Desenvolvimento Social não cobrem nem um terço desse aumento de necessitados”, denunciou Neira, em diálogo com o Página/12.

“Há uma situação de desamparo que é sentida por boa parte dos portenhos. A fome reapareceu como um fator determinante. E isso não significa pensar que antes não havia pobreza, mas há muitos anos não se via uma fome como se vê hoje na Argentina, e particularmente na cidade de Buenos Aires. Tampouco se via uma classe média trabalhadora sofrendo a situação de desespero que vemos agora”, analisou.

Ademais, existe um brutal impacto de gênero da crise social e econômica. “As mulheres são as mais golpeadas pela crise, e ao mesmo tempo são as que mais atuam para conter a fome na Argentina”, comenta a deputada, e completa: “são elas que devem buscar novos recursos, as que vão aos bandejões pedir comida e as que passam horas pesquisando preços para que todos possam comer com o pouco que podem comprar; além de serem também as que se expõem, sobretudo nos bairros mais vulneráveis, resolvem as necessidades do bairro e trabalham grátis nos bandejões, cozinhando horas e horas para milhares de garotas e garotos”.


Classe média arrependida de votar em Macri

Tomando
como base o resultado eleitoral das Legislativas de 2017, o presidente Mauricio Macri já perdeu um terço dos votos que sua coalizão conseguiu a nível nacional naquele então.

Em números concretos, há dois anos atrás a coligação Cambiemos (“mudemos”) obteve cerca de 42% naquelas Legislativas, e hoje, sua intenção de voto está abaixo de 30%, segundo as estimativas publicadas nas últimas semanas e reunidas em levantamento do diário Tiempo Argentino.

Essa drenagem do potencial eleitoral se dá, sobretudo nos setores de classe média, que foi a base social que sustentou o projeto de poder do macrismo. Quais são os motivos deste distanciamento? A qual opção política essas pessoas estão migrando?

“Macri tem um eleitorado fiel de uns 24%, que é mais ou menos o que ele conseguiu nas primárias de 2015. É a proporção histórica da direita argentina”, comentou o sociólogo Carlos De Aneglis, coordenador do Observatório de Opinião Pública da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires (UBA).

“Há um setor que, em outra época votou em Ricardo López Murphy, ou em Álvaro Alsogaray (referentes de centro-direita). Macri sempre teve o cuidado de conservar um eleitorado diversificado, mas agora não está tendo sucesso nesse sentido”, agrega.

Numa análise rápida, a primeira impressão seria que o presidente perde este apoio pela crise econômica, pelos aumentos intermináveis das tarifas de serviços básicos (água, luz, gás, combustíveis) e a queda da qualidade de vida de quase todos os que vivem de rendas fixas. Sem negar estes elementos, De Aneglis acrescenta mais alguns: “este voto mais diversificado, de classe média e classe média baixa, é o que está mais decepcionado. Primeiro, porque no começo não viu o chefe de Estado decidido a respeito do programa econômico, e logo porque quando se mostrou decidido começou a afogá-los com os ajustes e aumentos. Então, essas pessoas tiveram que passar os filhos da escola privada à pública, venderam o carro, não viajaram nas férias, entre outras coisas”.

O sociólogo explica que “Macri é visto hoje como uma figura mais distante, e esse é um aspecto contraditório da sociedade, porque é como se esperassem uma liderança mais forte, embora isso era justamente o que os incomodava em Cristina Kirchner em 2015. O fato de Macri tomar 40 dias de férias causou uma forte indignação nessa classe média que agora vivem em problemas. São muitos fatores que foram se somando”.

O consultor comparou a atual situação do macrismo com o problema que o kirchnerismo enfrenta, a respeito das causas judiciais contra Cristina e outras figuras do seu governo – o que certamente dificulta a relação destes com o eleitorado de classe média. “Uma das coisas que mais afetou o kirchnerismo e sua imagem perante a classe média foi quando começou a negar problemas que as pessoas sentiam em sua vida cotidiana, como a inflação e o aumento da insegurança. E Macri está cometendo o mesmo erro agora, negando os problemas”.

Sobre a tradução eleitoral desse processo, De Angelis sustenta que esses votos fugitivos de classe média estavam buscando uma opção “até que surgiu a possibilidade de uma candidatura de Roberto Lavagna (ex-ministro de Néstor Kirchner, e economista de perfil neoliberal moderado). Cerca de 60% dos votos perdidos foram captados por ele, e a maioria dos demais está indeciso agora”. Colocando em números mais claros: isso significa que do percentual entre 12% e 14% que o economista mostra nas pesquisas, cerca de 7% vem dos arrependidos com o macrismo.

Já o consultor político Ricardo Rouvier considera que o motivo central da queda no apoio ao presidente é econômico, embora se complemente com um efeito político. “Os problemas da economia comprovam uma falta de governabilidade. A sociedade sente que o governo é fraco em seu enfrentamento aos fatores econômicos. As pessoas querem sentir que o presidente conduz, mas a atual gestão mostra uma grande fragilidade. Começou seu mandato forte, muita gente pensou que podia ser um processo transformador. Entretanto, está terminando em grandes problemas. Não foi capaz de controlar o dólar nem a inflação, e dá uma imagem de incapacidade política, e de não ter autoridade para governar”.

Rouvier destaca também destaca que isso “tem um efeito muito negativo no voto a favor do macrismo, especialmente aquela pessoa que não o apoiou por convicção, mas sim por querer provar uma alternativa ao kirchnerismo”.

A incógnita que fica no ar é se essa drenagem já se esgotou ou se a crise econômica argentina, que ainda está vigente, fará com que essa goteira seja cada vez mais forte.

*Com informações em textos de Gisela Marziotta, do Página/12, e de Damián Verduga, do Tiempo Argentino

Carta Maior* | Foto: Joaquín Salguero

Este texto faz parte do especial "Argentina em Crise"

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