Fernando Tordo é o entrevistado
de hoje do Vozes ao Minuto. Fernando Tordo regressou e
multiplicou-se.
Em 'Duetos - Diz-me Com Quem
Cantas' redescobrimos Fernando Tordo na mais variada companhia. Há veteranos
como Rui Veloso e Jorge Palma a pegar em clássicos do cantor e a torná-los
também seus. Há a voz quase sussurrada de Rita Redshoes e a inimitável Maria
João num jazz que não pede licença para abrir caminho. Há
Héber Marques a tratar 'Adeus Tristeza' com todo o cuidado pop e a
elasticidade das palavras de Ary dos Santos na letra de 'Tourada',
aqui cantiga e rap num só.
Em conversa com o Notícias
ao Minuto, o cantor falou de 'Duetos' e da Eurovisão, de Portugal e do Brasil
de diferentes facetas que conheceu. Recordou ainda a luta que teve de
vencer contra o alcoolismo e o dia em que se viu na 'mira' de uma "corja
de bandidos" - palavras suas - porque anunciou que ia
partir, deixando para trás um país então governando pela troika e pelo
governo de Passos Coelho.
Aos 71 anos, o brilho é
semelhante quando se ouve Fernando Tordo falar da música que já fez e da que
ainda vai fazer. Está lá o tal fascínio de miúdo. Mas também a voz de quem
leva décadas de carreira musical, com canções que ainda serão ouvidas
daqui a muitos anos. "Haverá alguma coisa mais extraordinária do que
isto?".
Já tinha imaginado certas vozes
com certas músicas ou os convidados fizeram as suas escolhas?
Alguns ou tinham de ser ou já
estavam previamente marcados. O Rui Veloso canta comigo o ‘Só Ficou o Amor por
Ti’, uma canção que já me tinha dito há muitos anos que gostava muito. Em 2008
cantei-a no Coliseu com orquestra e convidei-o. O Jorge Palma, que é meu amigo
há 50 e tal anos, sempre me apercebi que ele gostava muito do ‘Cavalo à Solta’.
Nalguns casos as escolhas eram
muito claras, é isso?
Sim. Porque também lhes
facilitava as coisas e vejo isso por mim. Se me convidarem para apresentar uma
canção de outra pessoa, apesar de a conhecer, há sempre um trabalho para fazer.
E é preciso saber que estas pessoas são profissionais e não têm todo o tempo do
mundo.
As agendas são sempre
complicadas.
Sim, e por isso demorou tanto tempo
a gravar. Houve conciliações de agendas muito difíceis. Alguns destas artistas
passam muito tempo fora.
Quanto tempo demorou a fazer o
álbum?
Foram 14 meses. Para mim foi
completamente inesperado precisamente por causa de dificuldades várias, com
datas e horários, e depois porque foi um disco muito trabalhado, em que cada
caso é um caso. Quando se começa a fazer uma mistura com o Tim é diferente do
que é com o Camané ou com a Maria João. São coisas que têm de ser respeitadas.
Não se convida uma pessoa para cantar num disco para depois ser ‘Agora só
cantas isto’.
Houve várias razões para se
estender no tempo, como nunca em toda a minha carreira. Mas ficou feito. Estou
satisfeito. Muita gente dirige-se a mim com surpresa, e isso é interessante,
porque o objetivo do disco também era esse.
Alguns dos músicos com quem
gravou têm menos anos de vida do que o Fernando Tordo tem de carreira. Como
funcionou quando chegavam ao estúdio?
Sim, muitos deles. O Héber
Marques, que eu não conhecia pessoalmente, canta muito bem a ‘Adeus Tristeza’.
Ele podia ir um pouco intimidado, mas pôs-se à minha frente e mal abriu a boca
para cantar… não é por acaso, é a primeira canção do álbum, com aquele ambiente
orquestrado. Estava apreensivo para ver como se ia dar com aquilo e deu-se
muito bem.
Há ainda uma pessoa que não
conheço pessoalmente mas que vou conhecer em breve, a Capicua, que faz um rap
com a ‘Tourada’. Quando decidi que ia ser um rap mesmo assim não queria uma voz
masculina e isso não é a coisa mais fácil de encontrar no nosso país. Sabia da
Capicua porque ela ganhou no mesmo ano do que eu prémios da SPA,
conhecia-a era da Internet. É uma pessoa muito interessante. Quando lhe liguei
estava muito grávida nessa altura mas estava em estúdio. Gravou , e
enviou-me uma coisa muito bem interpretada e depois misturámos.
É uma letra muito interessante,
do Ary dos Santos, com ritmo.
Como a letra não tem uma métrica
própria da linguagem rap, o que ela fez foi tudo muito seguido, o que cria um
contraste comigo a cantar, enquanto a voz dela é injetada àquela velocidade.
Houve uma versão que o tenha
surpreendido particularmente?
Há momentos muito especiais. Por
exemplo a ‘Rato Roeu a Rolha’, que é próximo do jazz e já foi gravado com
orquestra. Também queria uma voz feminina e só havia uma pessoa em Portugal que
também tinha o sentido de humor, não só a interpretação – e aquele texto é
muito difícil de dizer, só o consigo fazer cantando. E a Maria João fez uma
interpretação extraordinária.
Mas para mim há muitas surpresas.
O trabalho feito com a Carminho, que também foi preciso contornar dificuldades
com a tonalidade. Às tantas como que tive de improvisar sobre a melodia
original. Mas não houve problemas que como fui eu que fiz [a canção original],
abusei à vontade.
E houve alguma nova versão que
depois de ouvir o tenha feito pensar ‘Porque é que não a fiz logo assim na
primeira vez’?
As canções estão separadas por
muitos anos. Não seria possível, até pela idade da maior parte dos intérpretes
– alguns ainda nem eram nascidos [risos]. Mas o resultado final é de uma
satisfação muito grande. Primeiro, de gratidão para com eles. Depois, porque
são tão bons intérpretes que podem pegar nas coisas mais variadas e pode-se
confiar, são grandes profissionais. Cantar com o Camané, por exemplo, é como
estarmos aqui os dois à conversa. A descontração é muito grande, até porque ele
conhecia algum do meu reportório. É a chamada ‘economia de horas de estúdio’.
Não demora muito tempo e a gente só se diverte, porque sabe que o que está
gravado, está bem.
Estamos a caminho da Eurovisão e
o Fernando Tordo tem história no Festival da Canção. Como vê esta atenção
renovada ao festival?
É verdade. Sou de uma geração que
tem a sua projeção através do Festival da Canção. Nesse tempo os nomes só eram
revelados se a canção fosse apurada. O que se enviava para a televisão não era
cantado. Era um processo completamente democrático nesse sentido, ninguém sabia
de nada. Foi uma brecha onde conseguimos entrar e há uma geração dos anos 60
que surge assim.
A Eurovisão passou a ser um
pequeno trauma da sociedade portuguesa porque a gente concorria e não ganhava,
e não ganhava e as pessoas gostam de ganhar. Foram quase 50 anos. E de repente
surge uma grande surpresa.
E uma canção que fugia a uma
certa pop mais comercial.
Pois e isso significa que a
música bonita, bem estruturada, pode ganhar a Eurovisão. Não é necessário
aquele foguetório. Os foguetes não cantam.
E uma vitória em português.
Mas independentemente da canção,
da originalidade e até da voz, aconteceu um fenómeno que se sabe há muitos anos
que acontece: quem é que tem capacidade de pagar a fatura, que é cara. Hoje há
um conjunto de condições que tornam a posição internacional em relação ao nosso
país muito positiva. E esses fatores ajudaram, tal como a diferença em relação
às outras canções que estavam a competir.
Como é que viu a vitória do
Salvador Sobral?
Com um grande alegria. Eu sou de
uma geração de vários cantores que acabaram por cerzir a passadeira que acabou
por, ao fim destes anos, funcionar.
É uma vitória também coletiva?
Vejo que, de repente, um país que
tem um mercado baixíssimo, não é por isso que não pode ganhar. Não é por causa
do mercado do disco. A que ganhou no ano passado nunca mais vamos ouvir. Mas
houve fatores extra-música que ajudaram. Também ganhámos a Eurovisão porque
finalmente estavam abertas portas à escala internacional. Aliás, já ouvi dizer
que o intérprete deste ano [Conan Osiris] está muito bem colocado para ganhar.
A vitória de Conan Osiris foi de
algum ‘amor-ódio’, com algumas críticas entre tantos elogios.
[Risos] Não estou interessado
nessa conversa. Mas ouço opiniões – e hoje em dia até temos apostas, o que é
uma coisa extraordinária [risos]. Se for assim, significa que todos os outros
países gostaram tanto de estar cá, tiveram tratamento de luxo, uma Lisboa
sitiada por segurança por causa do festival, o que é ridículo, mas de qualquer
maneira todos estes fatores terão tido importância. Na hora da votação não
tiveram porque nos puseram no último lugar outra vez, aliás merecidamente. Aí a
hospitalidade não contou. Mas parece que de repente se começa a proporcionar
uma situação engraçadíssima, que era ganhar o festival de dois em dois anos.
Parece que o nosso país continua com boas condições. Aquela malta ficou com
saudades [risos].
Desejo-lhe o melhor [a Conan
Osiris] e, se ganhar, ainda melhor.
Em 2014, ainda no tempo da troika
e do governo de Passos Coelho, foi notícia por anunciar a sua partida para o
Brasil. Em que momento é que percebeu que já estava pronto para voltar?
Eu estaria pronto a voltar do
momento em que não estivesse aquela gente a governar o meu país. Tenho 71 anos,
sou do antes, do durante e do depois do 25 de Abril. Tenho filhos e netos e o
que tenho para lhes contar é do que foi bom, mau, assim-assim e do que ainda há
para fazer. Mas, para mim, o fator hoje fundamental da sociedade portuguesa é a
luta pela liberdade em
permanência. Num determinado momento, em que há um governo em
Portugal durante esse período da troika e não só, há como que uma vaga de
fundo - de que se calhar muitas pessoas não se apercebem -, mas em que a
liberdade começa a ser diminuída. Falo da liberdade na sua totalidade.
Talvez seja dos anos de vida, que
dão para ver a liberdade com uma panorâmica maior. A liberdade não é apenas
poder dizer ‘Abaixo o Governo’. É muito mais coisas. E, naquele tempo, aquele governo
ultrapassava em meu entender tudo o que era possível. Pelo seguinte: pertenço à
geração anterior, fiz o que pude, dentro da modéstia do que consigo fazer,
durante e depois. O conceito que tenho de liberdade tem esta abrangência. É ela
que autoriza os partidos, as nossas conversas, os nossos filhos a serem
felizes. A democracia é uma consequência da liberdade e não o contrário.
Houve um determinado momento em
que disse assim: vou embora. E fui. Demorei muito mais tempo – quase quatro
anos – a voltar do que pensava por causa da música. Compus muita música no
Brasil, gravei muito e, principalmente a esse nível, da facilidade dos músicos,
da qualidade, daquele ambiente que é natural nos brasileiros, muito
especialmente nos músicos, e conheci grandes craques da música, fez-me ficar
mais tempo.
Foi ficando.
A partir do momento em que acabou
aquele governo podia ter regressado. Mas para onde vamos criamos laços. A minha
mulher passou largos períodos comigo lá, os meus filhos e netos visitaram-me, a
gente não abandona assim por não sei quê, até porque isso faria da minha vida
demasiada ligada às questões políticas.
Mas há algo que quero salientar.
Jamais esperei – eu sou o número 139029 do arquivo de identificação de Lisboa.
Sou de 29 de março de 1948. Mas eu sou só um gajo. Jamais pensei que a minha
saída, numa conversa distraída na televisão…
...Gerasse aquele debate todo.
Eu recordo-me. Estava num
programa em estúdio com o Paulo Magalhães e o Fernando Correia. Eu distraído
‘agora vou para o Brasil’. Senti logo no estúdio uma agitação muito grande. Vi
duas pessoas que corriam de um lado para o outro. E de repente ‘Boom’ [gesto de
dimensão com as mãos]. Depois fui insultado, eu e a minha família, por uma
corja de bandidos ao serviço do Passos Coelho, que vieram dizer nas redes
sociais que eu tinha andado a fazer contratos de não sei quê e tinha ganho
contratos de milhares de euros.
Eu, para fazer 22 concertos com
grande orquestra, para poder mostrar aos portugueses que aquilo era possível
fazer, tive de perder a possibilidade de ganhar dinheiro para ter aquele
conjunto de 36 pessoas, mais os assistentes todos. E na altura um tipo fica
muito magoado. Não porque me trataram mal - estou habituado a isso, tenho 54
anos de carreira -, mas porque insultaram a minha família. E aí meteram o pé na
argola. Nem foi pelo insulto. Tive tipos a investigar junto das Finanças. Tudo
o que fizeram...
Isso ainda antes de ir para o
Brasil?
Antes, sim. E depois de ter ido
ainda tinha insultos, a investigação. Isto é uma tropa que Passos Coelho tinha
montado. Os poderes têm estas coisas montadas para insultar. E, muito
especialmente dentro daquele âmbito, o senhor Passos Coelho teve no governo um
tipo chamado Miguel Relvas, por exemplo. Por aqui está tudo esclarecido. É o
tipo [Passos Coelho] que foi ao beija-mão à senhora Merkel antes de ser
eleito, para ela lhe dizer o que ele ia fazer. E o que ele fez foi pôr os
portugueses encostados à parede. De qualquer maneira, eu limito-me a observar,
como no Brasil.
Você tinha de lá estar para ver:
o minuto a minuto, a sequência, quem manda, quem obedece, quem é corrupto, os
grandes bandidos. O [Michel] Temer é um crápula e só esteve quatro dias preso
[gargalhadas]. Eu rio-me porque sei bem como é que são as investigações no
Brasil. Ainda hoje tenho muita gente surpreendida quando conto certas coisas.
Mas tudo isto coincidiu com a
segunda eleição da Dilma, com os erros da Dilma, que estão diretamente ligados
a Lula da Silva; o quanto erraram para permitir aquilo que aconteceu no Brasil.
O presidente agora é um tipo chamado Jair Bolsonaro que eu assistia nos
discursos na Assembleia. Há um documento muito interessante que correu mundo,
creio que foi no célebre dia 17 de abril [de 2016].
De votação do impeachment.
Sim e eles, claro, votam a favor
do impeachment, e juram pela mãe, pelos filhos, pelo tio, por não sei quê, uma
cena absolutamente ridícula, em que este decide citar o coronel que foi um
torcionário [Carlos Alberto Brilhante Ustra, condenado por tortura] durante a
ditadura militar. Este tipo, o Bolsonaro, é hoje o Presidente da República. A
história de como se chega a isto, eu assisti sem querer, dia a dia.
Entre 2014 e 2019, há uma mudança
política em Portugal mas também esta mudança grande no Brasil. São duas
perguntas: É muito diferente o Portugal que reencontra? Que Brasil deixou lá
por comparação ao que encontrara em 2014?
Podia chamar ao Brasil simbolicamente
António Carlos Jobim. Havia o Brasil cidade maravilhosa, de encantos mil, que
encheu a minha infância. Esse Brasil seria o paraíso. E hoje há um Brasil
pimba. Estas duas coisas com um intervalo de anos podem acontecer no mesmo
país, porque há um mesmo país onde são possíveis. É o chamado ‘sem rei nem
roque’. É possível de um momento para o outro que os donos do Brasil, que não
são os políticos, façam as coisas. E quando o Brasil tenta, com Lula da Silva,
uma figura mundial, fazer o brilharete de dar qualquer coisa a 30 milhões de
pessoas, há um outro lado do muro que está a fazer os seus negócios. Este fator
é desconhecido. A notícia que vem para fora é de crescimento do Brasil. ‘Lula
da Silva faz isto’. Barack Obama olha para Lula e diz ‘So, you’re the man’. Mas
para poder fazer isto há como que uma negociação com os donos do Brasil para
que ‘agora não interfiram – mas estejam à vontade’.
Não há memória. Quando se vai
analisar historicamente o Brasil, é nos anos de Lula que se inicia uma coisa
extraordinária – o chamado ‘café da manhã’ para 30 milhões de gente miserável –
em simultâneo está a acontecer no país o que conduz a esta situação.
São coisas que eu creio que a
história contará muito bem, assim haja gente séria que tenha registado de forma
profissional. Um dia contarão como isto pôde acontecer. Os assassinatos são aos
milhares e milhares por ano, 60, 65 mil. O tipo que devia pôr ‘água na
fervura’, com um discurso sério, profundo, direto, é um tipo que diz ‘para
resolverem isto, comprem uma arma’. É uma vergonha.
Era um Brasil sem alternativa?
Nós portugueses deixámos várias
heranças no Brasil, a histórica é única no mundo, mas evidentemente deixámos
muitos defeitos. E um deles é a incontornável posse de terra. É um marco
profundo na vida das pessoas. Saímos daqui miseráveis para ir trabalhar e quando
damos por nós estamos dentro de um continente que vai andando sempre mais e
mais quilómetros. É giro ver livros do séc. XVIII, XIX para se perceber que a
própria estrutura da freguesia é toda levada de Portugal. Mas depois em vez de
se registarem 10 mil metros quadrados registam-se 10 milhões.
Creio que esta herança que
deixámos, cultural, pessoal, humana, é tão negativa quanto positiva. E hoje boa
parte do Brasil nega. Tive várias conversas sobre isso. Os brasileiros não
sabem rigorosamente nada sobre Portugal. Os que estão agora a vir, pode ser que
já saibam. Mas a escola no Brasil ainda ensina os alunos contra Portugal. Somos
os malandros, os da escravatura, os que mataram os índios, tudo isso é
aprendido na escola.
Curiosamente em Portugal discute-se
que também falamos pouco do lado negativo dos nossos Descobrimentos. Os dois
países mantém uma narrativa conflituante?
É que se não fosse a escravatura
também não haveria o Brasil, independentemente do que isso significa, séculos
depois. É também a escravatura que vai fazer do país, a dada altura
provavelmente o país mais rico do mundo, produtor de açúcar que é uma coisa
completamente louca. A cidade onde vivi, o Recife, chegou a ser a mais
importante por culpa dos engenhos onde trabalhavam os escravos, alguns ainda lá
estão em ruínas. São
os holandeses que depois fazem aí a sua aprendizagem e quando são postos fora
vão para outros locais do país pôr o açúcar mais barato. Somos especialistas em
miscigenação, enquanto que os ingleses e holandeses são especialistas em
avançar no terreno. Isto deixa marcas.
A nossa presença no Brasil é
extraordinária, emocionante, e é terrível verificar que o país não se apercebe
disso.
Mas há dificuldade, dos dois
lados do Atlântico, em falar do lado bom e lado mau deste assunto?
Nós temos grandes historiadores
no Brasil, há um que é um querido amigo meu que já escreveu uma série de
livros, nomeadamente sobre a ida da corte portuguesa para o Brasil, no séc.
XIX, o Paulo Rezzuti, que são uma análise imparcial sobre a influência que a
corte acaba por ter no Brasil. Mas depois há um problema, e que existe em
particular, em que nem todas as pessoas leem livros, nem todas estão
interessadas em saber. E
no Brasil a luta pela sobrevivência é muito grande, as pessoas não têm assim tanto
tempo para se informar. Mas quem estiver interessado, tem, da autoria de
brasileiros muito bons, muita documentação para perceber o que foi isto, o que
é que aconteceu.
Depois os laços, a tarefa, a saga
dos portugueses no Brasil é algo incontável, de uma dimensão única. Como é que
avançámos centenas, milhares de quilómetros, naquele país. Mas pronto. Temos
muito com que nos preocupar. E, quer dizer, hoje Portugal é mais interessante
para o brasileiro do que o Brasil é interessante para o português.
Reencontrou um Portugal
diferente?
Eu nunca estive desligado, vim cá
algumas vezes, não tive aquela sensação de ‘ah, uma avenida nova, um prédio
novo’. Não tive isso mas tive uma sensação respiratória. Respirava-se
liberdade, coisa que não se respirava quando eu fui. É difícil explicar.
É o tal conceito alargado de
liberdade de que falava?
É. É olhar a toda a volta e
sentir isso. Tem erros, tem falhas? Tem. As democracias também vivem da guerra
partidária e tudo o mais.
Faz uma avaliação positiva da
chamada Geringonça?
Faço. Não é agora, mas António
Costa é um homem que vai ficar na história portuguesa. É o homem que, mais de
40 anos depois do 25 de Abril, desmonta essa velha máxima do Bloco Central, de
que não é possível governar à Esquerda em Portugal. E desmonta
com um sorriso e a força que tem pessoalmente, e digo isto independentemente de
gostar dele, que o conheço desde criança.
E admitindo que o PSD de Rui
Rio ganha eleições. A questão era mais de relação com o PSD ou em particular
com o governo de Passos Coelho?
O Passos Coelho é um péssimo
político, uma pessoa que jamais deveria ter aparecido na política. Não tenho
nada pessoal contra ele mas incompetentes como ele não podem. E temos de estar
muito atentos a isso. Se me perguntar Passos Coelho ou Rui Rio? Acho o Rui Rio
uma pessoa muito mais sensata, capaz, do que Passos. Mas prefiro um país mais à
esquerda, do que mais à direita. Embora haja uma frase muito engraçada de um
amigo meu, o maestro Victorino de Almeida. Uma vez perguntaram-lhe: ‘Oh
maestro, é mais à esquerda ou à direita?’ E ele respondeu assim: ‘Depende de
onde está o centro’. É uma resposta muito interessante.
Além dos ‘Duetos’, tem andado
também em concertos. A
idade influencia?
Influencia e é bestial. A idade
acrescenta – e falo por mim – responsabilidade, capacidade de trabalho que não
se tem aos 30, 40, 50 anos e acrescenta uma coisa fabulosa: o à vontade.
É finalmente chegar àquela
conclusão de que não se deve levar muito a sério. O que é interessante é entrar
num palco e divertir as pessoas, distraí-las, em vez de as massacrar com mais
problemas. Ninguém vai a um espectáculo para se chatear. Vai por curiosidade
artística, até pode ser um espectáculo mais triste, sombrio, mas que tem
um potencial artístico que vale a pena ver. Agora ir para cima do palco, cantar
canções com ar sério e a pessoa a levar-se demasiado a sério, não. A minha obra
é tão extensa e tão variada que estou à vontade. E faço-o com o mesmo interesse
numa sala cheia na Casa da Música ou numa Fnac com 30 pessoas a ouvir, porque
isso me diverte. Diverte-me ver as pessoas divertidas.
E mantém a vontade de fazer
músicas novas?
Estou sistematicamente a fazer.
Estava a fazer agora, interrompi para vir aqui conversar consigo. Saiu agora o
‘Duetos’, mas o próximo disco que quero gravar está praticamente pronto.
Tudo originais?
Tudo originais. E ainda há disco
um que gravei no Brasil musicando poetas brasileiros, que ainda não saiu nem
sei quando vai sair. Há uns anos gravei em Barcelona um disco em que musiquei
12 prémios Nobel da Literatura que ainda está para ser comercializado. Não sou
dessa coisa de elaborar os discos mas gostava de fazer uma caixa com algo
aproximado à minha obra toda na música. Gostava de em qualquer altura em que
tenha de abandonar a profissão – embora espere exercer isto por alguns mais
anos – que tudo isso ficasse ao alcance das pessoas. Não é justo que eu tenha
gravado vários discos que ainda não são conhecidos.
Durante algum tempo pensei que
isso se devia à minha guerra secular com as discográficas, porque nunca permiti
que me dissessem que gravasse isto ou aquilo. É que estou disposto ao diálogo,
mas não reconheço capacidade a nenhuma agência para me dizerem o que gravar.
Trabalhou com alguns novos nomes
da música portuguesa. Como vê a música portuguesa atual?
Ainda recentemente na gala da SPA
houve dois momentos para mim marcantes. Um, é um tema do JP Simões, que ganhou
um prémio, com um arranjo muito bem feito e tive oportunidade de lhe dar os
parabéns. Não é para toda a gente mas é uma música em que dizemos ‘aqui está um
património interessante da música portuguesa’. E os Xutos. Aquilo é uma
máquina, pá. Tecnicamente é fantástico, entra uma equipa que monta o palco em
dois minutos, tocaram um tema com uma intervenção do guitarrista muito boa,
tudo muito bem feito, o Tim é uma voz do nosso país. Quando o convidei para o
‘Duetos’ disse-lhe isso. Eles foram e aquilo é impecável, o som...
Já é uma banda com muitos anos de
estrada também, não é?
É. Mas aquilo podia ser uma merda
e não é. É muito bem feito. Mas como está a música portuguesa? Em certos casos
está muito bem. Entre os mais jovens o que espero é que não haja pressa. Falo
por mim. Há um tempo. Não se é vedeta de um momento para o outro. Não se canta
uma canção caindo do céu aos trambolhões e se transforma numa vedeta. Isto é
falso. Veja-se os concursos que as televisões fazem para terem cantigas de
graça. É uma forma fantástica de ter horas de emissão sem pagar. Foi inventado
este esquema que é convocar os jovens: ‘Queres ser artista?’ e aquilo vai
reduzindo, com muita treta, e às tantas está-se a dizer genial. Dez pontos! Não
se dá dez pontos a ninguém, nem ao Frank Sinatra, nem ao Tony Bennet. Há que
deixar uma margem. E depois o que acontece aos vencedores, sabe deles? Aquilo é
para render logo no momento.
É diferente o tempo da música
hoje em dia?
Espero que as minhas palavras
sejam bem entendidas: mas acho muito difícil jovens que chegam agora à música
chegarem aos 71 anos de idade e continuarem. Há que estudar muito, ouvir muita
música, têm que se disciplinar muito e não se levar demasiado a sério. E,
principalmente na música, há uma coisa fundamental, que é ouvir música.
E como é a sua relação como
ouvinte? Que artistas costuma ouvir?
Eu em casa componho. Depois
meto-me no carro, vou a uma garagem que aluguei para mim e é aí que ouço
música. Gosto de ouvir um Rachmaninoff, um Coltrane [risos]. Sou um bocado
esquisito mas é porque desde miúdo o meu percurso mudou porque comecei a ouvir
génios da música. A que ouço ou é do meu tempo, uma espécie de homenagem aos
dos anos 50 e 60 com quem aprendi a tocar e a afinar a guitarra, até depois dar
um salto para Duke Ellington, Charlie Parker. Já não tenho o mesmo tempo de
vida e portanto só quero ouvir coisas boas.
Em entrevista ao ‘Alta Definição’
falou sobre o problema que teve com o alcoolismo. Nem sempre vemos uma figura
pública a assumir abertamente um problema desta natureza.
Uma das regras que tem de ser
respeitada nos Alcoólicos Anónimos é o anonimato. Quando cheguei pela primeira
vez, há 13 anos, a uma reunião, não conseguia. As pessoas olhavam para mim,
reconheciam-me e ficavam surpreendidas. Depois ficámos confidentes. Mas há um
compromisso. Eu não posso ser anónimo. Mas considerando o facto de ser figura
pública e o quanto isto foi útil para mim, acho que sempre que for possível eu
transmito esse recado.
Temos um país em que ainda somos
muitos a abusar da bebida. E é preciso ter muita vontade. Mas isto do
alcoolismo, vou-lhe dizer, eu gastei milhares de contos para deixar de beber.
Fui aos médicos, psiquiatras, tudo - e não resultou. Mas os Alcoólicos Anónimos
resultou comigo...
Eu compreendo muito bem a
dificuldade de deixar. O alcoolismo é uma doença que não tem cura, mas tem
recuperação.
Hoje em dia incomoda-o, a bebida?
A mim não me incomoda que as
pessoas bebam perto de mim. Em casa sou eu quem abre as garrafas. Mas há
alcoólicos que não se sentam a uma mesa onde haja uma garrafa de vinho. A única
coisa que não gosto é ver um tipo bêbado que nem um cacho dizer que controla
perfeitamente a bebida. É a única coisa que me perturba. Porque é muito
difícil, por uma questão de orgulho, pela solidão que se sente, com a bebida a
prejudicar cada vez mais. Compreendo que a pessoa tenha muita dificuldade em
sair disso. Mas ao mesmo tempo recordo que vale a pena aquele dia único na vida
em que a pessoa decide ir a uma reunião.
E para lá da música, continua a
pintar?
Sempre. Interrompi nesta fase mas
foi por causa do lançamento do disco e todas estas coisas. A pintura é muito
importante porque eu com a linguagem musical estou mais ou menos à vontade. Com
a pintura, não faço ideia.
Tem sido autodidata?
Completamente. Leio muito, pinto
muito. Pinto também porque tenho uma grande paixão pelos tipos que
transformaram a pintura. Sou um apaixonado por Picasso, Vermeer, Mondrian,
Braque, os impressionistas. Mas também porque os estudei. Estes tipos com muito
talento foram descobrindo as várias maneiras que o nosso cérebro tem de
expressar sentimentos e isso é fascinante. Ter a possibilidade de ter uma tela
e transmitir algo é fantástico. Porque se eu quisesse verbalizar certos estados
de alma, não conseguia. Mas, se estou a pintar, a dada altura percebo que
aquilo quer dizer alguma coisa de mim.
Pintei muito no Brasil também,
ainda lá tenho quadros para ir buscar. Aqui tenho pintado muito porque tenho um
local onde posso ‘cagar’ tudo à vontade. A pintura é o processo que felizmente
consegui encontrar para dessintonizar. Não me faz bem estar sistematicamente a
pensar na música, embora seja difícil para mim. Enquanto estou a pintar, não me
lembro de nada. Embora já me tenha acontecido pintar e fazer música ao mesmo
tempo.
Um compositor tem dificuldade em
desligar, gostaria de ter um tempo eterno. Como o objetivo é a excelência e ela
é inalcançável, quer-se ir melhorando. É este o processo.
Foi assim consigo?
Concorri cinco anos seguidos ao
Festival da Canção e fiquei duas vezes em último e isso não provocou nenhuma
dor porque alguém tinha que ficar em último. Nem fiquei envergonhado por ter
cantado uma porcaria de canção, que nunca foi o caso. De facto a canção seria
desajustada para aquele efeito. Mas foi para o Festival que fiz canções que
ainda canto muitos anos depois. A ‘Tourada’ tem 47 anos. O ‘Cavalo à Solta’ 49.
São canções em que, hoje, subo ao palco e não posso deixar de cantar. Há alguma
coisa mais extraordinária do que isto, um tipo conseguir no seu tempo de vida
fazer uma coisa que ultrapassa o seu próprio tempo? Fazer canções que em vez de
serem esmigalhadas pelo tempo, esmigalham o tempo? É uma coisa extraordinária.
A última música do ‘Duetos’ é com
um dos seus filhos, curiosamente o único que também escolheu a música.
Sim, mas não por mim. Foi pela
mãe, é um filho que viveu sempre um pouco afastado de mim e que é um grande
pianista clássico.
Como é que foi partilhar o
estúdio com um filho?
Foi ótimo. Eu já há uns tempos
pensava ‘vou falar com o Filipe a ver se me acompanha’. Ele é uma joia de
rapaz, professor no Conservatório, completamente vocacionado para a música. Ia
pensando nisso e ia adiando. Mas aqui houve muito tempo para pensar. Tinha a
‘Cantores da Minha Terra’, que era uma canção que queria a fechar o álbum, um
resumo de tudo. Mas com trio, quarteto, orquestra? Não, não é isto. E então
falei com o Filipe, que acedeu imediatamente, e ele vai ao estúdio tocar
aqueles acordes, uma coisa muito simples, mas que ele acompanha com algo
fantástico que ele tem: uma alma de músico, um tempo, uma respiração, uma
maneira de tocar especial. O Filipe é responsável, disciplinado, muito
profissional e completamente dedicado. E é também [sorrindo] o meu convidado
mais próximo.
Pedro Filipe Pina | Notícias ao
Minuto | Foto: © Rita Carmo/Contos da Praça
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