Sinal de um declínio: comandada
por “homens da Bíblia”, política externa de Trump não obteve nenhuma vitória
expressiva. Salvo a grotesca “operação Bolsonaro” — que se tornou sinonimo de
violência gratuita, paranóia e destruição
José Luís Fiori | Outras Palavras
Na segunda década do século XVI,
o humanista cristão Erasmo de Roterdão sustentou um famoso debate teológico com
Martim Lutero, sobre a “regra da fé”, ou seja, sobre critério de verdade no
conhecimento religioso. Essa batalha não teve um vencedor, mas ajudou a
clarificar a posição revolucionária de Lutero, que rejeitou a autoridade do
Papa e dos Concílios, e defendeu a tese de que todo cristão deveria julgar por
si mesmo, o que fosse certo e o que fosse errado no campo da fé. Para Lutero,
como para Calvino, a evidência última da verdade religiosa era a “persuasão” de
cada um dos leitores das Escrituras, e esta “persuasão” era concedida aos
homens pela “revelação” do Espírito Santo. Contra este argumento de Lutero, Erasmo
levantou uma aporia fundamental: se aceitássemos o argumento de Lutero, como
poderíamos decidir entre duas leituras e interpretações diferentes de algumas
passagens mais obscuras dos textos sagrados? Ou seja, como se poderia escapar
da circularidade do raciocínio de Lutero, que considerava que o critério da
verdade religiosa era a “persuasão interior” do cristão e ao mesmo tempo dizia
que esta mesma “persuasão” só poderia ser garantida pela “revelação divina”.
Uma “revelação” pessoal e intransferível, que não tem como ser confrontada com
outra “revelação” igual e contrária, que não seja através do uso do poder e da
força capaz de definir e impor o que seja certo e o que seja errado, o que seja
a ortodoxia e o que seja a heresia.
O primeiro cristão queimado na
fogueira, acusado de heresia, foi um espanhol chamado Prisciliano, condenado e
morto no ano de 385, poucos anos antes que Santo Agostinho revisasse a doutrina
pacifista dos primeiros cristãos e defendesse o direito ao uso da violência e à
“guerra santa”, sempre que fosse contra os infiéis. Uma tese que foi
radicalizada por São Bernardo de Claraval, doutor da Igreja Católica que cunhou
o neologismo “malecídio” – no ano de 1128 – para designar e justificar o
assassinato cristão de hereges, pagãos e infiéis de todo tipo – doutrina aceita
e praticada durante toda a Idade Média. Do lado protestante, o primeiro herege
colocado na fogueira foi o cientista Miguel Servet, condenado e queimado pelos
calvinistas do Conselho de Genebra no ano de 1553. Antes disso, entretanto, em
1525, Lutero já havia apoiado pessoalmente o massacre de 100 mil camponeses
alemães que haviam se revoltado contra a nobreza e o clero católico, inspirados
pelas próprias ideias de Lutero. A partir daí, a violência e a crueldade entre
as seitas cristãs foi cada vez maior, e a divergência entre Erasmo e Lutero se
transformou na força propulsora de uma guerra entre católicos e protestantes
que durou mais de cem anos – de 1524
a 1648 –, a despeito de católicos e protestantes
participarem igualmente do genocídio religioso dos povos indígenas da América.
Só depois da Paz de Westphalia, assinada em 1648, é que essa ira santa contra
os hereges foi domesticada, e a luta entre as religiões perdeu sua centralidade
política dentro da Europa.
Durante os 350 anos seguintes, as
religiões foram afastadas do comando dos Estados europeus e de suas decisões de
guerra e paz. Nas últimas décadas, entretanto, em particular depois do fim da
Guerra Fria, vem-se assistindo por todos os lados o renascimento de um fanatismo
religioso associado a forças políticas de extrema-direita. Tudo indica que essa
onda começou nos EUA, na década de 1980, sob a liderança de seitas evangélicas
e pentecostais, mas contando também com o apoio de setores cada mais extensos
da Igreja Católica. Muitos sociólogos atribuem esta ressurgência à crise ou à
morte das grandes utopias europeias dos séculos XIX e XX, e ao crescimento do
medo e da insegurança de sociedades ameaçadas por um futuro incerto e
imprevisível. Mas seja qual for a causa, a verdade é que este fenómeno adquiriu
uma nova dimensão com a eleição de Donald Trump, em 2016, apoiado por uma
grande coligação de forças religiosas e de extrema-direita que acabaram se
impondo dentro Partido Republicano e vencendo as eleições. E houve um novo
salto nesse processo, no momento em que essas forças religiosas assumiram o
comando da política externa dos EUA, no início de 2018, com a nomeação de Mike Pompeo e John Bolton, como
secretário de Estado e como conselheiro de Segurança da Presidência da
República, respectivamente, colocando-se ao lado de Mike Pence, o
vice-presidente, e de James Mattis, o secretário de Defesa, para formar um dos
grupos mais conservadores e belicistas que já comandou a política externa dos
EUA, desde a II Guerra Mundial.
Todos discípulos de Dick Cheney,
e todos firmemente convencidos de que os EUA foram o “povo escolhido” por Deus
para salvar a civilização judaico-cristã de seu declínio no século XXI.
Logo depois da posse de M. Pompeo
e J. Bolton, no início de 2018, os EUA anunciaram o início de sua “guerra
comercial” contra a China, e sua saída do Acordo Nuclear com o Irã, o ICPOA,
que havia sido assinado em 2015. Anunciaram também, logo em seguida, uma série
de sanções com o objetivo de estrangular progressivamente a economia iraniana.
Hoje, os EUA bombardeiam quase diariamente a população de quatro países, pelo
menos: Afeganistão, Somália, Síria e Iémene, e sustentam, ao mesmo tempo, uma
escalada global de sanções comerciais e financeiras, de ameaças e cercos
militares, e de agressões retóricas contra Rússia, China, Coreia do Norte,
Turquia, Venezuela, Cuba, Nicarágua, e contra a própria União Europeia –
Alemanha, em particular. E agora de novo, em janeiro de 2019, os EUA anunciaram
seu abandono do “Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário”,
assinado com a URSS, em 1987, e depois aceleraram e multiplicaram suas
intervenções ao redor do mundo.
O que mais chama a atenção nessa
gigantesca demonstração de poder global é que, desde a posse dos “homens da
Bíblia”, o uso agressivo de ameaças e intervenções em todas as latitudes do
mundo não venha acompanhado de nenhum tipo de discurso ético ou de algum tipo
de projeto comum para a humanidade. O único que se vê e se ouve são ordens,
ameaças e exigências de submissão e obediência incondicional aos desígnios
norte-americanos1.
Um quadro aparente de loucura ou irracionalidade que pareceria incompatível com
o que muitos analistas vêm chamando de acelerado processo de “cristianização da
politica externa norte-americana”2.
Como conciliar estas duas tendências tão contraditórias? Aparentemente, através
da visão milenarista compartilhada pelos novos estrategos bíblicos da politica
externa dos EUA que estão convencidos de que Donald Trump é o homem que foi
enviado para comandar as forças do Bem contra o Mal, na batalha apocalíptica do
Armagedão que, segundo a profecia bíblica, deverá ser vencida pelas forças do
bem e, portanto, pelos Estados Unidos da América.
Essa visão evangélica e
pentecostal é compartilhada por setores católicos de extrema-direita, que hoje
são liderados pelo cardeal norte-americano Raymond Burke, associado e
financiado por Steve Bannon, o antigo assessor de Trump que hoje está envolvido
na luta contra o pacifismo e o ecumenismo religioso de Jorge Bergoglio, o Papa
Francisco3.
Do ponto de vista desse crescente fanatismo e belicismo religioso, fica cada
vez menos absurda a convicção de muitos analistas internacionais sérios, que
hoje estão plenamente convencidos de que os atentados de 11 de setembro de 2011
teriam sido de fato um “autoatentado terceirizado” e construído com o objetivo
de mobilizar as energias nacionais americanas para uma guerra religiosa
secular, contra o Islão e contra todas as heresias que se anunciam no horizonte.
Sem entrar nessa discussão, a
verdade é que é que, do ponto de vista funcional, os atentados de 2001
permitiram a Dick Cheney arrancar do Congresso as duas medidas que ele já vinha
patrocinando desde o tempo em que comandou a Guerra do Golfo, como secretário
de Defesa dos EUA: o direito de o Executivo Americano declarar guerra sem
autorização do Congresso Nacional, em caso de “ameaça terrorista”; e o direito
do Banco Central e do governo americano de acessarem e controlarem todas as
operações financeiras mundiais que passem pelo sistema bancário americano, pelo
Banco da Inglaterra e pelo próprio sistema bancário da União Europeia.
Tudo isto pode ser apenas uma
especulação teológica ou conspiratória, mas não há dúvida de que essas teses e
interpretações religiosas conseguem dar algum sentido a esse conjunto de
ataques enfurecidos dos EUA contra tudo e contra todos que ameacem sua lealdade
judaica e estejam no caminho de seu projeto de poder global.
Mas existe outro lado deste
assunto que não é devidamente analisado: o fato de que outros povos e culturas
possam não compartilhar desses mesmos valores, nem considerar que estes mesmos
textos bíblicos sejam sagrados ou que suas profecias tenham algum fundamento
real – o que nos remete de volta ao debate entre Erasmo e Lutero. A diferença,
neste caso, é que o “outro lado” não é um indivíduo nem é um cristão
necessariamente, e pode até considerar que todas essas previsões do Apocalipse
são uma rematada loucura. Além disso, no campo internacional, este “outro” é
sempre um Estado nacional, e pode ser um Estado que tenha as mesmas pretensões
globais dos EUA, e que luta por suas crenças e valores com a mesma intensidade
que os norte-americanos. Por isso mesmo, até agora, depois de um ano e meio de
“gritos e ameaças”, os “homens da Bíblia”, que estão no comando da política
externa norte-americana, não tenham obtido nenhuma vitória significativa, nem
mesmo alguma rendição da parte de seus concorrentes e adversários mais
importantes, que vêm sendo assediados na Ásia, no Oriente Médio e na América
Latina.
Desse ponto de vista, com toda
certeza, uma das poucas intervenções diretas bem sucedidas (pelo menos no curto
prazo), desse grupo de herdeiros de Dick Cheney tenha sido mesmo a “operação
Bolsonaro”, que ajudou a instalar no governo brasileiro uma coligação política
montada às pressas e liderada por um grupo de pessoas muito toscas e, ao mesmo
tempo, extremamente violentas e religiosas. Uma espécie de simulacro de baixo
nível de qualidade, da própria coligação que elegeu Trump e, mais
especificamente, do grupo que assumiu o comando de sua política externa e
emplacou um de seus discípulos (ou seminaristas?) no Ministério das Relações
Exteriores do Brasil, com a função explícita e imediata de apoiar e participar
da invasão militar da Venezuela já no início de 2019. Basta lembrar o papel
patético e solitário do chanceler brasileiro, na fronteira com a Venezuela, ali
postado como se fosse o comandante de um exército que não existia, e de uma
invasão que não aconteceu.
Faltou Mike Pompeo explicar ao
seu pupilo que “povos escolhidos” só existem dois: Israel, que não teria maior
importância se não fosse o Estado judeu por excelência, e portanto, na prática,
um Estado religioso que foi transformado numa máquina militar de ocupação, com
poder atómico4;
e os Estados Unidos, que já foram “fundados” pelos puritanos, uma seita de
origem calvinista radical, e que se tornou uma grande potência, extremamente
religiosa, que expandiu e projetou seu poder de forma contínua desde o século
XIX, sempre orientada por seus interesses estratégicos nacionais. Além disso,
Pompeo deveria ter-lhe explicado que no caso de Israel e dos Estados Unidos, o
discurso religioso da “salvação judaico-cristã” coincide com e instrumentaliza
suas próprias estratégias de defesa e a projeção mundial de seus interesses
militares, políticos e económicos. Já no caso do Brasil, a luta pela
civilização judaico-cristã não nos agrega nada, nem coincide ou ajuda a
promover os interesses económicos e estratégicos de um país que é multicultural,
multirracial e extremamente heterogéneo do ponto de vista religioso, e
desigual, do ponto de vista social. Por isso, essa nova submissão da política
externa brasileira aos versículos da Bíblia admirados pelo presidente e seus
filhos, e pelo próprio ministro, limitam inevitavelmente o escopo das alianças
internacionais do país a um número muito pequeno e inexpressivo de países sem
grande projeção, como é o caso, por exemplo, de Chile, Paraguai, Hungria, Polónia – ou mesmo Israel, fora do Oriente Médio…
A artificialidade do projeto
americano transposto para o Brasil fica ainda mais nítida quando se analisa o
papel da violência e da agressividade dos novos governantes brasileiros, que
tentam imitar o modelo praticado sobretudo por Donald Trump e John Bolton. Esta
violência primitiva do núcleo governante brasileiro transforma toda e qualquer
divergência política e democrática numa heresia, e tenta eliminar e destruir
como hereges todos os seus opositores. Uma prática que já trouxe para o Brasil
um tipo de divisão e enfrentamento religioso que não será fácil de superar ou
esquecer por muitos e muitos anos, talvez décadas. No caso do governo Trump, a
agressão internacional, generalizada e destrutiva, encontra do outro lado da
fronteira sociedades, culturas e civilizações sólidas e muitas vezes
indiferentes com relação às fantasias apocalípticas dos norte-americanos.
Mas no caso da agressividade
bolsonarista e de sua obsessão doentia pelas armas, o que existe é uma
sociedade que se sente atacada e ameaçada por seus próprios governantes, que
não são capazes de propor para os brasileiros nenhum tipo de horizonte futuro
mais pacífico, igualitário e justo. Pelo contrário, o que este núcleo religioso
e fundamentalista propõe é uma espécie de distopia da violência, o prazer da
violência pela violência e o desejo psicopático doentio de destruir a tudo e a
todos, sem propor nada em troca.
Hoje, a palavra “bolsonarismo” é
usada em todo mundo, como sinonimo de violência irracional e destruição
psicopática, feita em nome de versículos bíblicos, mas sem nenhum sentido ético
e humanitário. Já é utilizada também como um sinal vermelho de advertência
sobre o limite a que pode chegar a humanidade quando perde o sentido ético da
política e da história, e se joga contra tudo e contra todos, movida pelo ódio,
medo e paranoia, transformando a religião num instrumento de vingança e
destruição da possibilidade de convivência entre os homens.
Neste sentido, e de alguma forma,
o “bolsonarismo” está fazendo com que as pessoas reflitam, no Brasil e em todo
mundo, sobre as consequências dramáticas do paradoxo de Erasmo e Lutero:
perguntando-se como é que seitas e religiões que pregam a paz e o amor entre os
homens podem ao mesmo tempo promover o ódio a violência e a guerra sem fim
contra “hereges” e“heresias” que elas mesmas vão inventando, separando amigos e
inimigos, fiéis e infiéis, com base em “revelações” e “persuasões individuais”
que não se sustentam em nenhum tipo de evidência ou argumentação racional, mas
que acabam reforçando a unidade e a identidade destas seitas através do próprio
exercício da violência.
Notas:
1 Fiori,
J.L. “Babel syndorme and the new security doctrine of the United States”,
Journal of Humanitaruan Affairs, 1(1), April 2019, pp 42-45, www.manchesterophesive.com
2 Joyce,
K. “The Chistianization of the U.S, Foreign Policy:”, The New Republic, March
25, 2019
3 Martel,
F., “No Armário do Vaticano: Poder, Hipocresia e Homosexualidade”, < Porto
Editora, Porto, 2019, P:57
4 Fiori,
J.L, “A visão sagrada de Israel”, Jornal Valor Econô mico, 28 de maio de 2009
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