Fantasia de liderar um
“capitalismo de rosto humano” deu lugar a dois pesadelos: o hegemonismo alemão
e as lógicas neoliberais — que ameaçam, como nunca, o Estado de Bem-Estar e a
“Economia verde”
Wolfgang Streeck | Outras Palavras | Tradução: Simone Paz
O que é a União Europeia? O
conceito mais próximo ao qual consigo chegar seria o de um império liberal, ou
melhor, neoliberal. Um império é um bloco de Estados ditos soberanos, porém,
estruturados hierarquicamente, mantidos juntos através de um gradiente de poder
que vai desde o centro até a periferia.
Ao centro da UE, está a Alemanha
tentando — não com muito sucesso — se esconder dentro de um núcleo europeu (Kerneuropa)
formado em conjunto com a França. A Alemanha não quer ser vista como aquilo que
os ingleses costumavam chamar de “agregador continental”, mesmo que seja
exatamente isso o que ela é. Que ela goste de se esconder atrás da França,
significa uma grande fonte de poder para a França; tratarei desta relação
crucial mais adiante.
A Alemanha, bem como outros
países imperialistas (mais recentemente, os EUA), se auto concebe — e deseja
que outros países façam o mesmo — como uma hegemonia benevolente, espalhando
bom senso e virtudes morais aos seus vizinhos, a um custo que lhe é válido em
nome da humanidade (1).
No caso Alemão-Europeu, os
valores utilizados para legitimar esse império são os mesmos do liberalismo
político: democracia liberal, governo constitucional e liberdades individuais.
Junto deles vêm amarrados, para serem utilizados quando for conveniente, o
livre mercado e a livre concorrência (isto é, liberalismo económico, que no
caso atual se chama neoliberalismo). O centro hegemónico tem a prerrogativa de
determinar a composição exata e o sentido mais profundo do pacote de valores
imperialistas, e de como deve ser aplicado em cada situação específica — assim,
consegue obter senhoriagem política da periferia, em troca de sua benevolência.
Para preservar a assimetria
imperialista entre as nações ditas soberanas, é necessário fazer arranjos políticos
e institucionais complexos. Os estados periféricos não-hegemónicos precisam ser
comandados por elites que considerem o centro, e suas estruturas e seus
valores, um modelo a ser seguido pelo seu próprio país; ou devem estar
dispostos a organizar sua ordem social, política e económica interna, para ela
se tornar compatível com os interesses do centro de manter seu império unido.
Manter estas elites no poder é essencial para a preservação do império; como a
experiência dos Estados Unidos nos ensinou, isto deve ter seu custo no que se
refere a valores democráticos, recursos económicos e, inclusive, vidas.
Mantendo as coisas juntas
Às vezes, as elites dominantes de
países pequenos e atrasados procuram obter uma filiação submissa a um império,
com a esperança de ganhar apoio das lideranças imperialistas para realizar
projetos de modernização nacional que seus cidadãos não sustentam. O império
irá retribuir sua fidelidade fornecendo-lhes meios ideológicos, monetários e
militares para manter a oposição longe.
Num império liberal, supostamente
mantido por seus valores morais e não por forças militares, não é sempre assim
que acontece. O centro imperialista e as classes dominantes da periferia podem
errar a mão e cometer alguns erros. Alemanha e França, juntas, não conseguiram
manter em pé o governo de “reforma” de Matteo Renzi na Itália quando a
resistência popular insurgiu, apesar da ajuda secreta do Banco Central Europeu.
E agora, a Alemanha se mostra incapaz de proteger a presidência de Emmanuel
Macron dos ataques dos coletes amarelos e outros opositores de seu programa de
germanização económica.
Países hegemónicos também
enfrentam dificuldades internas: sob o imperialismo liberal, países devem ter o
cuidado de fazer com que a busca de seus interesses nacionais pareça promover o
progresso dos valores liberais, da democracia à prosperidade para todos. E para
isso, podem precisar da ajuda de seus países-cliente. Isto nunca aconteceu em
2015, quando Angela Merkel tentou resolver a reputação e a crise demográfica alemã,
trocando o asilo não regulamentado pela imigração regularizada, que há muito
tempo era incapaz de fazer com que o Partido Democrático Cristão legislasse.
Abrir as fronteiras da Alemanha
com o pretexto de que fronteiras não podem mais ser policiadas em pleno século
XXI, ou alegando que as leis internacionais demandam fronteiras abertas, exigiu
que toda a União Europeia seguisse o exemplo. Nenhum país-membro seguiu. França
manteve silêncio, Hungria e Polónia insistiram publicamente em sua soberania nacional.
Ao quebrarem o acordo de nunca constranger um governo aliado, muito menos o hegemónico, por razões domésticas, causaram à Merkel um problema interno do
qual nunca se recuperou.
O fato também dividiu de forma
definitiva a política interna e internacional do império entre o centro e o
leste, acrescentando-se às divisões da Europa já existentes: com o Reino Unido
e ao longo da sua linha de falha mediterrânea, que já era crítica desde a
introdução da moeda comum.
Ainda mais vulnerável do que
outras formas de império, o império liberal nunca está em equilíbrio ou
estável. Está permanentemente sob pressão, desde baixo e pelos lados. Como não
pode intervir militarmente em seus Estados-Membros, não pode usar a força para
impedir que seus países o abandonem. Quando o Reino Unido decidiu sair da UE, a
Alemanha e a França nem consideraram invadir a Inglaterra para mantê-la na
Europa, já que a UE é uma força pacificadora. No entanto, de uma perspectiva
alemã, ou franco-alemã, uma saída amistosa da Grã-Bretanha pode minar o terreno
da disciplina imperial, dado que outros países insatisfeitos podem considerar
sair também.
Ainda pior: se poderosas
concessões europeias a troco de permanecer pudessem ter prevenido a saída
britânica, outros países podem vir a pedir uma renegociação do acervo
comunitário (acquis communautaire, constitui a base comum de direitos e
obrigações que vinculam todos os Estados-Membros a título da União Europeia),
compreendido como eternamente não-negociável.
Logo, a escolha britânica teve de
ser entre: ficar, sem concessões (a opção “Canossa”, na qual o Reino Unido
disputaria uma permissão para reingressar na UE com um acordo similar ao da
Noruega); e abandonar, a um alto custo para si — isto, apesar da Inglaterra
sempre ter ajudado a Alemanha a fugir dos tentáculos da França e, com isto, ter
balanceado o estatismo francês com compromissos mais saudáveis (para a
Alemanha) a favor do livre mercado. Com a saída britânica, esse equilíbrio se
perderia.
Brexit, um erro histórico?
A França sabia disso e insistiu
em negociações inflexíveis, com uma agenda nem tão oculta para fazer com que a
Inglaterra persistisse em sua decisão de sair. A França, se aproveitando da
preocupação alemã com a disciplina imperial, conseguiu o que queria, apesar da
inquietação da Alemanha em ter que lidar com as ambições francesas sem contar
com o apoio britânico, além da perda substancial de um de seus maiores mercados
exportadores. Esperaremos para ver se ter cedido à França foi uma decisão
oportunista e de curto prazo, típica da Merkel, que pode custar caro à Alemanha.
Já para a Inglaterra, na medida
em que sua decisão foi guiada muito mais pelo nacionalismo do que por questões
anti-socialistas, provavelmente será um erro histórico. O Brexit deixará a
França sendo a única potência nuclear na UE, e a também a única detentora de
uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU.
Os sentimentos ambivalentes da
Alemanha em relação às ambições de liderança da França, em uma UE com laços
muito mais estreitos e que coloca a força económica alemã potencialmente a
serviço dos interesses franceses, encontrará agora menos apoio entre os membros
restantes. Se – ou quando – a Inglaterra sair, a França terá pretensões de ser
a nova unificadora europeia, pressionando a Alemanha a adotar um projeto de
Estado Europeu nos moldes franceses (é o que Macron chama de “uma França
soberana, numa Europa soberana”). Bloquear esse desenvolvimento de fora, pode
ser mais difícil do que sabotá-lo de dentro. Lembremo-nos de quão ferrenhamente
De Gaulle tentou manter o Reino Unido fora do que era, então, a Comunidade Económica Europeia, com o argumento de que a Grã-Bretanha não era
suficientemente europeia.
A administração de um império é
pautada tanto pela geoestratégia, como pelas preocupações económicas e
ideológicas, principalmente nos limites territoriais do império. Estados
fronteiriços nos extremos das periferias devem ser estabilizados, não só para servir
a uma expansão económica, embora isso seja essencial para impérios de economia
capitalista. Quando um império encosta na fronteira de outro império, seja ele
expansionista ou não, ele estará disposto a pagar um preço ainda mais alto para
manter os governos nacionais cooperativos e expulsar aqueles que não cooperarem.
As elites nacionais que têm o
poder de ameaçar uma ruptura e de mudar de lado, deveriam ser capazes de sugar
maiores concessões, mesmo se sua política interna for sórdida — por exemplo, Sérvia
ou Roménia. Nesses países, o poder militar consegue penetrar, bem
diferentemente do suave poder dos valores. Como impérios liberais têm
dificuldades em usar a força contra uma população rebelde, eles protegem outros
governos amigos, capacitando-os a adotarem uma postura nacionalista hostil
contra países vizinhos que os ameaçam. Em troca, o poder hegemónico poderá
pedir concessões como, por exemplo, o apoio em questões que encontram
resistência entre outros Estados-Membros.
Sem armas, sem hegemonia
Os países e seus respectivos
cidadãos, no centro de um império liberal, desejam governar sem recorrer ao
poder militar. Mas isto é uma ilusão: não existe hegemonia sem armas. O governo
de Merkel, alinhado com as demandas dos EUA e da OTAN de quase dobrar os gastos
militares da Alemanha em 2% do PIB, deve ser considerado neste cenário. Se esta
missão estiver sendo cumprida, a Alemanha deve estar gastando 40% a mais do que
a Rússia em armas — tudo em armas convencionais. Este fato provavelmente
contribui para que países como os Estados Bálticos e a Polónia permaneçam
firmes na Europa, e não lhes seja atrativo apostar nos EUA.
Enquanto isto pode fazer com que
a Alemanha convença os países-membro da Europa do Leste a desistirem ou
adotarem uma posição mais moderada em relação a valores, como a questão dos
refugiados ou do casamento igualitário, isto também pode fazer com que a Rússia
tenha mais razões para melhorar seu arsenal nuclear (tal como está fazendo
agora) e pode encorajar países como a Ucrânia a ter uma postura mais
provocativa contra a Rússia.
A França, que hoje investe o
mágico 2% em suas forças armadas, pode almejar que o gasto dobrado que a
Alemanha tem com militares prejudique as proezas económicas alemãs (embora a
França também espere uma cooperação franco-alemã em produção e exportação de
armas). Ainda mais relevante: num exército europeu — como exigido por Macron, e
apoiado pelos integracionistas germano-europeus –, um aumento significativo das
capacidades convencionais da Alemanha compensariam a fragilidade da França em
tropas terrestres, dada a desproporcionalidade dos gastos militares franceses
que vão religiosamente para sua force de frappe (força de ataque), a
qual nem consegue ser facilmente utilizada contra os militantes islâmicos do
oeste da África que tentam barrar o acesso francês ao urânio e a terras raras.
O Império Europeu, alemão ou
franco-alemão, não só é liberal, como neoliberal. Impérios impõem uma ordem
social uniforme em seus Estados-Membros, que se assemelha à ordem social de seu
centro. Na “Europa”, a economia política doméstica dos países-membro é
governada pelas 4 liberdades do mercado interno e por uma moeda em comum de
estilo alemão, o Euro; o qual, de acordo com o Tratado de Maastricht, é
obrigatório para todos os membros da UE.
No que diz a esse respeito, a
União Europeia se encaixa perfeitamente no internacionalismo neoliberal, tal
qual foi concebido e atualizado por Friedrich von Hayek. Sua ideia central é a
isonomia: sistemas legais idênticos para estados-membros formalmente soberanos,
instituídos com a premissa de que isto é necessário para fazer com que os
mercados internacionais funcionem sem maiores contratempos (2).
O calcanhar de Aquiles do
neoliberalismo é, como soubemos por Hayek e Karl Polanyi, a democracia. Isonomia
e um regime monetário no padrão-ouro requerem que o alcance da democracia
popular-majoritária na economia política seja estritamente limitado. Governos
nacionais dentro de um império neoliberal devem ser capazes de expor seus
cidadãos às pressões dos mercados internacionais integrados, sem medos de
punições eleitorais, pelo seu próprio bem (embora eles não vejam as coisas
desse mesmo modo) e pelo bem da concentração de capital.
Para isso, o império deve
respaldar esses Estados com instituições, nacionais e internacionais, que os
ajudem a manter sua política eleitoral longe e subjugada. Para ser um Estado
fraco em relação ao mercado, o Estado neoliberal precisa ser forte em relação
às forças sociais que demandam intervenção política para corrigir os resultados
de mercado. O conceito desse liberalismo autoritário se encontra na doutrina
política cujas origens nos remetem para a República de Weimar e o encontro
amistoso entre economistas neoliberais com o futuro “jurista-estrela” da
Alemanha nazista, Carl Schmitt (3).
Estado forte, mercado livre
O liberalismo autoritário
utiliza-se do Estado forte para proteger a economia de livre mercado da
democracia política (4). Na UE, isto é garantido pela internacionalização: a
construção de uma configuração institucional na qual governos nacionais podem
transformar economias nacionais em órgãos normativos internacionais, como
conselhos ministeriais e cortes supranacionais ou bancos centrais. Eles se
livram da responsabilidade para com seus cidadãos — consequência de sua
soberania nacional, a qual podem ou não cumprir.
Entre as ferramentas que o
internacionalismo oferece, existe o que a ciência política chama de diplomacia
multinível (5): a negociação de mandatos internacionais que executivos
nacionais podem importar para sua política interna, declarando-os imutáveis,
devido à sua origem multilateral. É um grande atrativo do império (neo)liberal
para as elites nacionais que elas possam contar com tais ferramentas,
especialmente quando um capitalismo financeiramente estagnado não pode mais
gerar as expectativas otimistas necessárias para sua legitimidade.
É assim que Peter Ramsay explica
por quê os Remainers (cidadãos contra o Brexit) das classes
dominantes britânicas lutaram tanto pela permanência do Reino Unido na UE: “Em
vez de olhar para dentro da nação, essas elites governantes procuram arranjos
no exterior, que sejam supranacionais e intergovernamentais, servindo à sua
autoridade… a UE é um império voluntário, feito de Estados que negam seu
caráter nacional: negando o fato de que a autoridade do Estado deriva de uma
nação política” (6).
Ser hegemónico num império
liberal não é nada fácil. Fica cada vez mais claro que a Alemanha, com ou sem a
França, não será capaz de manter sua hegemonia por muito mais tempo, e não só
porque a superextensão tenha sempre sido uma tentação mortal para os impérios —
como tivemos o exemplo da URSS e dos EUA. Do ponto de vista militar, os ânimos
populares na Alemanha ainda são pacíficos, e a prerrogativa constitucional do
parlamento alemão de regular até os menores detalhes do envio de tropas não
será abandonada, nem por causa de Macron, o garoto charmoso do mainstream político
alemão.
Também será necessário fazer
pagamentos imperiais aos países mediterrâneos que sofrem sob o regime da
moeda-forte alemã, bem como manter fundos estruturais para sustentar os Estados
da Europa do Leste e sua classe política pró-Europa. Com o baixo crescimento da
França e os altos déficits, só se pedirá à Alemanha que entre nessa — e os
altos custos irão superar sua capacidade.
A AfD (Alternativa pela
Alemanha), da extrema-direita alemã, vem se tornando o maior partido da
oposição desde a crise dos refugiados, em 2015. É um partido nacionalista, mas
principalmente no sentido de ser isolacionista e anti-imperialista; por essa
razão, é classificado como um partido anti-europeu pelo imperialistas liberais
alemães.
Deixando de lado os ataques de
revisionismo histórico do AfD, seu nacionalismo (numa leitura otimista) se dá
numa recusa a pagar mais para o império e numa disposição a permitir que cada
país faça sua própria política. Considere sua forte crença no apaziguamento em
vez do confronto com a Rússia — que ele divide também com a ala de esquerda do
Die Link (partido da esquerda alemã). Há similitudes não-triviais com o
sentimento de “America First” (EUA em primeiro lugar) do Trump, que, pelo menos
em seu início, era mais isolacionista do que imperialista, num afastamento acentuado
do imperialismo liberal dos Clintons e de Barack Obama.
____________
Na questão da hegemonia, leia:
Perry Anderson, The H-Word: the Peripeteia of Hegemony,Verso, London/New
York, 2017.
Quinn Slobodian, Globalists:
the End of Empire and the Birth of Neoliberalism, Harvard University
Press, Cambridge (Mass), 2018.
Wolfgang Streeck, ‘Heller,
Schmitt and the Euro’, European Law Journal, vol 21, no 3, Hoboken
(New Jersey), May 2015.
Andrew Gamble, The Free
Economy and the Strong State: the Politics of Thatcherism,Palgrave Macmillan,
London, 1988.
Robert D Putnam, ‘Diplomacy and
domestic politics: the logic of two-level games’, International
Organization, vol 42, no 3, Cambridge, summer 1988.
Leia: Peter Ramsay, ‘The
EU is a default empire of nations in denial’, London School of Economics
blog, 14 March 2019.
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