sábado, 8 de junho de 2019

Europa: radiografia de um império em pedaços


Fantasia de liderar um “capitalismo de rosto humano” deu lugar a dois pesadelos: o hegemonismo alemão e as lógicas neoliberais — que ameaçam, como nunca, o Estado de Bem-Estar e a “Economia verde”

Wolfgang Streeck | Outras Palavras | Tradução: Simone Paz

O que é a União Europeia? O conceito mais próximo ao qual consigo chegar seria o de um império liberal, ou melhor, neoliberal. Um império é um bloco de Estados ditos soberanos, porém, estruturados hierarquicamente, mantidos juntos através de um gradiente de poder que vai desde o centro até a periferia.

Ao centro da UE, está a Alemanha tentando — não com muito sucesso — se esconder dentro de um núcleo europeu (Kerneuropa) formado em conjunto com a França. A Alemanha não quer ser vista como aquilo que os ingleses costumavam chamar de “agregador continental”, mesmo que seja exatamente isso o que ela é. Que ela goste de se esconder atrás da França, significa uma grande fonte de poder para a França; tratarei desta relação crucial mais adiante.

A Alemanha, bem como outros países imperialistas (mais recentemente, os EUA), se auto concebe — e deseja que outros países façam o mesmo — como uma hegemonia benevolente, espalhando bom senso e virtudes morais aos seus vizinhos, a um custo que lhe é válido em nome da humanidade (1).

No caso Alemão-Europeu, os valores utilizados para legitimar esse império são os mesmos do liberalismo político: democracia liberal, governo constitucional e liberdades individuais. Junto deles vêm amarrados, para serem utilizados quando for conveniente, o livre mercado e a livre concorrência (isto é, liberalismo económico, que no caso atual se chama neoliberalismo). O centro hegemónico tem a prerrogativa de determinar a composição exata e o sentido mais profundo do pacote de valores imperialistas, e de como deve ser aplicado em cada situação específica — assim, consegue obter senhoriagem política da periferia, em troca de sua benevolência.



Para preservar a assimetria imperialista entre as nações ditas soberanas, é necessário fazer arranjos políticos e institucionais complexos. Os estados periféricos não-hegemónicos precisam ser comandados por elites que considerem o centro, e suas estruturas e seus valores, um modelo a ser seguido pelo seu próprio país; ou devem estar dispostos a organizar sua ordem social, política e económica interna, para ela se tornar compatível com os interesses do centro de manter seu império unido. Manter estas elites no poder é essencial para a preservação do império; como a experiência dos Estados Unidos nos ensinou, isto deve ter seu custo no que se refere a valores democráticos, recursos económicos e, inclusive, vidas.

Mantendo as coisas juntas

Às vezes, as elites dominantes de países pequenos e atrasados procuram obter uma filiação submissa a um império, com a esperança de ganhar apoio das lideranças imperialistas para realizar projetos de modernização nacional que seus cidadãos não sustentam. O império irá retribuir sua fidelidade fornecendo-lhes meios ideológicos, monetários e militares para manter a oposição longe.

Num império liberal, supostamente mantido por seus valores morais e não por forças militares, não é sempre assim que acontece. O centro imperialista e as classes dominantes da periferia podem errar a mão e cometer alguns erros. Alemanha e França, juntas, não conseguiram manter em pé o governo de “reforma” de Matteo Renzi na Itália quando a resistência popular insurgiu, apesar da ajuda secreta do Banco Central Europeu. E agora, a Alemanha se mostra incapaz de proteger a presidência de Emmanuel Macron dos ataques dos coletes amarelos e outros opositores de seu programa de germanização económica.

Países hegemónicos também enfrentam dificuldades internas: sob o imperialismo liberal, países devem ter o cuidado de fazer com que a busca de seus interesses nacionais pareça promover o progresso dos valores liberais, da democracia à prosperidade para todos. E para isso, podem precisar da ajuda de seus países-cliente. Isto nunca aconteceu em 2015, quando Angela Merkel tentou resolver a reputação e a crise demográfica alemã, trocando o asilo não regulamentado pela imigração regularizada, que há muito tempo era incapaz de fazer com que o Partido Democrático Cristão legislasse.

Abrir as fronteiras da Alemanha com o pretexto de que fronteiras não podem mais ser policiadas em pleno século XXI, ou alegando que as leis internacionais demandam fronteiras abertas, exigiu que toda a União Europeia seguisse o exemplo. Nenhum país-membro seguiu. França manteve silêncio, Hungria e Polónia insistiram publicamente em sua soberania nacional. Ao quebrarem o acordo de nunca constranger um governo aliado, muito menos o hegemónico, por razões domésticas, causaram à Merkel um problema interno do qual nunca se recuperou.

O fato também dividiu de forma definitiva a política interna e internacional do império entre o centro e o leste, acrescentando-se às divisões da Europa já existentes: com o Reino Unido e ao longo da sua linha de falha mediterrânea, que já era crítica desde a introdução da moeda comum.

Ainda mais vulnerável do que outras formas de império, o império liberal nunca está em equilíbrio ou estável. Está permanentemente sob pressão, desde baixo e pelos lados. Como não pode intervir militarmente em seus Estados-Membros, não pode usar a força para impedir que seus países o abandonem. Quando o Reino Unido decidiu sair da UE, a Alemanha e a França nem consideraram invadir a Inglaterra para mantê-la na Europa, já que a UE é uma força pacificadora. No entanto, de uma perspectiva alemã, ou franco-alemã, uma saída amistosa da Grã-Bretanha pode minar o terreno da disciplina imperial, dado que outros países insatisfeitos podem considerar sair também.

Ainda pior: se poderosas concessões europeias a troco de permanecer pudessem ter prevenido a saída britânica, outros países podem vir a pedir uma renegociação do acervo comunitário (acquis communautaire, constitui a base comum de direitos e obrigações que vinculam todos os Estados-Membros a título da União Europeia), compreendido como eternamente não-negociável.
Logo, a escolha britânica teve de ser entre: ficar, sem concessões (a opção “Canossa”, na qual o Reino Unido disputaria uma permissão para reingressar na UE com um acordo similar ao da Noruega); e abandonar, a um alto custo para si — isto, apesar da Inglaterra sempre ter ajudado a Alemanha a fugir dos tentáculos da França e, com isto, ter balanceado o estatismo francês com compromissos mais saudáveis (para a Alemanha) a favor do livre mercado. Com a saída britânica, esse equilíbrio se perderia.

Brexit, um erro histórico?

A França sabia disso e insistiu em negociações inflexíveis, com uma agenda nem tão oculta para fazer com que a Inglaterra persistisse em sua decisão de sair. A França, se aproveitando da preocupação alemã com a disciplina imperial, conseguiu o que queria, apesar da inquietação da Alemanha em ter que lidar com as ambições francesas sem contar com o apoio britânico, além da perda substancial de um de seus maiores mercados exportadores. Esperaremos para ver se ter cedido à França foi uma decisão oportunista e de curto prazo, típica da Merkel, que pode custar caro à Alemanha.

Já para a Inglaterra, na medida em que sua decisão foi guiada muito mais pelo nacionalismo do que por questões anti-socialistas, provavelmente será um erro histórico. O Brexit deixará a França sendo a única potência nuclear na UE, e a também a única detentora de uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU.

Os sentimentos ambivalentes da Alemanha em relação às ambições de liderança da França, em uma UE com laços muito mais estreitos e que coloca a força económica alemã potencialmente a serviço dos interesses franceses, encontrará agora menos apoio entre os membros restantes. Se – ou quando – a Inglaterra sair, a França terá pretensões de ser a nova unificadora europeia, pressionando a Alemanha a adotar um projeto de Estado Europeu nos moldes franceses (é o que Macron chama de “uma França soberana, numa Europa soberana”). Bloquear esse desenvolvimento de fora, pode ser mais difícil do que sabotá-lo de dentro. Lembremo-nos de quão ferrenhamente De Gaulle tentou manter o Reino Unido fora do que era, então, a Comunidade Económica Europeia, com o argumento de que a Grã-Bretanha não era suficientemente europeia.

A administração de um império é pautada tanto pela geoestratégia, como pelas preocupações económicas e ideológicas, principalmente nos limites territoriais do império. Estados fronteiriços nos extremos das periferias devem ser estabilizados, não só para servir a uma expansão económica, embora isso seja essencial para impérios de economia capitalista. Quando um império encosta na fronteira de outro império, seja ele expansionista ou não, ele estará disposto a pagar um preço ainda mais alto para manter os governos nacionais cooperativos e expulsar aqueles que não cooperarem.

As elites nacionais que têm o poder de ameaçar uma ruptura e de mudar de lado, deveriam ser capazes de sugar maiores concessões, mesmo se sua política interna for sórdida — por exemplo, Sérvia ou Roménia. Nesses países, o poder militar consegue penetrar, bem diferentemente do suave poder dos valores. Como impérios liberais têm dificuldades em usar a força contra uma população rebelde, eles protegem outros governos amigos, capacitando-os a adotarem uma postura nacionalista hostil contra países vizinhos que os ameaçam. Em troca, o poder hegemónico poderá pedir concessões como, por exemplo, o apoio em questões que encontram resistência entre outros Estados-Membros.

Sem armas, sem hegemonia

Os países e seus respectivos cidadãos, no centro de um império liberal, desejam governar sem recorrer ao poder militar. Mas isto é uma ilusão: não existe hegemonia sem armas. O governo de Merkel, alinhado com as demandas dos EUA e da OTAN de quase dobrar os gastos militares da Alemanha em 2% do PIB, deve ser considerado neste cenário. Se esta missão estiver sendo cumprida, a Alemanha deve estar gastando 40% a mais do que a Rússia em armas — tudo em armas convencionais. Este fato provavelmente contribui para que países como os Estados Bálticos e a Polónia permaneçam firmes na Europa, e não lhes seja atrativo apostar nos EUA.

Enquanto isto pode fazer com que a Alemanha convença os países-membro da Europa do Leste a desistirem ou adotarem uma posição mais moderada em relação a valores, como a questão dos refugiados ou do casamento igualitário, isto também pode fazer com que a Rússia tenha mais razões para melhorar seu arsenal nuclear (tal como está fazendo agora) e pode encorajar países como a Ucrânia a ter uma postura mais provocativa contra a Rússia.

A França, que hoje investe o mágico 2% em suas forças armadas, pode almejar que o gasto dobrado que a Alemanha tem com militares prejudique as proezas económicas alemãs (embora a França também espere uma cooperação franco-alemã em produção e exportação de armas). Ainda mais relevante: num exército europeu — como exigido por Macron, e apoiado pelos integracionistas germano-europeus –, um aumento significativo das capacidades convencionais da Alemanha compensariam a fragilidade da França em tropas terrestres, dada a desproporcionalidade dos gastos militares franceses que vão religiosamente para sua force de frappe (força de ataque), a qual nem consegue ser facilmente utilizada contra os militantes islâmicos do oeste da África que tentam barrar o acesso francês ao urânio e a terras raras.

O Império Europeu, alemão ou franco-alemão, não só é liberal, como neoliberal. Impérios impõem uma ordem social uniforme em seus Estados-Membros, que se assemelha à ordem social de seu centro. Na “Europa”, a economia política doméstica dos países-membro é governada pelas 4 liberdades do mercado interno e por uma moeda em comum de estilo alemão, o Euro; o qual, de acordo com o Tratado de Maastricht, é obrigatório para todos os membros da UE. 

No que diz a esse respeito, a União Europeia se encaixa perfeitamente no internacionalismo neoliberal, tal qual foi concebido e atualizado por Friedrich von Hayek. Sua ideia central é a isonomia: sistemas legais idênticos para estados-membros formalmente soberanos, instituídos com a premissa de que isto é necessário para fazer com que os mercados internacionais funcionem sem maiores contratempos (2).

O calcanhar de Aquiles do neoliberalismo é, como soubemos por Hayek e Karl Polanyi, a democracia. Isonomia e um regime monetário no padrão-ouro requerem que o alcance da democracia popular-majoritária na economia política seja estritamente limitado. Governos nacionais dentro de um império neoliberal devem ser capazes de expor seus cidadãos às pressões dos mercados internacionais integrados, sem medos de punições eleitorais, pelo seu próprio bem (embora eles não vejam as coisas desse mesmo modo) e pelo bem da concentração de capital.

Para isso, o império deve respaldar esses Estados com instituições, nacionais e internacionais, que os ajudem a manter sua política eleitoral longe e subjugada. Para ser um Estado fraco em relação ao mercado, o Estado neoliberal precisa ser forte em relação às forças sociais que demandam intervenção política para corrigir os resultados de mercado. O conceito desse liberalismo autoritário se encontra na doutrina política cujas origens nos remetem para a República de Weimar e o encontro amistoso entre economistas neoliberais com o futuro “jurista-estrela” da Alemanha nazista, Carl Schmitt (3).

Estado forte, mercado livre

O liberalismo autoritário utiliza-se do Estado forte para proteger a economia de livre mercado da democracia política (4). Na UE, isto é garantido pela internacionalização: a construção de uma configuração institucional na qual governos nacionais podem transformar economias nacionais em órgãos normativos internacionais, como conselhos ministeriais e cortes supranacionais ou bancos centrais. Eles se livram da responsabilidade para com seus cidadãos — consequência de sua soberania nacional, a qual podem ou não cumprir.

Entre as ferramentas que o internacionalismo oferece, existe o que a ciência política chama de diplomacia multinível (5): a negociação de mandatos internacionais que executivos nacionais podem importar para sua política interna, declarando-os imutáveis, devido à sua origem multilateral. É um grande atrativo do império (neo)liberal para as elites nacionais que elas possam contar com tais ferramentas, especialmente quando um capitalismo financeiramente estagnado não pode mais gerar as expectativas otimistas necessárias para sua legitimidade.

É assim que Peter Ramsay explica por quê os Remainers (cidadãos contra o Brexit) das classes dominantes britânicas lutaram tanto pela permanência do Reino Unido na UE: “Em vez de olhar para dentro da nação, essas elites governantes procuram arranjos no exterior, que sejam supranacionais e intergovernamentais, servindo à sua autoridade… a UE é um império voluntário, feito de Estados que negam seu caráter nacional: negando o fato de que a autoridade do Estado deriva de uma nação política” (6).

Ser hegemónico num império liberal não é nada fácil. Fica cada vez mais claro que a Alemanha, com ou sem a França, não será capaz de manter sua hegemonia por muito mais tempo, e não só porque a superextensão tenha sempre sido uma tentação mortal para os impérios — como tivemos o exemplo da URSS e dos EUA. Do ponto de vista militar, os ânimos populares na Alemanha ainda são pacíficos, e a prerrogativa constitucional do parlamento alemão de regular até os menores detalhes do envio de tropas não será abandonada, nem por causa de Macron, o garoto charmoso do mainstream político alemão.

Também será necessário fazer pagamentos imperiais aos países mediterrâneos que sofrem sob o regime da moeda-forte alemã, bem como manter fundos estruturais para sustentar os Estados da Europa do Leste e sua classe política pró-Europa. Com o baixo crescimento da França e os altos déficits, só se pedirá à Alemanha que entre nessa — e os altos custos irão superar sua capacidade.

A AfD (Alternativa pela Alemanha), da extrema-direita alemã, vem se tornando o maior partido da oposição desde a crise dos refugiados, em 2015. É um partido nacionalista, mas principalmente no sentido de ser isolacionista e anti-imperialista; por essa razão, é classificado como um partido anti-europeu pelo imperialistas liberais alemães.

Deixando de lado os ataques de revisionismo histórico do AfD, seu nacionalismo (numa leitura otimista) se dá numa recusa a pagar mais para o império e numa disposição a permitir que cada país faça sua própria política. Considere sua forte crença no apaziguamento em vez do confronto com a Rússia — que ele divide também com a ala de esquerda do Die Link (partido da esquerda alemã). Há similitudes não-triviais com o sentimento de “America First” (EUA em primeiro lugar) do Trump, que, pelo menos em seu início, era mais isolacionista do que imperialista, num afastamento acentuado do imperialismo liberal dos Clintons e de Barack Obama.
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Na questão da hegemonia, leia: Perry Anderson, The H-Word: the Peripeteia of Hegemony,Verso, London/New York, 2017.

Quinn Slobodian, Globalists: the End of Empire and the Birth of Neoliberalism, Harvard University Press, Cambridge (Mass), 2018.

Wolfgang Streeck, ‘Heller, Schmitt and the Euro’, European Law Journal, vol 21, no 3, Hoboken (New Jersey), May 2015.

Andrew Gamble, The Free Economy and the Strong State: the Politics of Thatcherism,Palgrave Macmillan, London, 1988.

Robert D Putnam, ‘Diplomacy and domestic politics: the logic of two-level games’, International Organization, vol 42, no 3, Cambridge, summer 1988.

Leia: Peter Ramsay, ‘The EU is a default empire of nations in denial’, London School of Economics blog, 14 March 2019.

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