sábado, 22 de junho de 2019

Quem não sabe estar


A cobardia é a mãe da crueldade
Michel de Montaigne


As sociedades distinguem-se pelo modo como tratam os seus elementos indefesos: as crianças, indefesas perante o futuro, os velhos, indefesos perante o passado, os prisioneiros e as minorias, indefesos perante os captores e os dominantes, e as mulheres, indefesas perante os violadores.

Do código de Hamurabi (o primeiro corpo de leis de que estabelece a equivalência da punição em relação ao crime) à Bíblia, das condições da guerra justa de Santo Agostinho à Convenção de Genebra e à Carta dos Direitos do Homem todos os grandes documentos da humanidade defendem a dignidade dos indefesos, sejam eles criminosos ou inimigos, sejam eles crianças ou velhos, sejam eles fracos ou fortes. Independentemente do acto praticado, todos os seres humanos têm direito a um tratamento digno, a manterem a dignidade de seres humanos, a não serem humilhados, torturados ou executados.

A chamada justiça de pelourinho, de exposição dos condenados, os autos de fé, a lei de Linch, as execuções de prisioneiros são consideradas pelas pessoas bem formadas excrementos da barbárie. São, antes de tudo, demonstrações de cobardia: os cobardes podem “judiar” o acorrentado, cuspir-lhe, insultá-lo, agredi-lo. Ficam impunes. A impunidade de insultar um ser enjaulado é a coragem do canalha.

"O covarde só ameaça quando se acha em segurança.
Goethe
 ou:
"O leão morto ou agonizante é o festim dos abutres e das hienas.
Provérbio bantu
O programa “Quem não sabe estar” emitido pela TVI no domingo dia 16 de Junho de 2019 foi um acto canalha contra um ser enjaulado. O pretexto do apedrejamento ritual foi o de ele ter apresentado factos que, segundo o engraçado condutor da emissão, motivam o riso: que na prisão não tinha um computador… que não tinha acesso a informação. Para o triste cómico e os seus apreciadores o enjaulado devia limitar-se a abjurar e a mostrar-se arrependido e a deixar a carne ser-lhe arrancada. Para o cómico e fiéis, Armando Vara não tem direito à defesa de uma imagem, a estar vivo: imagens da sua audição foram truncadas, repetidas, manipuladas para obter um efeito de aviltamento, de morte civil, a pretexto de que se trata de humor.


É certo que Armando Vara se prestou a essa manipulação. Devia ter exigido manter as algemas e declarar-se à mercê de quem ali o conduzira. Quando se é feito prisioneiro apenas se declara a identificação. Não o fez, colaborou com os seus interrogadores. Mais uma razão para ser defendido, a começar pelos deputados. Os deputados deviam ter preservado a dignidade de um cidadão, que, pelo facto de estar preso a não perde. Ou perde? E, se perde, para que falam os políticos de reinserção social e pagamos programas de reinserção, com direcções, funcionários, capelães e assistentes sociais? E, se o preso perde a dignidade de ser humano, porque o mantemos vivo em vez de o oferecer como pasto dos bobos da corte?

A matéria-prima de indignidade de onde o cómico retirou as armas do atentado que exibiu na televisão foi fornecida pelos deputados. A audição de um preso, exactamente por estar numa condição de total dependência, entregue nas mãos do Estado, exige cuidados por parte dos seus guardas (e os deputados eram os seus guardas) que não foram respeitados.

Mas o mais chocante neste triste episódio de ofensa canalha foi a quantidade de portugueses que, no fundo, concordam que Armando Vara foi muito bem gozado, que não tem direito à cidadania, que podia ser acorrentado, exibido, humilhado, que as suas palavras podiam ser deturpadas, ampliadas, que as suas opiniões não contam – então porque o chamaram os deputados? – que, enfim, ele é um não ser que pode ser exposto no pelourinho, crucificado, passeado com um sambenito. Já agora toureado por um tipo sem escrúpulos que aproveita a sede de sangue da populaça para ganhar a vida com gargalhadas como outros a ganham espetando farpas no cachaço de toiros ou obrigando ursos a passar sobre brasas para os fazer dançar no circo. Não estás vivo, estás mal enterrado! Gritam.

O programa não foi um simples episódio de humor, uma palhaçada. Os palhaços pintam o rosto, os canalhas usam máscaras. Neste caso a máscara mais comum do canalha, a de um tipo cordial, ameno, um amorável que só pretende ver-nos bem-dispostos, com um riso alvar.

O programa do Ricardo foi um espelho do pior da sociedade inquisitorial que persiste entre nós. O programa revelou quem não sabe estar. E que quem não sabe estar é a mesma multidão que ria e aplaudia os autos de fé, a mesma que se divertiu a atirar excrementos ao Gungunhana e aos seus companheiros aprisionados por Mouzinho de Albuquerque, trazidos de Moçambique e exibidos dentro de jaulas num cortejo de carroças pelas ruas de Lisboa, a mesma que hoje vai em manada, encabrestada entre polícias, aos urros para os estádios de futebol.

Este programa de “Quem não sabe estar” está para o humor como as sentenças do Moro sobre Lula estão para a justiça. Como um podão está para um estilete.

Depois da arenga de um outro exemplar da pós-modernidade no 10 de Junho, o João Miguel, que pedia que lhe dessem qualquer coisinha, esta foi a resposta do gato fedorento: Toma lá um enjaulado! Há quem confunda humor com vilania.

É assustador saber que podemos ficar à mercê de concidadãos que são justiceiros à pedrada, que nos espezinharão se um dia cairmos.

RAP ri-se disto, e é brilhante, escreveu Raquel Varela em defesa dele. É humilhante e degradante, digo eu. É um cronista de uma nação em decadência histórica, contra a maré de auto elogios de Costa e selfies de Marcelo, RAP não faz concessões fáceis e demonstra o estado a que o Estado chegou. É atacado por isso. Não, RAP é o contrário de um tribuno do povo, é um promotor da degradação moral de uma sociedade. É brilhante num país onde o sol brilha muito, mas são esparsas as luzes do pensamento crítico. Continua RV. Não, ele é aviltante e apela aos sentimentos mais escuros. Brilhante no humor foram Gil Vicente, Eça de Queiroz, Ramalho Ortigão, Almada Negreiros, Solnado, José Viana (esquecido). Herman (preterido por engraçadinhos), as PF do Nuno Artur. Mais, se o RAP revelou ter um pensamento critico, então o populismo é a democracia dos ignorantes, como escreveu o filósofo Fernando Savater.

Afinal ele foi o único a perceber num espaço em horário nobre que o Bloco Central tinha chamado ao Parlamento uma parte de si algemada. Quem não se ri disto não percebeu bem como batemos no fundo, e continuamos a cair.

Eu não me rio de termos batido no fundo, se é que batemos. Verifico que o RAP não conseguiu, não teve engenho e arte, inteligência e talento, para fazer humor com uma situação grave. Foi ele quem bateu no fundo. Riu-se, isso sim, de quem se ri das suas insuficiências.

* Militar, investigador de história contemporânea, escritor com o pseudónimo Carlos Vale Ferraz

Sem comentários:

Mais lidas da semana