Com as recentes eleições
europeias, os dois grandes pilares (sociais-democratas e conservadores) em que
tem assentado a política autoritária e austeritária da União Europeia sofreram
um abalo relevante.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
O instantâneo da União Europeia
obtido pelas eleições para o Parlamento Europeu é o de uma entidade cada vez
mais desunida e desafinada, incapaz de cativar metade dos eleitores, chocando o
ovo da serpente nazifascista e onde os fundamentos do próprio poder, tal como
tem existido, estão a ser seriamente corroídos. Uma caricatura de democracia.
A satisfação manifestada por
vozes oficiais do Parlamento pelo facto de a abstenção ter diminuído é
absolutamente ridícula e um artifício falhado em matéria de propaganda. Os 51%
de afluência foram alcançados a duras penas, tendo em conta que em cerca de um
terço dos Estados membros (9) a abstenção foi superior a dois terços – na
República Checa superou mesmo os três quartos dos eleitores inscritos. Também é
relevante para o resultado final o facto de o voto ser obrigatório em cinco
países, o que não inibiu 70% dos búlgaros de violarem a lei; mas permitiu que a
Bélgica e a Grécia superassem a média, caso contrário seriam situações
idênticas às de Portugal.
Motivo de satisfação para os
fundamentalistas do federalismo e do europeísmo apenas pode ser o facto de a
afluência ser, finalmente, da ordem de grandeza da que se regista nos Estados
Unidos da América, onde metade dos eleitores não vão às urnas pelo que o
presidente é eleito por um quarto dos cidadãos com direito de voto. Uma
democracia florescente e muito participativa.
Vem a propósito lembrar que uma
taxa de abstenção como a que existe na União Europeia serve aos governos dos
Estados membros e às instituições de Bruxelas para «invalidarem», por exemplo,
a legitimidade das eleições democráticas e livres realizadas na Venezuela.
Seja como for, metade dos
europeus ignoraram as urnas. Se isso não é motivo de inquietação para os
fundamentalistas europeístas é porque, para eles, a opinião e as atitudes das
pessoas não são assim tão importantes – o que já se sabia através da prática
quotidiana.
Os pilares sofreram abalo
Olhando para os resultados
registados nos 28 países deduz-se que os dois grandes pilares em que tem
assentado a política autoritária e austeritária da União Europeia sofreram um
abalo relevante. A direita conservadora e os sociais-democratas, mais os
respectivos comparsas de ocasião, deixaram de poder «governar» sozinhos,
necessitando agora da coparticipação dos liberais ou dos verdes, ou da
extrema-direita de tendências fascistas. Em qualquer dos casos não será difícil,
porque trata-se de seguir a cartilha económica e política neoliberal como até
aqui. No entanto, os feudos burocráticos instalados pelos dois blocos, em
benefício próprio, passam a ter de ser partilhados, o que certamente provoca
contrariedades na clique que mexe os cordelinhos em Bruxelas.
Este é um dado político a reter
como consequência das eleições. E que terá implicações práticas na escolha dos
ocupantes de cargos como o de presidente da Comissão Europeia, presidente do
Parlamento, comissários europeus e afins. Essas «eleições» – como gostam de
dizer os burocratas europeístas, subvertendo, de facto, o conceito de «eleger»
– terão de ser negociadas através de concessões que os putativos constituintes
das novas maiorias não deixarão de exigir em termos de cargos, prebendas e
mordomias, as inerentes vantagens de se ter poder em Bruxelas.
A título de teste, veremos o
que vai acontecer com a indicação do alemão Manfred Weber para presidente da
Comissão. O Partido Popular Europeu (PPE) indigitou-o e o que poderia ser
uma «eleição» acordada entre os dois grandes blocos tradicionais talvez venha a
tornar-se um processo com sobressaltos, porque outras candidaturas se
apresentarão como viáveis. Poderá valer ao bávaro Weber, simpatizante
neofascista, o facto de ser o escolhido pelos Estados Unidos para sabotar o
estratégico gasoduto Nord Stream 2, um negócio entre a Alemanha e a Rússia de
cuja concretização Washington nem quer ouvir falar1.
Veremos se a importância da missão que lhe é outorgada será suficiente.
27% de potencial poder fascista
Outro sinal de que as eleições
europeias tornaram mais fluido o poder político tradicional na União Europeia é
a emergência em força das tendências nazifascistas no Parlamento Europeu.
É cedo, muito cedo ainda, para
fazer contas e tirar conclusões sobre o poder acumulado daquilo a que o pudor
linguístico divide entre «populistas», «nacionalistas», «eurocépticos» sempre
para evitar chamar-lhes aquilo que realmente são.
Stephen Bannon, o enviado de
Trump para unificar o fascismo europeu, e que para o efeito montou escritório
em Bruxelas e uma «academia» em Itália, manifestou a ambição de instalar 250
deputados no Parlamento Europeu, isto é, um terço da câmara.
A meta era ambiciosa e terá
ficado por atingir.
Diz-se «terá» porque, olhados os
resultados ainda à margem de qualquer enquadramento que venham a incidir na
definição da organização parlamentar, 200 parece ser um número mais compatível
com a realidade. O que significará 27%, mais de um quarto da câmara.
Este número não é
«institucional», isto é, não traduz um grupo – se assim fosse seria o maior do
Parlamento, sobrepondo-se aos 180 do PPE.
É antes um valor calculado com
base nas contribuições de vários países para as tendências neonazis e fascistas
– Alemanha, Áustria, Bélgica, França, Itália, Reino Unido, Holanda; e também
nos novos contributos de Espanha, Suécia e Grécia e na indefinição
organizacional de toda a área da direita e extrema-direita parlamentares.
O Partido Popular Europeu (PPE)
está longe de estabilizado. Tem conservado no seu interior correntes claramente
fascistas como a do Fidesz húngaro de Viktor Orban (que está suspenso e elegeu
15 deputados), do Partido do Direito e da Justiça da Polónia (PiS, 23 eleitos),
do HDZ da Croácia (4 eleitos) e outros eleitos distribuídos, designadamente,
pelos Estados bálticos, República Checa e Eslováquia.
Por outro lado, na legislatura
que agora termina há deputados de índole fascista repartidos entre pelo menos
três grupos da direita parlamentar, incluindo o PPE, como já se viu.
O modo como essas tendências vão
agora arrumar-se ainda está em aberto e depende da adaptação de grupos já
existentes e eventual criação de novos. As negociações, os leilões, chantagens
e ameaças vão fervilhar nas semanas que estão pela frente. Haverá um pouco
menos de 200 deputados prontos a assumir-se como de extrema-direita ou
fascistas, preferindo muitos o poderoso aconchego institucional do PPE, como
por exemplo o Pis governante na Polónia. E haverá certamente bem mais de 200
prontos a votar ocasionalmente com a extremíssima direita em casos de luta de
poder entre globalismo e nacionalismo pela aplicação da mesma doutrina
neoliberal. As questões migratórias serão apenas um caso. A relação de forças
entre as duas correntes alterou-se nestas eleições, como é visível, à vista
desarmada, através da erosão dos blocos tradicionais: PPE e S&D
(Socialistas & Outros Democratas).
É certo que os poderes do
Parlamento Europeu são muito limitados no plano das decisões ao nível central
da União Europeia. No entanto, os blocos moveram-se, vai haver ondas de choque
numa União desafinada e, como é seu timbre, com as costas viradas para os
cidadãos e os povos europeus.
Nota:
1. Ver artigo «O fascínio da União Europeia por
Trump», em caixa.
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