sábado, 1 de junho de 2019

União desunida e alheada


Com as recentes eleições europeias, os dois grandes pilares (sociais-democratas e conservadores) em que tem assentado a política autoritária e austeritária da União Europeia sofreram um abalo relevante.

José Goulão | AbrilAbril | opinião

O instantâneo da União Europeia obtido pelas eleições para o Parlamento Europeu é o de uma entidade cada vez mais desunida e desafinada, incapaz de cativar metade dos eleitores, chocando o ovo da serpente nazifascista e onde os fundamentos do próprio poder, tal como tem existido, estão a ser seriamente corroídos. Uma caricatura de democracia.

A satisfação manifestada por vozes oficiais do Parlamento pelo facto de a abstenção ter diminuído é absolutamente ridícula e um artifício falhado em matéria de propaganda. Os 51% de afluência foram alcançados a duras penas, tendo em conta que em cerca de um terço dos Estados membros (9) a abstenção foi superior a dois terços – na República Checa superou mesmo os três quartos dos eleitores inscritos. Também é relevante para o resultado final o facto de o voto ser obrigatório em cinco países, o que não inibiu 70% dos búlgaros de violarem a lei; mas permitiu que a Bélgica e a Grécia superassem a média, caso contrário seriam situações idênticas às de Portugal.

Motivo de satisfação para os fundamentalistas do federalismo e do europeísmo apenas pode ser o facto de a afluência ser, finalmente, da ordem de grandeza da que se regista nos Estados Unidos da América, onde metade dos eleitores não vão às urnas pelo que o presidente é eleito por um quarto dos cidadãos com direito de voto. Uma democracia florescente e muito participativa.



Vem a propósito lembrar que uma taxa de abstenção como a que existe na União Europeia serve aos governos dos Estados membros e às instituições de Bruxelas para «invalidarem», por exemplo, a legitimidade das eleições democráticas e livres realizadas na Venezuela.

Seja como for, metade dos europeus ignoraram as urnas. Se isso não é motivo de inquietação para os fundamentalistas europeístas é porque, para eles, a opinião e as atitudes das pessoas não são assim tão importantes – o que já se sabia através da prática quotidiana.

Os pilares sofreram abalo

Olhando para os resultados registados nos 28 países deduz-se que os dois grandes pilares em que tem assentado a política autoritária e austeritária da União Europeia sofreram um abalo relevante. A direita conservadora e os sociais-democratas, mais os respectivos comparsas de ocasião, deixaram de poder «governar» sozinhos, necessitando agora da coparticipação dos liberais ou dos verdes, ou da extrema-direita de tendências fascistas. Em qualquer dos casos não será difícil, porque trata-se de seguir a cartilha económica e política neoliberal como até aqui. No entanto, os feudos burocráticos instalados pelos dois blocos, em benefício próprio, passam a ter de ser partilhados, o que certamente provoca contrariedades na clique que mexe os cordelinhos em Bruxelas.

Este é um dado político a reter como consequência das eleições. E que terá implicações práticas na escolha dos ocupantes de cargos como o de presidente da Comissão Europeia, presidente do Parlamento, comissários europeus e afins. Essas «eleições» – como gostam de dizer os burocratas europeístas, subvertendo, de facto, o conceito de «eleger» – terão de ser negociadas através de concessões que os putativos constituintes das novas maiorias não deixarão de exigir em termos de cargos, prebendas e mordomias, as inerentes vantagens de se ter poder em Bruxelas.

A título de teste, veremos o que vai acontecer com a indicação do alemão Manfred Weber para presidente da Comissão. O Partido Popular Europeu (PPE) indigitou-o e o que poderia ser uma «eleição» acordada entre os dois grandes blocos tradicionais talvez venha a tornar-se um processo com sobressaltos, porque outras candidaturas se apresentarão como viáveis. Poderá valer ao bávaro Weber, simpatizante neofascista, o facto de ser o escolhido pelos Estados Unidos para sabotar o estratégico gasoduto Nord Stream 2, um negócio entre a Alemanha e a Rússia de cuja concretização Washington nem quer ouvir falar1. Veremos se a importância da missão que lhe é outorgada será suficiente.

27% de potencial poder fascista

Outro sinal de que as eleições europeias tornaram mais fluido o poder político tradicional na União Europeia é a emergência em força das tendências nazifascistas no Parlamento Europeu.

É cedo, muito cedo ainda, para fazer contas e tirar conclusões sobre o poder acumulado daquilo a que o pudor linguístico divide entre «populistas», «nacionalistas», «eurocépticos» sempre para evitar chamar-lhes aquilo que realmente são.

Stephen Bannon, o enviado de Trump para unificar o fascismo europeu, e que para o efeito montou escritório em Bruxelas e uma «academia» em Itália, manifestou a ambição de instalar 250 deputados no Parlamento Europeu, isto é, um terço da câmara.

A meta era ambiciosa e terá ficado por atingir.

Diz-se «terá» porque, olhados os resultados ainda à margem de qualquer enquadramento que venham a incidir na definição da organização parlamentar, 200 parece ser um número mais compatível com a realidade. O que significará 27%, mais de um quarto da câmara.

Este número não é «institucional», isto é, não traduz um grupo – se assim fosse seria o maior do Parlamento, sobrepondo-se aos 180 do PPE.

É antes um valor calculado com base nas contribuições de vários países para as tendências neonazis e fascistas – Alemanha, Áustria, Bélgica, França, Itália, Reino Unido, Holanda; e também nos novos contributos de Espanha, Suécia e Grécia e na indefinição organizacional de toda a área da direita e extrema-direita parlamentares.

O Partido Popular Europeu (PPE) está longe de estabilizado. Tem conservado no seu interior correntes claramente fascistas como a do Fidesz húngaro de Viktor Orban (que está suspenso e elegeu 15 deputados), do Partido do Direito e da Justiça da Polónia (PiS, 23 eleitos), do HDZ da Croácia (4 eleitos) e outros eleitos distribuídos, designadamente, pelos Estados bálticos, República Checa e Eslováquia.

Por outro lado, na legislatura que agora termina há deputados de índole fascista repartidos entre pelo menos três grupos da direita parlamentar, incluindo o PPE, como já se viu.

O modo como essas tendências vão agora arrumar-se ainda está em aberto e depende da adaptação de grupos já existentes e eventual criação de novos. As negociações, os leilões, chantagens e ameaças vão fervilhar nas semanas que estão pela frente. Haverá um pouco menos de 200 deputados prontos a assumir-se como de extrema-direita ou fascistas, preferindo muitos o poderoso aconchego institucional do PPE, como por exemplo o Pis governante na Polónia. E haverá certamente bem mais de 200 prontos a votar ocasionalmente com a extremíssima direita em casos de luta de poder entre globalismo e nacionalismo pela aplicação da mesma doutrina neoliberal. As questões migratórias serão apenas um caso. A relação de forças entre as duas correntes alterou-se nestas eleições, como é visível, à vista desarmada, através da erosão dos blocos tradicionais: PPE e S&D (Socialistas & Outros Democratas).

É certo que os poderes do Parlamento Europeu são muito limitados no plano das decisões ao nível central da União Europeia. No entanto, os blocos moveram-se, vai haver ondas de choque numa União desafinada e, como é seu timbre, com as costas viradas para os cidadãos e os povos europeus.

Nota:
1.  Ver artigo «O fascínio da União Europeia por Trump», em caixa.

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