A quem interessaria diluir suas
próprias transgressões, fazendo aparecer vazamentos de “mil políticos”? E quem
tem acesso aos órgãos norte-americanos de vigilância capazes violar as
comunicações de qualquer pessoa no planeta?
Antonio Martins | Outras Palavras
Rememore os fatos, como num
filme. O ministro da Justiça está
nas cordas, acuado pelo vazamento de diálogos que revelam como, quando
juiz, abandonou a imparcialidade, feriu a lei e imiscuiu-se em assuntos
políticos para favorecer um candidato que, no ato seguinte, o levaria ao
governo. Em certa altura, sua linha de defesa, que jamais nega a possibilidade
de os diálogos serem reais, torna-se
ineficaz. Ele viaja aos
Estados Unidos, pela segunda
vez em apenas três semanas, tomando agora o cuidado de licenciar-se
do posto – o que desobriga tanto a si próprio quanto (em especial) as
autoridades norte-americanas de reportarem com quem se encontrou, e em que
circunstâncias.
Quatro dias após seu retorno,
eclode o rocambolesco episódio das prisões. Na terça-feira (23/3), com
autorização de um juiz de primeira instância, quatro pessoas são
encarceradas sob acusação de terem invadido as contas do ministro nas
redes sociais. São, fica logo evidente,newbies, amadores dados
a pequenos golpes – a quem faltam tando saber tecnológico quanto equipamentos
para invasões de porte. Rapidamente, porém, os fatos se precipitam e ganham
nova dimensão. Na quarta, alguém da Polícia Federal nunca identificado (o
anonimato de agentes do Estado será constante nesta história) diz aos
jornais que os supostos hackers são os mesmos que alimentaram The
Intercept, a publicação que incomoda Moro.
Na quinta, festival de fantasia e
pirotecnias. Os amadores de Araraquara e Ribeirão Preto, cuja façanha suprema
consistia até então em pequenos
estelionatos e falsificação de carteiras de estudante, teriam, a
partir de suas garagens, quebrado o sigilo de “mais
de mil pessoas”. A lista incluiria o presidente
da República, os da Câmara e Senado,
o de ministros
do STF e o da Procuradora
Geral da República. No meio da tarde, Moro anunciou a destruição
do material – para negá-la depois,
por meio da PF, quando ficou clara a ilegalidade
extrema do ato. Ao mesmo tempo, passou
a telefonar aos “hackeados”. Quando Marco Aurélio de Mello, ministro
do Supremo, lembrou que
não poderia possuir a lista de vítimas de um processo judicial que corre em
sigilo, tentou corrigir-se de maneira atrapalhada. Afirmou que
lista não tinha; mas que, sim, avisava as
vítimas – o que transfere para o terreno dos paradoxos lógicos a
questão de como as identificava…
Na mesma quinta-feira, porém, um
fato paralelo começou a levantar o véu de mistério que encobre o caso. O
jornalista Glenn Greenward, diretor do Intercept, exibiu
a Veja diálogos que indicam a existência de mais de um hackeamento.
Nestes diálogos, Glenn conversa
com sua fonte sobre sinais de que autoridades brasileiras estavam
recebendo, em seus telefones, chamadas inusuais, que – diziam os jornais já
àquela época – podiam indicar interceptação e grampeamento. A fonte zomba:
“posso garantir que não fomos nós (…) se fizéssemos isso ia ficar muito na cara
(…) a notícia não condiz com nosso modo de operar. Nós acessamos telegrama
(sic) com a finalidade de extair conversas e fazer justiça, trazendo a verdade
pra o povo”. O hacker de Intercept também afirma que
extraiu todo o material de uma única conta: o do procurador Dalton Dallagnol.
Surgem, então, duas hipótese
bastante seguras. Há, de fato, alguém abastecendo o Intercept a
partir do hackeamento das contas de Dallagnol (todos os diálogos
divulgados pelo site de Glenn Greenwald até o momento corroboram esta ideia). E
há um segundo fato: o vazamento – confirmado pela PF e por Moro –
das conversas de “cerca mil” (ou pelo menos “centenas”)
políticos e membros do Judiciário.
O que vem a seguir está
inteiramente no terreno das especulações. Quem, então, teria produzido
este vazamento em massa? Os falsificadores de carteiras estudantis do interior
de São Paulo? Ou alguém imensamente mais poderoso e acostumado a tais
operações? Supondo mais claramente: as agências de informação norte-americanas,
com as quais Moro possui
relações privilegiadas; e com as quais ele teve, em teoria, enorme tempo
para tramar, durante suas duas visitas recentes aos EUA – uma das quais
inteiramente envolta em sigilo.
Cui prodest? – “A quem
interessa?” é a pergunta primeira de qualquer investigação. Neste episódio
concreto, especule: quem mais se beneficiaria em suscitar o fantasma da
existência de “mil hackeamentos”; em possuir o conteúdo das conversas de
“centenas” de personalidades de Brasília; em poder manejá-los, com força de
autoridade; e em criar uma situação de caos na qual a única saída viável seja
anular os efeitos de todos os vazamentos?
Cui prodest, ministro Sérgio
Moro?
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Nota PG: Significado de cui
prodest: “A quem aproveita”?
Os criminalistas colocam entre os
prováveis criminosos as pessoas a quem o delito pode beneficiar.
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