ENTREVISTA
"Os militares estão num governo de opereta. Eles se submeteram a constantes vexames" - diz pesquisador
Os estudos de João Roberto
Martins Filho são a prova de que, no Brasil, os conflitos se repetem, nunca
cessam. Quando ele iniciou o mestrado, nos anos 1970, o país estava sob domínio
dos militares e, nas ruas, a oposição mais ruidosa emergia da ala estudantil.
Na época jovem acadêmico e fã de História, Martins se interessou pelo tema e se
debruçou sobre documentos, entrevistas e livros para entender os grupos de
estudantes na ditadura militar. O resultado lhe rendeu tese de mestrado na
Unicamp, mas o principal fruto que colheu foi o fascínio pelo plano de fundo da
pesquisa: as disputas internas das Forças Armadas do Brasil, assunto pouco
explorado na academia.
Nos anos seguintes, Martins Filho
se tornou uma referência no tema. Foi ele que, no doutorado, refutou a ideia de
que havia apenas dois grupos que explicavam o regime — o moderado, dos
castelistas, e o linha-dura. Na sua tese, adotada até hoje por outros
estudiosos, mostrou como as divisões internas nas casernas eram numerosas e
complexas.
Hoje, 25 anos depois, o
pesquisador se concentra em atividade similar, mas para tratar do governo de
extrema direita de Jair Bolsonaro. Com adaptações ao método de outrora — agora,
além de pesquisas, leituras e conversas, também vasculha redes sociais — ele
busca mapear os diferentes interesses entre os militares no poder. Suas
conclusões não são animadoras: se, de um lado, o alto escalão do Exército que
apoiou Bolsonaro na campanha não está feliz com o governo, de outro, o baixo
escalão está insatisfeito com o próprio Exército. Para Martins Filho, não é
difícil imaginar que, num cenário de extrema crise, Bolsonaro possa usar de sua
influência entre os postos inferiores do Exército para provocar uma revolta,
uma inquietação popular.
A percepção do pesquisador tem
fundamento: o comportamento errático de Bolsonaro. No mês passado, quando
enfrentava sua pior crise de popularidade e via protestos em massa contra os
cortes na educação, o presidente apoiou manifestações favoráveis a seu governo
que tinham como alvo pilares democráticos como a Câmara dos Deputados e o
Superior Tribunal Federal. “Nada impede que, ao se sentir ameaçado, dentro da
sua tradicional irresponsabilidade, o presidente também faça acenos para os
escalões inferiores do Exército”, conta Martins Filho ao Intercept. “Seria
um desastre. E essa possibilidade só existe porque o Exército, em vez de ficar
profissionalmente fora da política, decidiu apoiar Bolsonaro.”
Martins Filho acredita que parte
da tensão que vivemos agora se deve ao fato de que os militares — sobretudo o
Exército — erraram ao voltar ao protagonismo da política. Hoje são oito
representantes das Forças Armadas nos ministérios, número maior do que todos os
governos da ditadura militar. Para ele, os militares endossaram, em nome do antipetismo,
com o claro objetivo de afastar a centro-esquerda do poder, um candidato que,
agora percebem, é despreparado para funções básicas do cargo. “Me parece que os
militares entraram nesse projeto para criar uma imagem positiva entre a
população, mas, na prática, foi um tiro pela culatra”, diz.
Pouco antes do regresso das
Forças Armadas ao centro do poder, Martins Filho se concentrava em estudar
práticas repressoras da ditadura. Professor titular da Universidade Federal de
São Carlos, em São Paulo, ele destrinchava a colaboração do governo da
Inglaterra com o do Brasil para criar um aparelho de repressão com salas de
tortura no Rio de Janeiro. Com espanto, viu, em 2015, políticos e eleitores de
classe média celebrarem a figura do torturador Coronel Brilhante Ustra durante
o rito que culminou o impeachment de Dilma Rousseff. Ali percebeu que era hora
de mudar seu foco para o presente. “Ninguém pode dizer que a classe média não
sabia quem era Bolsonaro”, fala Martins Filho. “Um homem capaz de elogiar tortura,
de elogiar ditadura, de dizer que ia metralhar os petistas, expulsar os
petistas do Brasil. Todo mundo sabia quem era esse homem. Uma vez eleito com 58
milhões de votos, continuou sendo quem era. E é nesse ponto que estamos.”
Conversei com Martins Filho por
uma hora e meia no começo de junho. Ele falou da demissão do general Santos
Cruz, da relação do governo com Mourão e outros generais e dos possíveis riscos
que Bolsonaro representa à democracia.
Intercept – Qual é o tamanho real
da influência do presidente entre os militares?
João Roberto Martins Filho – Com
exceção da eleição de 2014, quando teve votação mais expressiva, Bolsonaro
sempre se elegeu deputado federal com aproximadamente cem mil votos, não muito
mais ou muitos menos do que isso. Foram seis eleições com retrospecto parecido.
Seu eleitorado sempre foi a família militar, sargentos e soldados. Ele passou
28 anos falando para esse pessoal. Nesse caminho fez coisas absurdas, como
elogiar o governo militar.
Nos escalões mais altos, como
coronel e tenente-coronel, ele sempre foi considerado um péssimo exemplo porque
mal chegou a capitão e publicou uma carta à revista Veja para reclamar de
salários. Só não foi punido porque se percebeu uma grande insatisfação nos
setores mais baixos do Exército e houve certo receio de transformar o caso num
pólo de agitação. Então ele acabou sendo afastado da Escola de Aperfeiçoamento
de Oficiais e com isso não poderia mais progredir na carreira. Bolsonaro era
desprezado nos escalões maiores. O general Ernesto Geisel falava que Bolsonaro
era um péssimo militar, por exemplo.
No inquérito, o oficial
responsável diz que Jair Bolsonaro era um homem de extrema ambição financeira.
Não era feito para carreira militar. Mas, como o eleitorado dele era de
famílias militares, sempre ficou com pé em cada coisa. Sentia que era militar
sendo um político. Uma vez que assume o poder, é o mesmo jogo. Ele pensa, acima
de tudo, nele próprio. Interessa a ele manter a corte de militares na medida
que fortaleça o poder dele. Quando tentam controlá-lo, ele mobiliza outro
setor, o da extrema direita. O que acho errado é chamar essa ala de extrema
direita de ideológica. Ideológico todos eles são. O que levou todos a apoiar o
Bolsonaro foi o antipetismo.
Durante as eleições, as Forças
Armadas demonstraram apoio a Bolsonaro. Muitos oficiais fizeram até campanha.
Você diria que hoje a relação entre as duas partes não é tão sólida quanto
parecia na época das eleições?
A questão fundamental era afastar
a centro-esquerda, e Bolsonaro conseguiu. Quase perdeu a eleição, mas
conseguiu. Se não houvesse acontecido o atentado em Juiz de Fora durante a
campanha, não sabemos o que poderia acontecer. O fato é que, uma vez entendido
que ele era a única opção para afastar a centro-esquerda, os oficiais engoliram
muitas coisas. A sucessão de fatos que veio depois, porém, é lastimável. É
impossível achar que oficiais da Aeronáutica, da Marinha e do Exército não se
incomodem com as declarações e as posturas do presidente, nem que não sejam
mais inteligentes do que Bolsonaro.
Sinto que há oficiais que
ridicularizam algumas bandeiras como esta última de Bolsonaro, a de transformar
Angra dos Reis numa Cancun. Como que alguém com mínimo de inteligência pode
achar que isso é a bandeira de um Presidente da República? Então acho que, ao
apoiar Bolsonaro como alternativa para derrotar centro-esquerda, os militares
deram um crédito de confiança, mas, desde então, ele tem se revelado um
presidente que envergonha o país. Isso também tem efeito dentro das Forças
Armadas.
De onde vem o antipetismo das
Forças Armadas? Em recente entrevista à Folha de S.Paulo e ao El País, Lula mencionou que modernizou instalações, que
comprou equipamentos para os militares e que tinha bom diálogo com os oficiais.
Quando a situação começou a ficar hostil para os petistas dentro das casernas?
O antipetismo é uma atitude
irracional de parte dos setores da Forças Armadas, principalmente do Exército.
Como tal, tem uma série de motivações. Eu diria que as Forças Armadas aderiram
ao moralismo de classe média na luta anticorrupção, como se tivessem finalmente
achado o motivo de toda a corrupção do país no PT. Por outro lado existe o
preconceito de classe média que nunca foi resolvido, mesmo na época de boa
popularidade de Lula, que nunca admitiu que um trabalhador chegasse à
presidência da República, embora durante o governo de Lula e de parte do governo
de Dilma as Forças Armadas tenham se adaptado à direção civil por meio do
Ministério da Defesa.
Um terceiro motivo, e esse é
bastante concreto, foi a questão da Comissão Nacional da Verdade, as
investigações que ela fez e o relatório que ela divulgou culpando toda a cadeia
de comando das cinco Presidências da República, os generais, entre 1964 e 1985.
E o quarto motivo foi o fato de que o PT, numa reunião de diretório nacional,
aprovou uma moção dizendo que deveria ter mexido no currículo das escolas
militares, entre outras medidas que não tomou. Esse moção foi aprovada no congresso
nacional do PT e foi completamente inoportuna. Isso porque o PT teve três
mandatos e meio pra ter uma política de defesa e essa política foi, digamos, em
grande parte favorável às Forças Armadas. Não tinha sentido dizer o que não foi
feito e provocar uma grande área de atrito com as Forças armadas que já tinham
essa postura antipetista. O PT fez muito pelas Forças Armadas, as instalações
foram modernizadas, houve novas construções, houve manutenção, houve a retomada
do submarino nuclear, houve o projeto dos submarinos convencionais em acordo
com a França, houve o fechamento do acordo com os caças da Suécia, houve uma
série de projetos do Exército aprovados. Do ponto de vista das verbas no
investimento das Forças Armadas, a época do PT foi uma época de ouro.
Hoje tanto Bolsonaro quanto os
ministros afirmam que não existe uma ala militar no governo. Você, ao
contrário, parece entender que não só há uma óbvia ala militar como ela também
possui conflitos internos. Quais são os motivos de rusgas?
No governo militar, sempre se
procura dizer que os militares atuam unidos. Hoje é a mesma coisa. Você nunca
vai ver um militar reconhecer que há conflitos, “partidos”, digamos assim. Mas
o fato dos generais falarem sempre à imprensa significa que eles assumiram papel
fundamental no governo Bolsonaro. Então, a primeira constatação é que houve,
infelizmente, uma volta dos militares à política. Esse retorno foi organizado
pelo então comandante do Exército, o general Eduardo Villas Bôas (ele ocupou o
cargo de 5 fevereiro de 2015
a 11 de janeiro de 2019).
Você percebe essa intenção pelas
declarações que ele começou a dar depois da queda da Dilma Rousseff em 2016.
Quando ela caiu, houve uma mudança de postura do Exército. O Exército aderiu
institucionalmente à candidatura Bolsonaro. Os militares que hoje estão no
governo formam uma ala militar, queiram ou não. A segunda constatação é que, ao
se tornar parte do governo, eles inevitavelmente entram na luta política. Todo
o governo tem luta política interna. O que não está claro é como eles vão se
acomodar a esse conflito externo, com a ala civil.
Os militares precisam se adaptar
ao conflito com a ala de Olavo de Carvalho, você diz?
Isso. Mesmo que os militares não
quisessem ser uma ala militar, há uma ala civil, uma ala de extrema direita, a
que segue os ensinamentos de Olavo de Carvalho — a exemplo dos filhos de
Bolsonaro e o ministro das relações exteriores —, que está medindo força há
meses com a ala militar. Ultimamente, resolveram ficar quietos, mas é algo que
não deve durar muito. Pois é só essa ala civil perceber alguma influência maior
dos militares que vão voltar a atacar.
E entre os próprios militares,
por trás do falso discurso de unidade, há grandes conflitos?
A questão é saber se os militares
do alto comando, mais profissionais e pouco envolvidos em política, vão se
distanciar do governo Bolsonaro com o desenrolar do processo político. Poderia
haver, assim, um distanciamento entre os militares que são muito próximos ao
Bolsonaro, palacianos, e os militares da ativa. Outro problema do Exército é
saber se o Bolsonaro, em algum momento, vai precisar usar as bases políticas
dele. Isso significaria também apelar às forças inferiores do Exército. Aí já
houve sinais de que pode haver algum tipo de inflamação, principalmente nas
redes sociais. Isso se Bolsonaro se sentisse ameaçado. Não sabemos se isso
acontecerá ou não.
Existe o risco de uma revolta de
baixas patentes inflamada pelo próprio Bolsonaro?
É uma situação extrema. Só surgiu
a ameaça quando os militares divulgaram o que chamaram de versão da reforma da
previdência militar. Muitos ali perceberam que era, na verdade, um projeto de
reestruturação de carreira. Essa postura pegou muito mal nos postos de major
pra baixo, porque não trazia benefícios para os oficiais e praças e sargentos,
trazia apenas para os postos mais altos. Houve um surto de manifestações nas
redes sociais desses setores inferiores. Sabemos disso porque o comandante do
Exército foi obrigado a se manifestar.
Há uma latência e uma contradição
desses fatores que ficaram claras nesse episódio da reforma. Os militares,
principalmente sargentos, também têm queixas constantes sobre como os oficiais
usam sargentos e soldados para fazerem serviços pessoais. Isso pega muito mal.
Muitos deles atuam como empregados domésticos sendo militares. O Bolsonaro sabe
explorar essa revolta muito bem. É isso que está em jogo, e muitas pessoas não
sabem disso. Para virar uma rebelião, seria numa situação extrema, algo que não
estamos vendo agora. Mas é uma potencialidade. Bolsonaro pode apelar para o
eleitorado dele, composto sobretudo pelo baixo escalão, e acontecer alguma
rebelião. O primeiro eleitorado dele é essa turma, a oficialidade baixa, os
sargentos, que não tinham como se expressar e se expressavam através dele.
Qual seria o estrago dessa
revolta de baixa patente?
Seria o pior dos estragos. Já há
um estrago: o fato de que os militares foram levados ao centro da vida
política. Foram xingados e atacados como nunca tinham sido em outro governo,
desses que ele, Bolsonaro, vive atacando. Nos últimos 24 anos, nenhuma
autoridade desses governos — FHC, Lula e Dilma — ofendeu generais em público
como aliados do Bolsonaro fizeram. O pior dos estragos seria mexer com a
hierarquia dentro das Forças Armadas. Como o governo é populista, que morde e
depois assopra, capaz de articular pressões em protestos, como fizeram com
Rodrigo Maia no último dia 26, com bonecos e tudo, nada impede que, ao se
sentir ameaçado, dentro da sua tradicional irresponsabilidade, o presidente
também faça acenos para os escalões inferiores do Exército. Isso seria um
desastre. E essa possibilidade só existe porque o Exército, em vez de ficar
profissionalmente fora da política, decidiu apoiar Bolsonaro.
Que impacto poderia ter a reforma
da previdência dos militares?
É uma incógnita, eles não só se
desprestigiaram muito ao tentar escapar da reforma da previdência, como também
criaram uma divisão. Conversei com militares da reserva em relação a essa
proposta e, entre os que estão de major pra baixo e os que estão acima de
major, não se sabe como vai estar. O tema desapareceu. Quando o tema voltar,
vamos ver a repercussão.
Qual o interesse da entrada do
Exército na política? O que interessa a eles agora que estão lá?
O Exército nunca perdeu ideia de
que é uma espécie de pai da nação. E sempre se referiu ao artigo 142 da
Constituição, que fala da Garantia da Lei e da Ordem, interpretando-o como se
dissesse que, em último caso, a Constituição permite uma intervenção. O fato é
que não, a Constituição não permite. Ela permite intervenção militar em locais
determinados por solicitação de um dos poderes da República, nunca a
Constituição permitiria que os militares viessem para salvar a pátria.
Essa ideia de salvador da pátria
continua a existir no Exército. Só que, num ambiente democrático, o Exército
foi se adaptando ao ambiente civil. O Exército entrou na política porque, em
primeiro lugar, tinha um projeto conservador que era afastar o PT. Isso se
percebe em qualquer entrevista, eles realmente odeiam o PT. E, depois, o
Exército também tem um segundo objetivo que é mostrar como ajudar o país a
encontrar estabilidade. Acho que idealmente não seria pela via de um governo
Bolsonaro, mas o mais importante era afastar a centro-esquerda. A partir daí,
segundo eles, o Brasil se encaminharia. O Exército então mostraria que tem
quadros que podem ajudar o país a sair do buraco.
Na prática, nada disso aconteceu.
Os militares estão num governo de opereta. Eles se submeteram a constantes
vexames. Além de serem xingados, Bolsonaro arrastou o Exército e as Forças
Armadas para comemorar o Golpe de 64. Isso foi transmitido para todo mundo, não
era o que os militares queriam. O Exército sempre fez isso discretamente. Ele
associou os militares à ditadura militar, o que foi um golpe baixo. Então, me
parece que os militares entraram nesse projeto para criar uma imagem positiva
entre a população, mas, na prática, foi um tiro pela culatra.
No caso da Aeronáutica e da
Marinha, os interesses são outros?
Hoje você tem uma aberração que é
o general como ministro da Defesa. Quando foi criado o Ministério da Defesa, o
maior medo da Marinha era que caísse na mão do Exército. Porque o ministério
foi criado para ser civil. Então, a Marinha engoliu o ministério, mas não
apoiava. Uma vez criado o ministério da Defesa, houve muitas quedas de
ministros, mas surgiu uma cultura de comando civil dos militares. A primeira
coisa é essa. Nessa onda conservadora, tanto na Marinha quanto na Aeronáutica,
a grande maioria votou em Bolsonaro, mas os comandos das duas percebem que o
Exército está tendo um papel que sempre, historicamente, acharam exagerado, o
de salvador da pátria. A Marinha recusa retoricamente esse papel. Depois, a
Marinha também tem um projeto enorme, o do submarino nuclear, e a Força Aérea
tem um projeto muito grande também, tecnológico, o dos caças suecos. São
projetos que vão se estender por muitos anos, vão acabar quando não tiver mais
governo Bolsonaro. Eles percebem que é perigosa a associação a um governo
específico. Isso não quer dizer que não tenham entrado na onda conservadora e
apoiado a candidatura Bolsonaro. Se você observar, o governo também tem
almirantes, brigadeiros e coronéis, mas são pessoas que estão em cargos
burocráticos e em quantidade bem menor do que em relação ao Exército. Na
verdade, o que ocorre é que o governo Bolsonaro é associado a generais, não a
almirantes ou brigadeiros. Nessa altura, então, a Marinha e a Força Aérea devem
achar que fizeram bem. É um governo errático.
Como você avalia a atuação do
Ministério da Defesa nesses primeiros meses de governo? Está sendo como o
esperado?
A criação do ministério (ocorrida
em 1999) foi um avanço nas relações entre civis e militares, inegavelmente, com
todos os problemas. Tenho esperança que, com o passar do tempo, prepondere lá e
no comando do Exército uma visão mais realista do que é o governo Bolsonaro e,
assim, ocorra algum recuo para o profissionalismo. Tenho conversado com oficiais
da reserva, que acabaram de sair, inclusive, e alguns deles, os mais lúcidos,
consideram que a conta do fracasso do governo Bolsonaro vai ser jogado em cima
do Exército. Isso é muito ruim para a imagem deles. Embora o Exército diga que
é sempre bem avaliado na pesquisa de opinião pública, houve, pela primeira vez
desde 1985, uma queda de popularidade na última pesquisa.
Visto de fora, pelo Twitter e
pelas declarações dos olavistas, o general Hamilton Mourão atua como uma
espécie de indesejado contraponto à ideologia bolsonarista. Era esperado que
ele agisse assim? Faz parte da estratégia de Bolsonaro ou Mourão está, de fato,
incendiando as articulações do governo?
Acho que existe uma contradição.
O Mourão se coloca como alternativa se o governo Bolsonaro não der certo. Como
ele também foi eleito, não pode ser demitido. Bolsonaro já deixou claro que
demite sem escrúpulos, o que é uma característica da política no Brasil. Mas,
veja, o Mourão declarou que tinha oito assessores antes do mandato. Ele elabora
projetos e programas, ele foi treinado pra não soar como aquele general rude e
ignorante. O Mourão passou a ter imagem de alguém equilibrado, que faz
contraponto às barbaridades que Bolsonaro fala.
Para o país seria muito ruim as
duas opções: esse governo que já temos e a outra a de um governo chefiada por
um general que acabou de sair do Exército. É evidente que os empresários, a
mídia, o setor da agricultura, os donos do poder estão considerando a possibilidade
Mourão, mas, para uma perspectiva democrática, nenhuma das duas é boa. Era
melhor deixar o governo Bolsonaro mostrando que o Brasil é um governo de
direita do que dar uma recauchutada com um governo de alguém mais preparado,
que é o Mourão.
Como você avalia a relação entre
Bolsonaro e Mourão? Mourão, embora vice, é mais respeitado pelas Forças Armadas
do que o presidente. Ele não parece ser um cara muito submisso…
O Roberto Requião, que foi muito
importante no parlamento, fez um perfil psicológico do Bolsonaro como deputado
de baixo clero que passou por inúmeros partidos e que era uma pessoa que tava
sempre reagindo a qualquer pessoa que era mais capacitada do que ele. Ele tinha
uma insegurança básica. Pode-se dizer que o Congresso inteiro é mais capacitado
do que o Bolsonaro. Foi uma falha, aliás, não terem cassado o mandato dele por
falta de decoro parlamentar. Havia base para isso. Então, a atitude do
Bolsonaro com o Mourão, muito diferente de FHC com seu vice, de Lula com seu
vice, até de Dilma com seu vice, ainda que este caso seja bem complexo, é
justamente o medo de que o Mourão passe a perna nele. Isso nos leva a crer que
ele é profundamente inseguro. Ele e os filhos acham que a rasteira está perto.
O Mourão, para ele, é uma espécie de sombra, alguém que pode dar facada nas
costas a qualquer momento. Ele não pode brigar com Mourão, porque ele é um
fantasma pra ele e pros aliados mais próximos.
Na sessão de votação pelo
impeachment de Dilma Rousseff, Bolsonaro fez uma saudação a Brilhante Ustra, um dos
responsáveis por torturar pessoas na época da ditadura. Durante as eleições
também vimos apoiadores do político usarem camisetas de Ustra. Como o senhor
avalia essa normalização ou relativização de um comportamento abominável, como
o ato de tortura, por parte de um chefe de estado e de muitos que o elegeram?
É evidente, está mais do que
provado, até por inúmeras fontes absolutamente incontornáveis, que houve
tortura no Brasil. Execuções, atos bárbaros, assassinatos e desaparecimentos,
não há como negar. Há um documento oficial, um relatório da Comissão da
Verdade. A coisa mais gritante é que Bolsonaro foi aplaudido pela classe média
que tava assistindo à sessão do impeachment na Avenida Paulista. Ninguém pode
dizer que a classe média não sabia quem era Bolsonaro. Um homem capaz de
elogiar tortura, de elogiar ditadura, dizer que tinham matado 30 mil pessoas,
que ia metralhar os petistas, expulsar os petistas do Brasil. Todo mundo sabia
quem era esse homem. Uma vez eleito com 58 milhões de votos, continuou sendo
quem era. Chegou a ponto de visitar Israel e dizer que Holocausto tem que ser
perdoado. Tem certa dose de ignorância aí, de burrice, pode-se dizer, mas ele
não tem o menor respeito pelo conhecimento histórico, não sabe nada de História
do Brasil. Se fizessem uma sabatina com ele, tiraria uma nota sofrível em
História, de qualquer período. Uma das coisas que queima o Exército no governo
Bolsonaro é como esse homem passou na academia de Agulhas Negras, como não foi
reprovado em História. É uma coisa interessante de se perguntar.
Durante a campanha, Bolsonaro
citava bordões que prometiam acabar com comunistas. Esse inimigo imaginário se
consolidou na mente de seus apoiadores, de modo que, ainda hoje, pelas
correntes de WhatsApp, o principal alvo dos grupos bolsonaristas são
partidários do comunismo, tidos como a escória da sociedade. Bolsonaro
realmente crê nisso ou é uma estratégia?
É difícil saber. Ele é uma
pessoa… Eu nunca colocaria a característica de pessoa inteligente, ele é uma
pessoa esperta. Quando falava essas barbaridades, conseguia dois objetivos:
mantinha o eleitorado dele e aparecia na mídia. O Bolsonaro só saía da
obscuridade quando falava uma barbaridade. Isso teve preço caro porque hoje, em
todo lugar do mundo que ele vai, pegam essa frases dele e mostram o que ele é.
Talvez ele acredite no que diga. Mas é bem possível que não importa para ele o
que é verdade histórica. Para ele o que importa é se aquilo que o vai falar
pegará bem com os seguidores dele ou não. Você não vai ver ninguém das Forças
Armadas tão reacionário assim, embora houvesse o general Luiz Rocha Paiva, uma
espécie de caricatura. O apoio ao governo militar é feito com algum cuidado por
parte dos militares. Bolsonaro nunca foi ponderado. No começo da carreira,
chegou a falar que fuzilaria o Fernando Henrique Cardoso, à época na
Presidência.
Dois dias depois da publicação da reportagem que mostrava diálogo ilegal entre o então
juiz Sérgio Moro e o procurador Deltan Dallagnol, o general Villas Bôas
divulgou em suas redes uma mensagem de apoio ao agora ministro Moro. O que isso
representa?
No contexto dessas revelações de
mensagens que em nenhum momento tiveram sua veracidade questionada, num momento
de alta especulação sobre quem teve capacidade de hackear as mensagens nessas
dimensões e num momento de crítica geral da inconstitucionalidade da atuação da
tabelinha entre juiz Moro e promotor Dallagnol, causou uma estranheza muito
grande a declaração do ex-comandante do Exército Villas Bôas, tido por muito
tempo como um cara ponderado, em apoio ao ministro Moro. E essa aproximação de
Moro aos generais tem se firmado há algum tempo. Acredito que o general Villas
Bôas continua expressando opiniões que são as mesmas do alto comando. Se não
forem, o alto comando tem que de alguma forma deixar claro opiniões diferentes,
mas acho que isso não acontece. Há generais, próximos ao grupo do Palácio do
Planalto, que são praticamente irmãos siameses do Bolsonaro, com destaque para
o general Heleno. Mas não era de esperar isso do Villas Bôas, embora ele seja assessor
do Heleno no Palácio do Planalto. Até segunda ordem, Villas Bôas amplificou a
opinião do Exército. É estranha a postura do Villas Bôas porque ela é uma clara
intervenção na política, o que não é de se esperar em qualquer situação numa
ordem democrática.
Você já deve estar cansado de
responder essa pergunta, mas é preciso esclarecermos: há risco para democracia?
Olha, você tendo um líder
populista com tendências fascistas — embora eu prefira chamar isso e analisar o
fenômeno brasileiro como “bolsonarismo”, expressão brasileira da extrema
direita no mundo —, já é uma ameaça à democracia em si. Uma ameaça de golpe de
estado vejo mais afastada. O grande projeto do Exército era usar o governo
Bolsonaro para se mostrar como responsável, mas isso não está dando certo.
Sua carreira acadêmica começou
com estudos sobre movimentos estudantis durante a militarização do estado,
entre 1964 e 1968. Como você vê agora esse levante a favor da educação e contra
o governo de Bolsonaro?
O modo como o governo Bolsonaro
conduziu a política educacional fez surgir uma oposição ao governo dele, de um
novo tipo. Não é uma oposição partidária. Quem foi na manifestação viu que
todos os grupos da esquerda estavam presentes, mas nenhum deles quis liderar,
um movimento de massa, amplo, em defesa da educação, e o governo Bolsonaro, na
ignorância dele, não percebeu que as famílias brasileiras, independente da
classe social, almejam ter o filho na universidade e enxergam claramente que as
políticas do governo vão diminuir essa possibilidade e vão enfraquecer o ensino
superior. Então esse movimento tende a dar muito trabalho ao governo Bolsonaro.
É um movimento de tipo novo.
Você acha que a demissão do
general Santos Cruz muda o clima dentro do Exército?
Acompanhei a cobertura dos três
principais jornais e dos telejornais sobre o episódio. Logo se construiu a
versão de que foi uma vitória da ala ideológica ou olavista do governo. A meu
ver a coisa é mais complicada. Há efetivamente uma direita civil no governo
Bolsonaro, que disputa poder com a ala militar. Mas ideologicamente não vejo
diferença entre eles. Evidente que os militares não gostaram de ser atacados
com palavras de baixo calão por Olavo de Carvalho. Foi a reação do general
Santos Cruz a isso que provocou sua demissão, pois o colocou em rota de colisão
com os filhos de Bolsonaro e este acabou tomando o partido deles contra seu
velho amigo, um homem conservador mas de opiniões fortes.
Mas a explicação que destaca uma
suposta vitória olavista não é limitada apenas porque são todos ideológicos.
Ela também não explica por que o ministro da Defesa estava presente no momento
da comunicação da decisão (o general Heleno também estava, mas ele não conta,
pois é uma espécie se irmão siamês do presidente). Ou seja, o ministro da
Defesa deve ter indicado o nome do general Ramos, ainda na ativa e comandante
do Sudeste, o mesmo que em meados de março deste ano enviou convite para a
cerimônia de aniversário da Revolução Democrática de 31 de março de 1964,
alguns dias antes que o próprio presidente ordenasse comemorações do evento. O
general é um homem de confiança do ministro da Defesa e do comandante do
Exército. Não parece ter a independência de opinião do general que sai. Resta
conferir. No final, sai um militar, mas os militares permanecem fortes.
Fotos: 1) Bolsonaro e militares, o sêbo - Fernando Souza/AFP; 2) O presidente Jair
Bolsonaro e o vice-presidente Hamilton Mourão durante Cerimónia de Formatura da
Turma do Instituto Rio Branco - Antonio Cruz/Agência Brasil
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