Franco Berardi entrevistado por Juan
Íñigo Ibáñez | Outras Palavras | Tradução: Rôney Rodrigues | Imagem: Edward
Hopper, Four Lane Road (1956)
O filósofo italiano Franco
Berardi, referência na esquerda europeia, avalia as causas que levaram ao
fortalecimento da ultradireita, as divergências no feminismo e como a conexão
tecnológica ameaça acabar com a ironia na linguagem e a sedução.
No início de agosto de 2017, tudo
estava pronto para que Franco “Bifo” Berardi apresentasse sua performance
“Auschwitz na Praia” na feira de arte alemã documenta 14. No último
minuto, os curadores da exposição decidiram cancelar a proposta do acadêmico
bolonhês: várias organizações reclamaram que a situação dos imigrantes era
incomparável com a enfrentada pelos judeus durante a Segunda Guerra Mundial.
Ao fim, a performance foi
substituída pela leitura pública do poema de “Bifo” que inspirou o trabalho
original, além de um debate aberto sobre a crise dos migrantes na Europa.
Apesar disso, Berardi seguiu
insistindo – ferreamente – no paralelismo entre as condições que enfrentam os
refugiados que dia após dia chegam à costa europeia, com os seis milhões de
judeus assassinados durante o nazismo. E foi ainda mais longe: equiparou o
contexto político atual – marcado pelo crescimento da extrema-direita – com o
que tornou possível a ascensão do nazismo na Alemanha.
Nas últimas eleições para o
Parlamento Europeu, os resultados para a ultradireita passaram longe do triunfo
significativo que alguns prenunciavam e, no fim das contas, os grandes
vencedores foram os partidos ecologistas. No entanto, 21 coalizões
ultraconservadoras ganharam assentos e aumentaram em 10% seus representantes no
Parlamento Europeu. E, enquanto os tradicionais partidos socialistas e de
centro-direita perderam a maioria absoluta – e, por isso, já não podem mais
formar uma “grande coalizão” –, as propostas de Marine Le Pen, Matteo Salvini e
Nigel Farage – líder do partido do Brexit – conseguiram impor-se na França,
Itália e Reino Unido. Da mesma forma, na Hungria, Polônia e Suécia também se
consolidaram forças de extrema-direita e antieuropeias.
Apesar de esse avanço eleitoral
ser aparentemente modesto, para muitos analistas o discurso de populistas
xenófobos goza hoje de excelente saúde, chegando, inclusive, a “infiltrar-se”
por dentro das social-democracias nórdicas: na Dinamarca, a centro-esquerda
liderada por Mette Frederiksen acaba de recuperar o poder com base na promessa
de implantar uma forte política anti-imigração.
Por que o senhor considera que a
derrota de Hitler não foi o fim do nazismo na história da Europa nem do mundo?
Antes de tudo, a dinâmica social
que tornou possível a onda neorreacionária contemporânea (do Brexit a Trump, de
Duterte a Bolsonaro) é a mesma que levou à vitória de Hitler em 1933. Hitler
ganhou porque convenceu os trabalhadores empobrecidos e humilhados na Alemanha
de que não eram trabalhadores derrotados, mas guerreiros brancos e arianos.
O nazismo substitui o devir
social pela identidade nacional. É o que está acontecendo nessa época de Trump;
é o que acontece hoje na Europa: os trabalhadores, empobrecidos pela máquina
financeira e humilhados pela esquerda neoliberal, rebelam-se em nome da
identidade, da raça, da nação. Os humilhados, como classe social, se reafirmam
como classe guerreira.
Em relação ao que está
acontecendo na região do Mediterrâneo: é um verdadeiro holocausto que se
desenvolve diante dos olhos da população europeia. Todos os dias, estamos
matando homens e mulheres que vêm da Síria, do Afeganistão, da África. Todos os
dias deportamos pessoas que estão fugindo das guerras que os europeus e
norte-americanos provocaram aos torturadores da Líbia e da Turquia.
Alguém disse que não se pode
comparar os seis milhões de judeus assassinados pelos nazistas. 30 mil não
parece ser suficiente… Vamos esperar que cheguem a seis milhões?
O nazismo de hoje tem uma
dimensão planetária: os “judeus de hoje” são milhões de pessoas que o
colonialismo humilhou e que tentam escapar de seus campos de extermínio.
O senhor apontou que o auge da
extrema-direita se dá em consonância com a obsessão pela “identidade”. Por que
isso é problemático na política?
A política é fundada na escolha
de alternativas, é baseada no pensamento, na estratégia racional. A identidade
é o contrário da liberdade, é o contrário da escolha. Sou branco, sou negro,
sou muçulmano, sou cristão… A política não tem nada a ver com o “ser”, mas com
o devir.
Quando a política é pensada em
termos de “ser”, a guerra se torna inevitável. O fascismo sempre é baseado na
confusão de que a política é a expressão de uma identidade.
Embora muitos rotulem os partidos
e governos de extrema-direita de “fascistas”, o senhor diz que essa categoria
não é suficiente. Por quê?
O fascismo histórico do século XX
foi a expressão de jovens que lutavam pela supremacia nacional e racial, mas
baseados em uma visão futurista, expansiva e eufórica. Não se pode entender o
fascismo italiano, e tampouco o alemão e o japonês, sem a referência a esse
futurismo, a afirmação agressiva de um futuro glorioso. Hoje nada disso existe.
Não há exuberância juvenil futurista na onda neorreacionária atual.
A onda neorreacionária de hoje é
um fenômeno de senescência (envelhecimento biológico). Não importa que muitos
jovens tenham votado na direita: são jovens sem futuro, sem euforia, sem
esperança e sem glória. O horizonte contemporâneo é de impotência; e a
impotência é a origem da vingança.
Em 2018, intelectuais e artistas
francesas assinaram uma carta que acusava o feminismo anglo-saxão,
especificamente o movimento #MeToo, de provocar uma “caça às bruxas” que
conduziria a um novo “puritanismo” sexual. Que opinião você tem sobre esse cisma dentro
do feminismo?
O movimento #MeToo foi um
acontecimento importante de denúncia do poder (masculino) implícito dentro da
sexualidade contemporânea. Concordo. Mas a dinâmica cultural que o #MeToo
desencadeia coincide com uma visão puritana que tem um papel importante na
história do movimento feminista mundial, mas sobretudo na base do feminismo
norte-americano. A visão puritana se manifesta na rejeição do que é ambíguo e
impuro na comunicação erótica e na comunicação em geral.
Naturalmente, frente às condições
atuais de violência e de agressividade masculina, a onda de denúncias femininas
é necessária e legítima, mas há um grande perigo cultural: a criminalização da
ambiguidade, da sedução como jogo linguístico.
O #MeToo é a expressão de uma
cultura na qual a sexualidade perdeu toda a relação com a ironia da linguagem,
onde a linguagem tem que ser “sim-sim, não-não”, onde o medo reciproco é a
única maneira de evitar a violência. É um mundo infernal que corresponde
perfeitamente ao inferno de um país onde o que é humano foi suprimido, porque a
linguagem foi submetida a um código binário. A binarização da sensibilidade
implica na identificação do erotismo com a pornografia.
As denúncias contra o produtor
Harvey Weinstein, que desencadearam a onda de crítica feminista nos Estados
Unidos, têm que ser contextualizadas dentro da crise política da democracia
norte americana, na crise da classe política democrática, no sistema de
cumplicidade “clintoniana”. Quem era Weinstein, todos sabiam, mas o poder da
democracia liberal e da mídia foram cúmplices de sua violência, que não era só
sexual, mas também social, econômica e profissional.
Existe hoje algum coletivo
feminista que transcenda a visão puritana?
O movimento “Ni una menos” da
Argentina tem um caráter cultural profundamente diferente porque se baseia na
ação coletiva das mulheres, não em uma abstrata afirmação de uma verdade e de
uma pureza que não existe, mas na palavra da lei.
Nos últimos anos surgiram
blogueiros e youtubers de extrema-direita. A que atribui sua proliferação e
como isso se relaciona com a ascensão de governos de extrema-direita?
A impotência é o caráter
fundamental de identificação das raças brancas. A cultura declinante dos
dominadores é ameaçada pela globalização, pela migração e, ao mesmo tempo, pelo
superpoder da técnica e das finanças.
Impotência é uma palavra que se
refere à potência política perdida, mas também à potência sexual. A depressão
massiva, a precariedade e a ansiedade contemporânea tem produzido um efeito de
impotência psíquica e sexual massiva que se manifesta como agressividade
antifeminina.
A guerra civil global
contemporânea é, antes de mais nada, uma guerra contra as mulheres. Em seu
livro Muerte a los normies [sem tradução no Brasil], Angela Nagle
explica muito bem o papel que a cultura dos “homens beta” (machos pouco
assertivos com as mulheres e que foram relegados, involuntariamente, do mercado
sexual) está desenvolvendo uma onda neorreacionária.
Nos anos que antecederam o
triunfo de Trump, muitas subculturas da web, vinculadas a alt right, utilizaram
memes como “Pepe, o Sapo” que, de forma irônica e cínica, conseguiram atingir
milhares de homens jovens, “trolls” da raça branca e com sensibilidade política
indefinida. Que implicações éticas e cognitivas tem a estética dos memes?
Em condições de aceleração e
intensificação da infosfera, o tempo de elaboração cognitiva se faz cada vez
mais breve e restrito. Por isso, a faculdade crítica, como a capacidade de
discriminar o que é verdadeiro e falso, fica confusa e obscurecida. Não temos
tempo para analisar intelectualmente, nem para elaborar emocionalmente, os
estímulos que chegam a nossa mente. Consequentemente, as formas de comunicação
mais eficientes são as que substituem a razão crítica com a velocidade da
síntese memética.
Em seu livro Os meios de
comunicação como extensão do homem (1964), Marshall McLuhan escreveu que,
quando a simultaneidade eletrônica substitui a sequencialidade alfabética, a
faculdade mitológica substitui a cultura social e a razão crítica. O meme é a
expressão midiática do pensamento mitológico que – como o inconsciente
freudiano – não conhece o princípio de não contradição, não conhece a
irreversibilidade temporal, não conhece a crítica nem a temporalidade
histórica.
O senhor mostrou-se incrédulo
diante das fake news e declarou que não constituem um fenômeno novo.
A que atribui a crescente tendência a acreditar e difundir notícias e
informações falsas?
As notícias falsas não são,
naturalmente, um fenômeno novo; sempre houve informação mal-intencionada na
história dos meios. O volume de notícias faltas aumentou hoje porque aumenta,
em geral, a quantidade de informações que circulam na infosfera digital.
A aceleração e intensificação da
infosfera é a causa de um pânico comunicacional que se manifesta como uma
incapacidade de distinção consciente. E as estratégias do pensamento crítico
são ineficazes no contexto desta “tempestade de merda”, nas palavras do
filósofo sul-coreano Byung-Chil Han.
Em La segunda venida [sem
tradução no Brasil], seu mais recente livro, o senhor mergulha no vocabulário
teológico para tentar desvendar os motivos por trás do descontentamento social
atual. Que propostas o senhor oferece para superar o caos que nos rodeia? E a
que potencial “vinda” o senhor se refere?
Acreditamos que ingressamos em
uma época apocalíptica em seu sentido duplo; uma época de catástrofe e uma
época de revelação. Não se pode evitar o apocalipse porque as tendências
apocalípticas já estão se manifestando. Só podemos preparar a segunda vinda. E
não me refiro a segunda vinda de Jesus Cristo porque não sou religioso.
Refiro-me a segunda vinda do comunismo, mas não na forma totalitária em que se
manifestou durante o século passado.
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