Os resultados do processo
eleitoral ocorrido na Argentina no domingo passado provocaram efeitos imediatos
sobre o cenário político e econômico deste lado da fronteira.
Paulo Kliass – de Berlim |
Correio do Brasil | opinião
Os resultados do processo
eleitoral ocorrido na Argentina no domingo passado provocaram efeitos imediatos
sobre o cenário político e econômico deste lado da fronteira. Existe muito de
História, de estórias e de anedotas envolvendo a evolução da conjuntura em
ambos os países.
São variações que vão desde a
admiração recíproca por razões diversas até rivalidades compreensíveis também
entre nações vizinhas. Vargas, Perón. Justicialismo, trabalhismo. Ciclos de
ditaduras militares. Pelé, Maradona. Plano Cruzado, Plano Austral. Era dos
Kirchner, era Lula/Dilma. E também o famoso efeito Orloff, do “eu sou você
amanhã”.
As regras eleitorais na Argentina
preveem a realização de prévias entre todos os partidos e/ou candidatos
interessados em participar do pleito. Assim, cada uma das listas concorrentes
deve ultrapassar a cláusula de barreira de 1,5% do total de votos para estar
presente na disputa que ocorrerá em 27 de outubro.
O comparecimento às urnas durante
as prévias é aberto a toda a população e costuma operar como um termômetro indicativo
das intenções de voto para a próxima etapa.
A vitória da chapa que tem
Alberto Fernández e Cristina Kirchner como candidatos a presidente e vice,
respectivamente, superou aquela protagonizada por Mauricio Macri, atual
presidente e candidato à reeleição.
Ainda que o resultado das prévias
não seja garantia de vitória segura também daqui a dois meses, o fato é que boa
parte dos analistas políticos consideram bastante difícil que a diferença (49%
a 33%) nas apurações deste domingo seja revertida em tão curto espaço de tempo.
Vitória de Fernández/Kirchner
A derrota de Macri tem o
significado de um claro voto de desconfiança e descontentamento por parte da
população que o elegeu em 2015, após um período de 12 anos do chamado
kirchnerismo no poder.
Por outro lado, Cristina e seu
grupo mais próximo foram habilidosos e amplos o suficiente para perceber que
precisavam compor a chapa, de forma a evitar um simples plebiscito a respeito
de sua volta. Assim ofereceu a cabeça de chapa a Fernández, que ocupou por diversas
vezes cargos de ministro em seu gabinete e de seu falecido marido.
As urnas demonstraram que a opção
por uma política econômica de inspiração neoliberal levada a cabo pelo então
candidato Macri, apoiado abertamente pelo financismo em 2015, não ofereceu
nenhuma boa notícia para a maioria do povo argentino. Muito pelo contrário. A
receita da austeridade terminou por aprofundar a crise.
A tabela abaixo nos oferece um
pouco de pistas para a razão de um fenômeno de queda tão abrupta da
popularidade do candidato liberal que se apresentava como o coveiro definitivo
de todo e qualquer traço do peronismo.
Na verdade, por trás da roupagem
do bom moço admirado pelo establishment financeiro, Macri reeditou na terra de
los hermanos o velho e surrado cardápio do neoliberalismo. Austeridade fiscal,
juros altos e redução da presença do Estado na economia.
O resultado foi um aprofundamento
das condições gerais da economia e de vida do povo argentino.
Ao longo do mandato de Macri
todos os indicadores pioraram. A inflação mais do que dobrou, saindo da casa
dos 25% ao ano para chegar a 56%. A taxa oficial de juros estava em 38% antes
de sua posse e agora atingiu 60%. A taxa de câmbio explodiu e sofreu enorme
desvalorização – saiu de 15 pesos/dólar e chegou a 46 antes dos resultados da
eleição.
Além disso, como que por ironia
trágica, o próprio “risco país” aumentou no período. Ou seja, o candidato
apreciado e recomendado pelo financismo local e internacional fez a lição de
casa e, ainda assim, o risco para o investidor estrangeiro aumento de 487 para
900 pontos – ou seja, quase dobrou em quatro anos. Acompanhando essa evolução,
a dívida externa argentina também cresceu mais de 60%, saindo de US$ 167 bi e atingindo
US$ 275 bilhões.
Pelo lado social, a dimensão da
política econômica da austeridade foi implacável com a maioria da população do
país vizinho. O poder de compra do salário mínimo medido em dólares caiu mais
da metade, saindo de 580 para 279. O desemprego oficial medido pelo INDEC
aumentou também em 50%, saindo de 7% para 10%. Os índices de pobreza e
indigência também subiram durante o mandato de Macri, ainda que tenham atingido
valores bem inferiores à triste realidade social e econômica de nossas terras.
Finalmente vale como registro da
piora qualidade de vida a observação da queda expressiva no comportamento de
dois bens que são bastante simbólicos do modo de vida dos argentinos. O consumo
de leite caiu quase 40% e o consumo de carne foi reduzido em aproximadamente
20%. Especulação criminosa no dia seguinte.
No dia seguinte ao anúncio da
vitória de Fernández, o próprio “mercado” financeiro começou o conhecido
trabalho de especulação irresponsável, com o objetivo de apostar todas as suas
fichas na política do “quanto pior, melhor.” Assim, começou a criação da
narrativa catastrofista em torno dos riscos do retorno do suposto “populismo” e
dos “irresponsáveis fiscalmente” à Casa Rosada.
A chantagem protagonizada por
meio da manipulação das variáveis da política econômica não esperou nem algumas
horas para ter início. Desde a abertura das operações de natureza financeira na
manhã de segunda-feira, as transações apontavam para a desvalorização
artificial e súbita do peso argentino na relação com o dólar norte-americano.
Ocorre que, ao contrário do
Brasil, a Argentina ainda permanece bastante dependente do capital estrangeiro,
em razão da dívida externa relativamente elevada.
A fim de evitar as consequências
nefastas dessa aventura especulativa sobre o conjunto dos atores da sociedade
argentina, a equipe de Macri se viu obrigada a elevar a taxa de juros, com o
objetivo de reduzir a revoada de capital para o exterior.
Aliás, nos já vimos esse enredo
por aqui em diversos momentos de nossa História. Em 2002, por exemplo, com a
subida das intenções de voto de Lula, o mercado financeiro também apostou numa
possível virada a favor do candidato do establishment, José Serra.
Para isso, foi construída também
uma narrativa de que o Brasil iria se quebrar caso o PT ganhasse as eleições e
a insuflação do temor à catástrofe iminente.
E o recurso à especulação com o
dólar também promoveu uma desvalorização artificial, levando a taxa de câmbio
atingir quase R$ 4/US$ entre o primeiro e segundo turnos de outubro daquele
ano. A especulação promoveu uma piora de 80% na taxa ente março e as eleições.
Uma loucura!
A Argentina infelizmente deve
sofrer processo semelhante. Lula divulgou a famosa “Carta ao Povo Brasileiro”
em junho de 2002, na tentativa de acalmar os humores do grande capital.
O problema é que a equipe no
comando da economia até a posse do novo governo na Argentina é comandada por
Macri, que perdeu as prévias. O mesmo aconteceu naquele ano no Brasil, com os
tucanos no poder e apoiando Serra contra Lula.
Assim, o cenário que deve se
aguardar para o país vizinho não é dos mais alentadores, do ponto de vista da
política econômica. Macri vai usar de todos os recursos para ampliar esse
quadro catastrofista e jogar na tentativa de usar o fantasma do retorno dos
peronistas ao poder.
Difícil imaginar que uma
sociedade que tende a reforçar os elementos emocionais na condução e na disputa
do jogo político consiga superar tal instabilidade e que os atores envolvidos
aceitem um jogo, digamos, civilizado.
Fala, Bolsonaro!
O recado das urnas foi claro. A
maioria da sociedade deseja mudança, quer a saída de Macri e propõe a volta dos
atores da era K. Os interesses do financismo e de parte da oligarquia local,
por seu turno, também deixaram claro que não aceitam esse retorno. E avisam que
farão de tudo, e mais um pouco, para evitar a vitória de Fernández/Kirchner em
outubro próximo. A irresponsabilidade do capital é internacional.
Os próximos dois meses serão de
elevada tensão e incerteza. É bem possível os emissários de Macri já tenham
percebido que a pretensa ajudinha de Bolsonaro pode se converter em “abraço de
afogado”.
A imagem do capitão é muito
desgastada também lá fora. Quanto mais ele se meter na disputa, mais votos ele
deve tirar de Macri e ajudar a chapa oposicionista. Assim, talvez devêssemos
incentivá-lo em suas saidinhas tresloucadas: “Fala, Bolsonaro!”.
*Paulo Kliass é doutor em
economia e membro da carreira de Especialistas em Políticas Públicas e Gestão
Governamental do governo federal.
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