Radiografia de um mito, o
“milagre chileno”. Pinochet liquidou oposição e teve poder absoluto – mas
crescimento foi medíocre, desemprego disparou e 45% caíram abaixo da linha de
pobreza. Recuperação veio com a queda da ditadura
José Luís Fiori | Outras Palavras | Colagem: Gabriela
Leite
Bem antes das urnas eletrônicas,
o Brasil viu um rinoceronte
conquistar 100 mil votos e um chimpanzé chegar aos 400 mil.
Nasceu assim, em 1959, o voto de protesto,
que colocou o rinoceronte Cacareco como vereador de São Paulo.
Anos depois, em 1988, o Macaco Tião
ficou em terceiro na disputa pela prefeitura do Rio de Janeiro
- Último Segundo, IG São Paulo, 21/09/2014
É comum entre os economistas
neoliberais elogiar o Chile e considerá-lo um modelo econômico que deve ser
imitado. Mais do que isto, no Brasil do capitão Bolsonaro, é costume elogiar a
ditadura do general Augusto Pinochet (1973-1990), que concedeu um poder quase
absoluto a um grupo de jovens economistas – liderados pelo superministro Sergio
de Castro – para aplicar, ainda na década de 70, o primeiro grande “choque
neoliberal” do mundo. Este transformou o Chile num verdadeiro “laboratório de
experimentação” e numa espécie de “modelo de exportação” e propaganda das
políticas e reformas liberais defendidas pela “Escola de Chicago”, que era o
templo mundial do ultraliberalismo econômico naquela época. No entanto, a
verdadeira história dessa “experiência econômica” chilena costuma ser
falsificada, para induzir uma comparação que é inteiramente espúria, e um
engodo que é inteiramente ideológico. Senão vejamos, ainda que de forma
extremamente sintética, alguns dados importantes dessa história, começando por
algumas informações mais elementares, porém indispensáveis para quem se
proponha a fazer comparações entre economias e entre países.
No dia do golpe de Estado que
derrubou o presidente Salvador Allende – 11 de setembro de 1973 –, o Chile
tinha apenas 10 milhões de habitantes, cerca de 1/21 da população brasileira, e
tinha um PIB de U$ 16,85 bilhões, uma partícula de 1/130 do PIB brasileiro
atual. O Chile não possuía petróleo nem autonomia energética, estava longe da
autossuficiência alimentar, e além disso, não tinha indústria pesada, nem
dispunha de setor produtivo estatal relevante que não fosse na indústria do
cobre.
A economia chilena era quase
inteiramente dependente da produção do cobre, e além deste, só exportava
madeira, frutas, peixes e vinhos. Ou seja, dependia inteiramente das suas
importações de petróleo e derivados, de produtos químicos, de materiais
elétricos e de telecomunicações, de máquinas industriais, de veículos, de gás
natural e de alimentos – quase tudo que era essencial para a reprodução simples
da sociedade chilena. Por fim, o Chile era um país isolado, talvez o mais
isolado do mundo, com pequena expressão demográfica, e nenhuma relevância
militar ou geopolítica que não fosse para a Argentina, na Patagônia, e para a
Bolívia e o Peru, na região do Atacama.
Pois bem, foi nesse pequeno país, com características econômicas, demográficas e geopolíticas extremamente simples que se utilizou pela primeira vez o pacote das tais reformas que depois viraram um “mantra” repetido pelos governos neoliberais, em todo o mundo: flexibilização ou precarização do mercado de trabalho; privatização do setor produtivo estatal; abertura e desregulação de todos os mercados, e em particular, do mercado financeiro; abertura comercial radical e fim de todo tipo de protecionismo; privatização das políticas sociais de saúde, educação e previdência; e finalmente, privatização inclusive dos serviços públicos mais elementares, tipo água, esgoto, e de fornecimento de energia e gás. No caso do Chile, este programa foi aplicado durante os 17 anos da ditadura militar, sem enfrentar nenhum tipo de oposição política ou parlamentar, e com total apoio de um ditador que assassinou 3.200 opositores, prendeu e torturou 38 mil pessoas e obrigou ao exílio mais de 100 mil chilenos. Para não falar do fato de que, de1973 a 1985, o governo
militar impôs “toque de recolher”, ou “toque de queda”, das 10 horas da noite às
6 da manhã, valendo para todos os chilenos, e não apenas para 30 ou 40
portadores de tornozeleiras eletrônicas. Ou seja, durante doze anos, toda a
população chilena foi obrigada a ficar fechada em suas casas, todas as noites,
como se estivesse internada num campo de concentração, e se alguém fosse
surpreendido na rua no horário proibido, podia ser preso ou fuzilado, sem
direito de apelação.
Pois bem, foi nesse pequeno país, com características econômicas, demográficas e geopolíticas extremamente simples que se utilizou pela primeira vez o pacote das tais reformas que depois viraram um “mantra” repetido pelos governos neoliberais, em todo o mundo: flexibilização ou precarização do mercado de trabalho; privatização do setor produtivo estatal; abertura e desregulação de todos os mercados, e em particular, do mercado financeiro; abertura comercial radical e fim de todo tipo de protecionismo; privatização das políticas sociais de saúde, educação e previdência; e finalmente, privatização inclusive dos serviços públicos mais elementares, tipo água, esgoto, e de fornecimento de energia e gás. No caso do Chile, este programa foi aplicado durante os 17 anos da ditadura militar, sem enfrentar nenhum tipo de oposição política ou parlamentar, e com total apoio de um ditador que assassinou 3.200 opositores, prendeu e torturou 38 mil pessoas e obrigou ao exílio mais de 100 mil chilenos. Para não falar do fato de que, de
No entanto, apesar de tudo isto,
os resultados econômicos das políticas e reformas neoliberais dos “Chicago
Boys” do ditador Pinochet foram absolutamente medíocres, para não dizer que
foram catastróficas, ao contrário do que pensa o “superministro” de Economia do
capitão, e do que diz toda a imprensa conservadora.
Para entender esse blefe ou
engodo, vejamos alguns fatos e números mais importantes, para não cansar os que
não gostam muito de cifras e estatísticas econômicas e sociais. Mas antes de
entrar nos números, é fundamental que os leitores separem o que foi a história
da ditadura, entre 1973 e 1990, daquilo que ocorreu depois do fim da ditadura,
entre 1990 e 2019. Além disso, dentro da história econômica da ditadura, é
necessário distinguir dois grandes períodos: o primeiro, que foi de 1973 a 1982, e o segundo, de
1982 até 1990.
Pois bem, foi no primeiro destes
dois períodos econômicos da ditadura que os “Chicago Boys” do general Pinochet
aplicaram seu grande choque neoliberal, que culminou com uma crise
catastrófica, em 1982, e obrigou o governo militar a estatizar o sistema
bancário chileno, demitir o seu superministro da Economia e reverter várias das
reformas que haviam sido feitas. Como aconteceu, por exemplo, com a volta atrás
da desregulamentação do setor financeiro e da própria política cambial que
vinha sendo praticada pelo Banco Central do Chile. Para que se tenha uma ideia
da magnitude desse desastre neoliberal, basta dizer que, em 1982, o PIB chileno
caiu 13,4%, o desemprego chegou a 19,6% e 30% da população chilena se tornou
dependente dos programas de assistência social que foram criados ad hoc,
para enfrentar a crise. E assim mesmo, quatro anos depois, já em 1986, o PIB
per capita chileno ainda era de apenas US$ 1.525, inferior ao patamar que havia
alcançado em 1973.
No final da ditadura, o PIB real
per capita médio do Chile havia crescido apenas 1,6% ao ano, um resultado muito
próximo da estagnação econômica, ao qual se deve somar uma taxa de 18% de
desemprego, e de 45% da população situada abaixo da linha de pobreza. No ano de
1990, o PIB per capita médio dos chilenos, calculado com base na paridade do poder
de compra, era de apenas US$ 4.590, inferior ao do Brasil, que naquele momento,
depois da “década perdida” de 1980, ainda era de US$ 6.680. Considerar isto um
“sucesso” é, no mínimo, um caso de desfaçatez intelectual, quandonão de
deslavada propaganda ideológica.
Agora bem, o que também nunca é
dito pelos economistas neoliberais é que foi só depois do fim da ditadura, no
período de quase 30 anos, entre 1990 em 2019, e em particular durante os 20
anos dos governos da “concertação” de centro-esquerda, formada por partidos de
tendência social-democrata, que o PIB chileno de fato cresceu a uma taxa média
de 7%, na década de 90, e de aproximadamente 4,6% durante todo o resto do
período democrático. Foi nesse período, e sob esses governos de
centro-esquerda, que a renda média dos chilenos quintuplicou, alcançando o
patamar atual dos US$ 25 mil, a maior da América Latina, enquanto o PIB chegava
a US$ 455,9 bilhões, já no ano de 2017. Nesse período, os governos da
concertação de centro-esquerda promoveram várias reestruturações tributárias
que permitiram aumentar o investimento social do Estado, com a criação do
seguro-saúde universal, o seguro-desemprego e o Pilar da Solidariedade. Como
consequência, a presença do Estado chileno voltou a crescer, sobretudo na área
da infraestrutura e das políticas sociais de proteção, saúde e educação. E
quando os analistas falam de um “milagre chileno”, referem-se a esse período
democrático, e sobretudo aos governos de centro-esquerda que lograram reduzir o
desemprego deixado pela ditadura, de 18% para 6 ou 7% em média, reduzindo a
população situada abaixo da linha de pobreza, de 45 para 11%, o que transformou
o Chile no país com o mais alto IDH da América Latina, e 38º na escala mundial.
Por fim, pouco a pouco, o legado
mais dramático deixado pelas políticas e reformas neoliberais dos “Chicago
Boys” do general Pinochet vem sendo revertido, como já aconteceu com a nova
legislação trabalhista, que devolveu, pelo menos em parte, o poder de
negociação que os sindicatos chilenos haviam perdido durante a ditadura
militar. Além disso, os governos de centro-esquerda aumentaram
significativamente os gastos públicos em saúde, criando o “Sistema de Garantia
Explícita”, com o objetivo de expandir e universalizar sobretudo o FONASA, o
braço público do Sistema Nacional de Serviços de Saúde chileno.
No entanto, não há dúvida de que
a reversão mais importante ocorreu no campo da educação, em particular no campo
do ensino universitário. A maioria dos brasileiros ainda não sabe, nem muito
menos o “moleque do senhor Guedes” que oficia de ministro de Educação do
capitão, que o fim da gratuidade do ensino superior decretada pela ditadura
militar, no início dos anos 1980, acabou em janeiro de 2018, quando o Congresso
Nacional chileno aprovou uma lei que reestabeleceu a gratuidade universal do
ensino universitário do país, incluindo todas as universidades, públicas e
privadas, algo sem precedente na história acadêmica da América Latina.
A comemorada privatização e
capitalização da Previdência Social, criada pelos “Chicago Boys” do general
Pinochet, na verdade se transformou num pesadelo para a maioria dos aposentados
e dos idosos chilenos. Ao contrário do que propaga o senhor Guedes e seus
apaniguados, a média das aposentadorias chilenas é hoje de 33% do salário
recebido pelo trabalhador antes da aposentadoria, e 91% da população aposentada
recebe em média a ridícula quantidade de US$ 200 ao mês, o que obriga 60% dos
pensionistas a receber um complemento estatal, aprovado pelo governo Bachelet
em 2008, para poder sobreviver. Por isso talvez o Chile tenha hoje uma das
maiores taxas de suicídio de idosos em todo mundo, e uma pesquisa de opinião
pública, aplicada em 2018 – do CADEM – constatou que 88% da população chilena
está insatisfeita e quer reverter e mudar o sistema atual de capitalização de
Previdência.
Por fim, cabe sublinhar que mesmo
durante a ditadura militar, jamais foi cogitada a privatização do cobre e da
CODELCO, a única grande empresa estatal chilena, e a maior empresa produtora de
cobre do mundo. Resumindo nosso argumento:
I. Os resultados econômicos da
ditadura do general Pinochet e dos seus “Chicago Boys” foram economicamente
medíocres e socialmente catastróficos.
II. O verdadeiro “milagre
chileno” – se é que houve – ocorreu depois da ditadura, no período democrático,
e em particular durante os governos de centro-esquerda naquele país na maior
parte do período entre 1990 e 2019. E é uma perfeita asnice intelectual
atribuir a estabilidade macroeconômica chilena atual ao “banho de sangue”’
promovido pelo general Pinochet, entre 1973 e 1990.Mas apesar de que seja uma
verdadeira aberração lógica comparar a economia brasileira com a economia
chilena, a experiência do Chile pode servir de advertência às lideranças
políticas, sociais e econômicas brasileiras, que não queiram repetir no Brasil
a tragédia do “fascismo de mercado” do ditador Augusto Pinochet, uma das
grandes excrecências humanas do século XX.
Ainda é tempo de impedir que o
fanatismo ideológico do senhor Guedes destrua 90 anos de história da economia
brasileira, para atender ao interesse de um pequeno grupo de banqueiros,
financistas e agroexportadores, passando por cima do interesse do “resto” da
sociedade brasileira.
Gostou do texto? Contribua para
manter e ampliar nosso jornalismo de profundidade: OUTROS QUINHENTOS
Sem comentários:
Enviar um comentário