sábado, 31 de agosto de 2019

Quando os computadores eram gente

A máquna de Babagge
No século XVIII, na França, cálculos astronômicos e estatísticos eram feitos por proletários da matemática. Para eliminar o “fator humano”, fez-se a máquina. Hoje, Inteligência Artificial reedita a “utopia de automatização”. Aguentaremos?

Orlando Lima Pimentel | Outras Palavras

O termo “Computador”, hoje tão utilizado para designar nossos Desktops, Notebooks e afins, nem sempre foi o nome de uma máquina. Ele remonta primeiramente a uma atividade muito humana: o “computar” que, por sua vez, tem raízes etimológicas no latim computare, significando calcular, contar e avaliar. Se hoje em dia grande parte do processamento de cálculos e de dados é feita por máquinas de computação, nos idos do final do século XVIII, que é o período do qual falaremos nas próximas linhas, a atividade era feita por mãos e mentes humanas, através da exploração da força de trabalho de verdadeiros proletários da matemática e da estatística.

Chamavam-se “computadores” os profissionais – mulheres, homens e mesmo crianças – empregados na confecção de tabelas matemáticas que exigiam a reprodução de cálculos ou de classificações lógicas para os mais diversos interesses públicos e privados. Entre o século XVIII e XIX, esse tipo particular de mão de obra foi empregada em grande parte para o cálculo de efemérides[1] astronômicas e para a confecção de estatísticas ligadas diretamente ao interesse de controle Estatal.

Diferente dos matemáticos dedicados a atividades mais especulativas, do trabalho das computadoras e dos computadores era exigido apenas um conhecimento parco das operações básicas da aritmética, apenas o suficiente para poderem processar as informações que recebiam de seus superiores. Por muitas vezes iletrados e recebendo míseros soldos, os computadores, tal como proletários de uma fábrica ou manufatura repetindo movimentos braçais, reproduziam os mesmos cálculos tediosos e operações intelectuais durante extenuantes horas de trabalho. Também, ainda similarmente a trabalhadores de uma manufatura, eram organizados a partir de uma divisão específica de trabalho: aquela do processo de confecção de tabelas matemáticas.

O primeiro exemplar mais significativo desse tipo de empreendimento foi organizado pelo matemático francês Gaspard Clair François Marie Riche de Prony (1755 – 1839), na virada para o século XIX. No período da França Revolucionária, os impactos da fragmentação territorial e de costumes franceses faziam-se, então, sentir não só no tocante econômico e político, mas também no que se referia às diversas formas de fazer medições. Havia medidas tradicionais de cada rincão da França. A diversidade de unidades de medida constituía-se como um problema digno da atenção do Estado, já que, sem uma forma geral padrão para as medições, atividades como a navegação, a astronomia, a economia e mesmo as estatísticas e recenseamentos eram ou imprecisas demais ou mesmo impossibilitadas por completo.

Foi a partir da necessidade de unificação das diversas unidades de medida francesas que a Assembleia Nacional sancionou no ano de 1791 o projeto do Cadastro Francês, no qual os matemáticos franceses deveriam se voltar para colaborar com os esforços do Estado nesse projeto matemático e estatístico de escala nacional.

É nesse contexto que, alguns anos mais tarde, Gaspar de Prony viu-se diante de uma imensa e difícil tarefa: como computar as diversas demandas de conversão de unidades e compilar tabelas trigonométricas e logarítmicas de interesse nacional, utilizando várias mãos e mentes em cooperação? Por certo, a tarefa monumental não era trabalho de um matemático solitário metido em seus próprios estudos especulativos. Não era muito menos trabalho de um amontoado de amadores em matemática, sem qualquer organização.

Esse angustiante dilema gerencial que Gaspar de Prony tinha em suas mãos só foi superado graças à apropriação que fez das técnicas de divisão do trabalho, adquiridas através da leitura do livro Uma Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações ou simplesmente como é mais conhecido: A Riqueza das Nações (1776) de Adam Smith. O livro foi tão importante para o matemático e a gratidão de Prony por Smith foi tão grande que ele costumava dizer que faria suas tabelas matemáticas tal como eram produzidos alfinetes[2], em referência direta ao exemplo utilizado por Smith.

A manufatura matemática de Prony passou a contar, portanto, com o ingrediente necessário para ser bem-sucedida: uma divisão do trabalho, com lugares e papeis fixos para cada membro do empreendimento. No topo da pirâmide, encontrava-se o gestor, Gaspar de Prony; mais abaixo, os matemáticos responsáveis pela elaboração das fórmulas matemáticas necessárias para as conversões de unidades ou para a composição dos logaritmos ( geralmente, eram experts em ramos mais abstratos da matemática e possuíam um perfil mais teórico e acadêmico); num nível intermediário, encontravam-se conhecedores não tão profundos da matemática pura, mas que eram suficientemente versados para converterem as complexas fórmulas, criadas pelos experts, em pedaços bem menores que poderiam ser processados através da simples utilização das quatro operações matemáticas; por fim, responsáveis pelo tedioso trabalho de repetir incessantes operações de adição, subtração, divisão e multiplicação, encontravam-se os “computadores”. Esses, portanto, formavam a camada mais baixa e mais explorada do processo desse tipo de produção.

Pelo que vimos existe uma aproximação possível entre computadores e proletários, por conta da divisão de trabalho na qual se inserem. Mas, a comparação vai mais além. Tal como em manufaturas, a divisão de trabalho, ao organizar detalhadamente cada processo produtivo, permitiu e ainda permite que seja criado um ambiente propício a invenção de ferramentas e de máquinas. E isso foi o que de fato também ocorreu com os computadores humanos.

Influenciado pela divisão de trabalho matemática de De Prony, outra figura importante da época voltou-se a reflexão acerca desse peculiar processo produtivo. Seu nome é Charles Babbage (1791-1871), hoje reconhecido como sendo aquele que primeiro concebeu uma máquina de computação (por volta de 1820). Como o próprio autor descreve em seu livro de 1832, Sobre a economia da Maquinaria e das Manufaturas (On the economy of machinery and manufactures), suas invenções almejavam eliminar os erros que costumavam estar presentes nas tabelas matemática produzidas com computadores humanos. No entanto, não obstante desejasse substituí-los, antes teve de criar suas máquinas de computar tendo por base o estudo atento do modo de produção no qual os computadores humanos se inseriam e de que modo exerciam sua força de trabalho.

Foi, portanto, a partir da análise da estrutura organizativa do empreendimento de De Prony, do tipo de tarefa específica desenvolvida pelos computadores humanos e do vasto conhecimento que Babbage possuía quanto ao criação de maquinário, ferramentas e técnicas fabris, que esse matemático de Cambridge ambicionou criar uma primeira máquina de computação (movida à vapor) que teria sido capaz de reproduzir qualquer das operações básicas matemáticas.

Como já dissemos seu objetivo era o de substituir o máximo possível o elemento humano de tal produção, apostando na automatização dos processos intelectuais. Ou seja, Babbage, no século XIX, tal como muitos outros pensadores de sua época, já entoavam um receituário tecnológico e científico que é vivo até em nossos dias: sempre que possível, a palavra de ordem era (e parece continuar sendo) “automatizemos todos os trabalhos humanos”. O otimismo com relação ao desenvolvimento tecnológico, no entanto, desviava (e continua desviando) o olhar de problemas sociais intimamente ligados à implementação do maquinário em fábricas ou processos intelectuais como o das tabelas matemáticas de De Prony: o desemprego, a baixa do poder de compra dos salários e outros fatores como os impactos socioambientais do emprego indiscriminado de inovações tecnológicas.

Dos últimos parágrafos podemos, portanto, concluir que os “computadores” foram por muito tempo humanos de carne e osso. Suas jornadas de trabalho, se não lhes traziam o esgotamento físico característico dos operários de uma fábrica, ainda assim, traziam um esgotamento mental (pelo excesso de repetição de operações) e corporal (pela necessidade de passar horas sentado calculando e escrevendo os resultados em tabelas).

O sofrimento que sentiam, apesar de estar historicamente distante e ficar em grande parte omitido pelo nosso esquecimento da história do termo, faz-se ainda mais presente em nossa sociedade. Há algo daqueles computadores ainda em cada atendente de telemarketing, em cada programador cumprindo seus prazos de entrega de um código, em cada jornalista, estudante, secretário, designer e todo e qualquer profissional que tenha de reproduzir atividades menos ou mais mentalmente tediosas diante de uma tela de um dispositivo eletrônico.

Também ainda ecoa aquele mesmo otimismo ofuscador dos efeitos sociais da implementação indiscriminada de tecnologia nos diversos setores econômicos. Tal como Babbage queria evitar o erro matemático dos computadores humanos criando uma máquina para substituí-los, reconhecidos nomes da computação hoje sonham com o dia em que poderão substituir todo e qualquer ser humano através do uso da Inteligência Artificial e das técnicas de aprendizado de máquina. Até lá, muito provavelmente, esses mesmos otimistas verão as contradições próprias do desenvolvimento tecnológico como um mal menor, necessário para chegar ao fim último de sua utopia de completa automatização. Mas, caberia sempre a pergunta: será que a sociedade aguenta?

Notas:
[1]Efeméride astronômica é o nome dado às tabelas de coordenadas temporais e espaciais dos astros, utilizadas para saber quais astros são visíveis em uma localidade específica da terra, em que momento e em quais posições. Seus registros foram particularmente importantes para a navegação marítima Inglesa do período de que tratamos neste texto.
[2]              Edgeworth, M. The life and letters of Maria Edgeworth, volume 1. London: Edward Arnold, 1894. p. 291


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