A máquna de Babagge |
No século XVIII, na França,
cálculos astronômicos e estatísticos eram feitos por proletários da matemática.
Para eliminar o “fator humano”, fez-se a máquina. Hoje, Inteligência Artificial
reedita a “utopia de automatização”. Aguentaremos?
Orlando Lima Pimentel | Outras
Palavras
O termo “Computador”, hoje tão
utilizado para designar nossos Desktops, Notebooks e afins, nem sempre foi o
nome de uma máquina. Ele remonta primeiramente a uma atividade muito humana: o
“computar” que, por sua vez, tem raízes etimológicas no latim computare,
significando calcular, contar e avaliar. Se hoje em dia grande parte do
processamento de cálculos e de dados é feita por máquinas de computação, nos
idos do final do século XVIII, que é o período do qual falaremos nas próximas
linhas, a atividade era feita por mãos e mentes humanas, através da exploração
da força de trabalho de verdadeiros proletários da matemática e da estatística.
Chamavam-se “computadores” os
profissionais – mulheres, homens e mesmo crianças – empregados na confecção de
tabelas matemáticas que exigiam a reprodução de cálculos ou de classificações
lógicas para os mais diversos interesses públicos e privados. Entre o século
XVIII e XIX, esse tipo particular de mão de obra foi empregada em grande parte
para o cálculo de efemérides[1] astronômicas
e para a confecção de estatísticas ligadas diretamente ao interesse de controle
Estatal.
Diferente dos matemáticos
dedicados a atividades mais especulativas, do trabalho das computadoras e dos
computadores era exigido apenas um conhecimento parco das operações básicas da
aritmética, apenas o suficiente para poderem processar as informações que
recebiam de seus superiores. Por muitas vezes iletrados e recebendo míseros
soldos, os computadores, tal como proletários de uma fábrica ou manufatura
repetindo movimentos braçais, reproduziam os mesmos cálculos tediosos e
operações intelectuais durante extenuantes horas de trabalho. Também, ainda similarmente
a trabalhadores de uma manufatura, eram organizados a partir de uma divisão
específica de trabalho: aquela do processo de confecção de tabelas
matemáticas.
O primeiro exemplar mais significativo desse tipo de empreendimento foi organizado pelo matemático francês Gaspard Clair François Marie Riche de Prony (1755 – 1839), na virada para o século XIX. No período da França Revolucionária, os impactos da fragmentação territorial e de costumes franceses faziam-se, então, sentir não só no tocante econômico e político, mas também no que se referia às diversas formas de fazer medições. Havia medidas tradicionais de cada rincão da França. A diversidade de unidades de medida constituía-se como um problema digno da atenção do Estado, já que, sem uma forma geral padrão para as medições, atividades como a navegação, a astronomia, a economia e mesmo as estatísticas e recenseamentos eram ou imprecisas demais ou mesmo impossibilitadas por completo.
O primeiro exemplar mais significativo desse tipo de empreendimento foi organizado pelo matemático francês Gaspard Clair François Marie Riche de Prony (1755 – 1839), na virada para o século XIX. No período da França Revolucionária, os impactos da fragmentação territorial e de costumes franceses faziam-se, então, sentir não só no tocante econômico e político, mas também no que se referia às diversas formas de fazer medições. Havia medidas tradicionais de cada rincão da França. A diversidade de unidades de medida constituía-se como um problema digno da atenção do Estado, já que, sem uma forma geral padrão para as medições, atividades como a navegação, a astronomia, a economia e mesmo as estatísticas e recenseamentos eram ou imprecisas demais ou mesmo impossibilitadas por completo.
Foi a partir da necessidade de
unificação das diversas unidades de medida francesas que a Assembleia Nacional
sancionou no ano de 1791 o projeto do Cadastro Francês, no qual os matemáticos
franceses deveriam se voltar para colaborar com os esforços do Estado nesse
projeto matemático e estatístico de escala nacional.
É nesse contexto que, alguns anos
mais tarde, Gaspar de Prony viu-se diante de uma imensa e difícil tarefa: como
computar as diversas demandas de conversão de unidades e compilar tabelas
trigonométricas e logarítmicas de interesse nacional, utilizando várias mãos e
mentes em cooperação? Por certo, a tarefa monumental não era trabalho de um
matemático solitário metido em seus próprios estudos especulativos. Não era
muito menos trabalho de um amontoado de amadores em matemática, sem qualquer
organização.
Esse angustiante dilema gerencial
que Gaspar de Prony tinha em suas mãos só foi superado graças à apropriação que
fez das técnicas de divisão do trabalho, adquiridas através da leitura do livro Uma
Investigação sobre a Natureza e as Causas da Riqueza das Nações ou simplesmente
como é mais conhecido: A Riqueza das Nações (1776) de Adam
Smith. O livro foi tão importante para o matemático e a gratidão de Prony por
Smith foi tão grande que ele costumava dizer que faria suas tabelas matemáticas
tal como eram produzidos alfinetes[2],
em referência direta ao exemplo utilizado por Smith.
A manufatura matemática de Prony
passou a contar, portanto, com o ingrediente necessário para ser bem-sucedida:
uma divisão do trabalho, com lugares e papeis fixos para cada membro do
empreendimento. No topo da pirâmide, encontrava-se o gestor, Gaspar de Prony;
mais abaixo, os matemáticos responsáveis pela elaboração das fórmulas matemáticas
necessárias para as conversões de unidades ou para a composição dos logaritmos
( geralmente, eram experts em ramos mais abstratos da matemática e possuíam um
perfil mais teórico e acadêmico); num nível intermediário, encontravam-se
conhecedores não tão profundos da matemática pura, mas que eram suficientemente
versados para converterem as complexas fórmulas, criadas pelos experts, em
pedaços bem menores que poderiam ser processados através da simples utilização
das quatro operações matemáticas; por fim, responsáveis pelo tedioso trabalho
de repetir incessantes operações de adição, subtração, divisão e multiplicação,
encontravam-se os “computadores”. Esses, portanto, formavam a camada mais baixa
e mais explorada do processo desse tipo de produção.
Pelo que vimos existe uma
aproximação possível entre computadores e proletários, por conta da divisão de
trabalho na qual se inserem. Mas, a comparação vai mais além. Tal como em
manufaturas, a divisão de trabalho, ao organizar detalhadamente cada processo
produtivo, permitiu e ainda permite que seja criado um ambiente propício a
invenção de ferramentas e de máquinas. E isso foi o que de fato também ocorreu
com os computadores humanos.
Influenciado pela divisão de
trabalho matemática de De Prony, outra figura importante da época voltou-se a
reflexão acerca desse peculiar processo produtivo. Seu nome é Charles Babbage
(1791-1871), hoje reconhecido como sendo aquele que primeiro concebeu uma
máquina de computação (por volta de 1820). Como o próprio autor descreve em seu
livro de 1832, Sobre a economia da Maquinaria e das Manufaturas (On the
economy of machinery and manufactures), suas invenções almejavam eliminar os
erros que costumavam estar presentes nas tabelas matemática produzidas com
computadores humanos. No entanto, não obstante desejasse substituí-los, antes
teve de criar suas máquinas de computar tendo por base o estudo atento do modo
de produção no qual os computadores humanos se inseriam e de que modo exerciam
sua força de trabalho.
Foi, portanto, a partir da
análise da estrutura organizativa do empreendimento de De Prony, do tipo de
tarefa específica desenvolvida pelos computadores humanos e do vasto
conhecimento que Babbage possuía quanto ao criação de maquinário, ferramentas e
técnicas fabris, que esse matemático de Cambridge ambicionou criar uma primeira
máquina de computação (movida à vapor) que teria sido capaz de reproduzir
qualquer das operações básicas matemáticas.
Como já dissemos seu objetivo era
o de substituir o máximo possível o elemento humano de tal produção, apostando
na automatização dos processos intelectuais. Ou seja, Babbage, no século XIX,
tal como muitos outros pensadores de sua época, já entoavam um receituário
tecnológico e científico que é vivo até em nossos dias: sempre que possível, a
palavra de ordem era (e parece continuar sendo) “automatizemos todos os
trabalhos humanos”. O otimismo com relação ao desenvolvimento tecnológico, no
entanto, desviava (e continua desviando) o olhar de problemas sociais
intimamente ligados à implementação do maquinário em fábricas ou processos
intelectuais como o das tabelas matemáticas de De Prony: o desemprego, a baixa
do poder de compra dos salários e outros fatores como os impactos
socioambientais do emprego indiscriminado de inovações tecnológicas.
Dos últimos parágrafos podemos,
portanto, concluir que os “computadores” foram por muito tempo humanos de carne
e osso. Suas jornadas de trabalho, se não lhes traziam o esgotamento físico
característico dos operários de uma fábrica, ainda assim, traziam um
esgotamento mental (pelo excesso de repetição de operações) e corporal (pela
necessidade de passar horas sentado calculando e escrevendo os resultados em
tabelas).
O sofrimento que sentiam, apesar
de estar historicamente distante e ficar em grande parte omitido pelo nosso
esquecimento da história do termo, faz-se ainda mais presente em nossa
sociedade. Há algo daqueles computadores ainda em cada atendente de
telemarketing, em cada programador cumprindo seus prazos de entrega de um
código, em cada jornalista, estudante, secretário, designer e todo e qualquer
profissional que tenha de reproduzir atividades menos ou mais mentalmente
tediosas diante de uma tela de um dispositivo eletrônico.
Também ainda ecoa aquele mesmo
otimismo ofuscador dos efeitos sociais da implementação indiscriminada de
tecnologia nos diversos setores econômicos. Tal como Babbage queria evitar o
erro matemático dos computadores humanos criando uma máquina para
substituí-los, reconhecidos nomes da computação hoje sonham com o dia em que poderão
substituir todo e qualquer ser humano através do uso da Inteligência Artificial
e das técnicas de aprendizado de máquina. Até lá, muito provavelmente, esses
mesmos otimistas verão as contradições próprias do desenvolvimento tecnológico
como um mal menor, necessário para chegar ao fim último de sua utopia de
completa automatização. Mas, caberia sempre a pergunta: será que a sociedade
aguenta?
Notas:
[1]Efeméride
astronômica é o nome dado às tabelas de coordenadas temporais e espaciais dos
astros, utilizadas para saber quais astros são visíveis em uma localidade
específica da terra, em que momento e em quais posições. Seus registros foram
particularmente importantes para a navegação marítima Inglesa do período de que
tratamos neste texto.
[2]
Edgeworth, M. The life and letters of Maria Edgeworth, volume 1. London:
Edward Arnold, 1894. p. 291
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