quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Itália | Meio sem querer, o centro-esquerda retorna


Sem programa claro, e a mínima sombra de seu passado, o PD, cujas origens remontam ao Partido Comunista Italiano, voltou ao governo — agora aliado ao estranhíssimo PVS. Retorno impede triunfo da ultradireita, mas por quanto tempo?

Steven Forti *| Outras Palavras | Tradução: Rôney Rodrigues

Não estava morto, estava festejando. Ou talvez não. Melhor: estava vivendo um dia após o outro, segundo alguns, ou agonizando, segundo outros. Da série It’s an Uphill Climb to the Bottom, como cantava Walter Jackson. Seja como for, ele retornou. Pelo menos, é isso que parece. Refiro-me ao Partido Democrático (PD), fruto da unificação, em 2007, dos pós-comunistas (os Democratas de Esquerda, DS) e os pós-democratas-cristãos progressistas (a Margarita), na época sustentando o frágil e heterogêneo governo liderado por Romano Prodi. O PD foi a aposta de Walter Veltroni (secretário-geral entre 2007 e 2009 e ex-prefeito de Roma) que imaginou o casamento entre as duas principais famílias da política italiana, comunistas e católicos, após a longa travessia que começou com o fim da Guerra Fria e foi até o colapso da Primeira República com o escândalo de Tangentópoli [também conhecida como Operação Mãos Limpas, que descobriu licitações irregulares e o uso do poder público em benefício particular e de partidos políticos].

Foi com o intuito de converter a recém-fundada Segunda República em um sistema majoritário [na Itália, os congressistas são eleitos de forma direita, que, por sua vez, elegem o primeiro-ministro], com uma centro-esquerda e uma centro-direita – então liderada por um Berlusconi ainda não-inflamável – ao estilo anglo-saxão. A aposta não avançou para além da simpatia que um projeto assim poderia despertar. Não tanto porque Veltroni – que com a criação do PD fizera uma oferta interna a Romano Prodi – perdera as eleições de 2008 para Cavaliere [O Cavaleiro, apelido de Silvio Berlusconi], mas porque o sistema majoritário, que por si só já era extremamente sui generis, devido também às leis eleitorais, veio abaixo por nada. Ou melhor, demonstrou ser um sonho úmido que pouco tinha a ver com a realidade política transalpina.

Nas eleições de fevereiro de 2013, de fato, depois do parêntese do governo técnico de Mario Monti, entrou em cena com força o Movimento Cinco Estrelas (M5E). Começa-se a falar na tripolaridade: por um lado, a direita ainda liderada por Berlusconi, mesmo que estivesse cada vez mais em declino físico e político; por outro, a centro-esquerda do PD e, no meio, um objeto político não-identificado, a criação populista do ex-comediante Beppe Grillo. O que o PD planejava para essa nova situação? Que projeto tinha para essa nova fase? Viu-se em seguida. Primeiro, com a intenção frustrada de Pierluigi Bersani (secretário do partido e candidato a presidência) de chegar a um pacto com o M5E e, em seguida, firmando um acordo com o arqui-inimigo Berlusconi para “furar o bloqueio”: o governo de grande coalização de Enrico Letta, patrocionado pelo presidente da República Giorgio Napolitano. Na oposição, restaram apenas os grillini [partidários de Beppe Grillo], Liga Norte [de extrema-direita], já a ponto de desaparecer, a direita dos Irmãos da Itália e a esquerda da Esquerda, Ecologia e Liberdade (SEL), de Nichi Vendola.


O partido de Renzi

O governo de Enrico Letta durou menos de um ano. Por um lado, Berlusconi foi cercado por escândalos de corrupção e relativas condenações, abandonou o governo destruindo o Povo da Liberdade (PdL), a resposta da direita ao PD, que se dissolveu nos finais de 2013. Renascia assim a Força Itália pela mão de um magnata da televisão, e um setor moderado – a Nova Centro-Direita, de Angelino Alfano – que rompia com il Cavaliere e se apossava do Governo. Por outro lado, o jovem destroçador Matteo Renzi ficava com a secretaria do PD e, ao final de pouco meses – fevereiro de 2014 –, destronava Letta e se convertia em presidente do governo, abrindo o jogo a partir de Berlusconi (na oposição) ao fazer acordos com ele para uma série de reformas constitucionais (o chamado Pacto de Nazareno). A infinita transformação do sistema de partidos italianos colocada em marcha depois da Operação Mãos Limpas continuava entre episódios de ressureição, divisões, new entries e transformismos. No entanto, o PD, mesmo sendo filho de uma conjuntura superada, conseguiu manter-se vivo.

O único que teve um projeto foi Renzi. As coisas são como são. Um projeto que queria aposentar definitivamente – e com más maneiras – o que restara da antiga tradição do velho PCI. Um macronismo a la italiana antes mesmo de Macron. Um partido da Nação, nem de direita nem de esquerda. Um blairismo 3.0, produto da fast politics e fortalecido com golpes de tuites. O PD estava a ponto de se transformar no PdR, o Partido de Renzi, como alcunhou um lúcido analista político, Ilvo Diamanti. A princípio, o destroçador, filho predileto do berlusconismo, avançou de vento em poupa: ganhou com 40% dos votos as eleições europeias de 2014, e os resultados das pesquisas sorriam para ele. Foi, durante alguns anos, o homem mais forte da Itália. E, em erro crasso, deixou-se levar pela sua arrogância nas reformas (trabalhistas e educativas) que de esquerda não tinham sequer o nome, e o projeto de reforma constitucional, que converteu o referendo de dezembro de 2016 em sua sepultura política. Adeus, Palazzo Chigi [sede da presidência do Governo].

Em seguida veio o Governo de transição de Gentiloni – com Renzi que, em vez de se afastar do primeiro escalão do partido, reconquistava a secretaria, mesmo já tendo se transformado em um dos políticos menos queridos da Itália –; o opróbrio de Rosatellum [reforma eleitoral], que misturava um sistema proporcional e majoritário com colégios uninominais – e as eleições de março de 2018 foram um verdadeiro terremoto político. Depois do tombo do PD (18,8%), Renzi teve que deixar pela segunda vez a secretaria do partido, ficando como simples senador, mas seguiu controlando os grupos parlamentares porque as listas foram feitas segundo seus desejos. No longo impasse que se seguiu, se negou a tentar seriamente um acordo com o M5E, definido como um partido de incapazes e incompetentes. Começou-se a utilizar o termo política pop corn(pombas) a partir de um tuite de Renzi em que ele dizia que comeria pombas olhando o espetáculo que são as tentativas de aliança entre os grillini e a Liga. A partir dessas cinzas, nasceu a chapa Di Maio-Salvini.

Os sapos de Nicola Zingaretti [secretário do PD]

O que veio depois parecia uma crônica de uma morte anunciada, com um partido que não conseguia nem se recuperar eleitoralmente nos diferentes comícios locais – a direita, já comandada pela Liga de Salvini, foi articulada em quase todas as regiões – nem encontrar um novo líder, uma linha política coerente ou mesmo uma certa unidade interna. Sem se aprofundar nessa questão, havia uma incapacidade de fazer oposição a um governo nacional-populista suficientemente incapaz e pobre, uma situação em teoria excelente para recuperar os eleitores de esquerda e fazer, ao menos, uma mínima autocrítica das políticas aplicadas nos cinco anos anteriores.

Reinos de Taifas

O PD dava a impressão de ser uma exemplificação plástica dos reinos de taifas [na história ibérica, faz alusão a um reino muçulmano fragmentado em facções], com um Renzi disposto a fazer uma cisão para criar seu próprio partido, um secretário provisório – Maurizio Martina – que parecia um professor que não conseguia colocar a sala de aula em ordem e um sem fim de correntes com dirigentes cada vez mais desvinculados de suas bases. Sem qualquer indício que haveria uma alternativa política real, o governo liderado por Giuseppe Conte, que se definiu como o “advogado do povo”, podia seguir adiante sem qualquer incômodo. Tampouco a eleição de Nicola Zingaretti para a secretaria do PD no mês de março, diante de um certo entusiasmo inicial e com as boas intenções do presidente regional de Lácio para fechar definitivamente o ciclo renzista, pareceu mudar muito as coisas: nas últimas eleições europeias, ainda que o PD tenha se recuperasse, teve que conformar com 22,7% dos votos, superando os grillini, mas ficando anos-luz da Liga (34,2%).

Como geralmente acontece na política, sobretudo em uma Itália onde sopram ventos levantinos, as mudanças são imprevisíveis. Às vezes se trata de terremotos devastadores, outras vezes de presentes inesperados. Presentes esses que podem ser doces envenenados. Um Salvini muito confiante, cheio de si mesmo e à frente nas pesquisas, que lhe davam quase 40% — il Capitano, como o chamam seus apoiadores, também é um dos filhos prediletos do berlusconismo –, deu um tiro no próprio pé, tocando música em uma praia do Mar Adriático enquanto tomava um mojito: pediu “plenos poderes” e abriu uma crise no governo, convencido de que haveria eleições em outubro. Eleições onde arrasaria, tirando o peso de cima do M5E, em claro declínio.

Mas o líder liguista não levou em conta as regras de uma democracia parlamentar, a longa tradição de transformismo italiana, as mudanças no contexto internacional – leiam a análise a esse respeito de Enric Juliano –, a preocupação por uma mudança retrógrada em parte da sociedade e da classe política italianas, além do medo atávico dos grillini e dos renzianos em convocar novas eleições. Nos cálculos de Salvini, os primeiros acabariam dizimados e sem influência em comparação com os resultados conseguidos um ano e meio antes (37,7%), sem contar que por limitação dos mandatos da maioria dos deputados e senadores não poderiam voltar a candidatar-se. Os segundos desapareceriam do mapa, já que seria Zingaretti, que controla o partido, quem faria as listas.

E ali, nessas horas de incerteza com metade do país já de férias, Renzi, o destroçador destroçado, que há meses preparava as bases para um racha e a criação de um novo partido de centro, deu um inesperado giro de 180 graus que mudou tudo: ele se abriu a formar um governo com o odiado M5E, depois de tê-lo atacado durante meses qualquer dirigente do PD que propusesse uma tímida abertura em direção aos grillini. Um governo de “saúde pública” para defender a democracia e evitar que Salvini conseguisse “plenos poderes”. O desaparecido Renzi voltava ao centro da cena política italiana e colocava ainda mais pressão sobre Zingaretti que, por mais que fosse defensor de um possível diálogo com o M5E, havia conseguido somente no final de julho alcançar a unidade do partido com uma moção da direção no qual afiançava que PD jamais faria uma aliança com os Di Maio.

E a partir dali as coisas começaram a mover-se, também dentro da zorra que é o M5E, que até o dia anterior não parava de grosseiramente insultar o PD pelo “escândalo” de Bibbiano – uma investigação que revelou uma série de adoções de crianças em uma prefeitura governada pela centro-esquerda. Consciente de que os grupos parlamentares estão controlados por Renzi e das pressões existentes, Zingaretti teve que abandonar a ideia de novas eleições e engolir alguns sapos, incluindo a permanência de Conte na presidência do futuro governo. Com isso, foram feitos os acordos de última hora de quarta (dia 28 de agosto) entre as delegações dos dois partidos e a designação do presidente da República Mattarella a Conte – reconvertido, de um dia para o outro, em estadista com prestígio internacional – para a formação de um novo executivo. 

Transformismo ou nova fase política?

Agora, a expectativa é o governo Conte não naufrague, já que o PD se encontra em uma situação extremamente delicada. Por um lado, e não cabe dúvida disso, volta a ter protagonismo e ocupará outra vez ministérios importantes (veremos quais) e, provavelmente, nomeará o membro italiano na Comissão Europeia. Assim, sairá da invisibilidade dos últimos quinze meses. Por outro lado, a experiência do governo com os grillini pode ser desastrosa: um executivo frágil e bloqueado chegaria a duras penas ao começou de 2020. Esse cenário suporia um grande desgaste para a formação de Zingaretti e presentearia, só com o atraso de alguns meses, o Palazzo Chigi a Salvini que, enquanto isso, poderia se fortalecer na oposição. Significaria, em síntese, a morte do PD.

Zingaretti, que não entrará no Executivo, perdeu um “governo de mudança e descontinuidade”, conseguindo até o momento manter o partido unido, apesar de ter sido abandonado pelo eurodeputado e ex-ministro Carlo Calenda. Conseguirá também nos próximos meses? A princípio, Renzi defendia um executivo de curto prazo, enquanto que Zingaretti e a maior parte da direção do PD advogam por um acordo no Legislativo com o M5E, o que permitiria reverter as políticas do governo Salvini-Di Maio, a partir da imigração, da política exterior e da economia. Além disso, obviamente, eles liquidariam a oposição ao líder da Liga, privado de seu pedestal propagandístico no Ministério do Interior e a espera das investigações sobre Moscopoli, o escândalo do financiamento russo a seu partido.

No fundo, há três questões cruciais: a eleição para a Presidência da República em 2022 – o Legislativo acabaria em princípio de 2023 –, as possíveis alianças regionais – no outono se vota em Compania, Umbria e Emilia Romaña, todas regiões governadas pelo PD e que poderiam cair nas mãos da Liga – e a reforma da lei eleitoral – que prevê a redução do número de parlamentares, uma das bandeiras que o M5E negocia no Parlamento. O PD era contra, mas poderia chegar a um acordo se trabalharem paralelamente em uma nova lei eleitoral, do tipo proporcional, o que impediria Salvini de conseguir uma maioria absoluta.

Os obstáculos são muitos, é evidente, principalmente pelas diferenças e pelos anos de troca de onfensas entre PD e M5E. Continuam com a elaboração dos orçamentos que devem ser aprovados antes de dezembro. Ali as instituições europeias poderiam ajudar. A Europa é uma das chaves, não se pode perder de vista: o voto do M5E a favor de Ursula von der Leyen [na eleição que a política de centro-direita alemã conquistou a presidência da Comissão Europeia] em julho – a Liga votou contra – abriu a primeira brecha.

Os partidários de Di Maio aceitarão essa mudança de prioridades? Até que ponto? E Renzi? Quão confiável é? Muito pouco, tendo em vista os antecedentes: pode derrubar o governo quando quiser e, enquanto isso, fazer uma guerra contra Zingaretti com o objetivo de reconquistar a secretaria do partido. Ou se não fizer isso, ele pode abandonar o PD e criar seu próprio partido. Para isso, no entanto, precisa da nova lei eleitoral do tipo proporcional. Uma ficção científica? Tudo pode acontecer, ainda mais depois do que vimos nesse estranho mês de agosto. Mas todos estão conscientes de uma coisa: o governo Conte pode ser um simples exercício transformista e um gato-pardo de curto alento ou o início de uma nova fase política. Isso dependerá tanto do M5E como do PD, que ainda não explicou qual projeto tem para o país além de algumas fórmulas vazias e uma navegação sem rumo nem bússola.

* STEVEN FORTI - É professor associado de História Contemporânea na Universidade Autônoma de Barcelona e pesquisador do Instituto de Históriai Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa.

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