Sem programa claro, e a mínima
sombra de seu passado, o PD, cujas origens remontam ao Partido Comunista
Italiano, voltou ao governo — agora aliado ao estranhíssimo PVS. Retorno impede
triunfo da ultradireita, mas por quanto tempo?
Steven Forti *| Outras Palavras | Tradução: Rôney
Rodrigues
Não estava morto, estava
festejando. Ou talvez não. Melhor: estava vivendo um dia após o outro, segundo
alguns, ou agonizando, segundo outros. Da série It’s an Uphill Climb to
the Bottom, como cantava Walter Jackson. Seja como for, ele retornou. Pelo
menos, é isso que parece. Refiro-me ao Partido Democrático (PD), fruto da
unificação, em 2007, dos pós-comunistas (os Democratas de Esquerda, DS) e os
pós-democratas-cristãos progressistas (a Margarita), na época sustentando o
frágil e heterogêneo governo liderado por Romano Prodi. O PD foi a aposta de
Walter Veltroni (secretário-geral entre 2007 e 2009 e ex-prefeito de Roma) que
imaginou o casamento entre as duas principais famílias da política italiana,
comunistas e católicos, após a longa travessia que começou com o fim da Guerra
Fria e foi até o colapso da Primeira República com o escândalo de Tangentópoli [também
conhecida como Operação Mãos Limpas, que descobriu licitações irregulares e o
uso do poder público em benefício particular e de partidos políticos].
Foi com o intuito de converter a
recém-fundada Segunda República em um sistema majoritário [na Itália, os
congressistas são eleitos de forma direita, que, por sua vez, elegem o primeiro-ministro],
com uma centro-esquerda e uma centro-direita – então liderada por um Berlusconi
ainda não-inflamável – ao estilo anglo-saxão. A aposta não avançou para além da
simpatia que um projeto assim poderia despertar. Não tanto porque Veltroni –
que com a criação do PD fizera uma oferta interna a Romano Prodi – perdera as
eleições de 2008 para Cavaliere [O Cavaleiro, apelido de Silvio
Berlusconi], mas porque o sistema majoritário, que por si só já era
extremamente sui generis, devido também às leis eleitorais, veio abaixo
por nada. Ou melhor, demonstrou ser um sonho úmido que pouco tinha a ver com a
realidade política transalpina.
Nas eleições de fevereiro de
2013, de fato, depois do parêntese do governo técnico de Mario Monti, entrou em
cena com força o Movimento Cinco Estrelas (M5E). Começa-se a falar na
tripolaridade: por um lado, a direita ainda liderada por Berlusconi, mesmo que
estivesse cada vez mais em declino físico e político; por outro, a
centro-esquerda do PD e, no meio, um objeto político não-identificado, a
criação populista do ex-comediante Beppe Grillo. O que o PD planejava para essa
nova situação? Que projeto tinha para essa nova fase? Viu-se em seguida.
Primeiro, com a intenção frustrada de Pierluigi Bersani (secretário do partido
e candidato a presidência) de chegar a um pacto com o M5E e, em seguida,
firmando um acordo com o arqui-inimigo Berlusconi para “furar o bloqueio”: o
governo de grande coalização de Enrico Letta, patrocionado pelo presidente da
República Giorgio Napolitano. Na oposição, restaram apenas os grillini [partidários
de Beppe Grillo], Liga Norte [de extrema-direita], já a ponto de
desaparecer, a direita dos Irmãos da Itália e a esquerda da Esquerda, Ecologia
e Liberdade (SEL), de Nichi Vendola.
O partido de Renzi
O governo de Enrico Letta durou
menos de um ano. Por um lado, Berlusconi foi cercado por escândalos de
corrupção e relativas condenações, abandonou o governo destruindo o Povo da
Liberdade (PdL), a resposta da direita ao PD, que se dissolveu nos finais de
2013. Renascia assim a Força Itália pela mão de um magnata da televisão, e um
setor moderado – a Nova Centro-Direita, de Angelino Alfano – que rompia com il
Cavaliere e se apossava do Governo. Por outro lado, o jovem destroçador
Matteo Renzi ficava com a secretaria do PD e, ao final de pouco meses –
fevereiro de 2014 –, destronava Letta e se convertia em presidente do governo,
abrindo o jogo a partir de Berlusconi (na oposição) ao fazer acordos com ele
para uma série de reformas constitucionais (o chamado Pacto de Nazareno). A
infinita transformação do sistema de partidos italianos colocada em marcha
depois da Operação Mãos Limpas continuava entre episódios de ressureição,
divisões, new entries e transformismos. No entanto, o PD, mesmo sendo
filho de uma conjuntura superada, conseguiu manter-se vivo.
O único que teve um projeto foi
Renzi. As coisas são como são. Um projeto que queria aposentar definitivamente
– e com más maneiras – o que restara da antiga tradição do velho PCI. Um
macronismo a la italiana antes mesmo de Macron. Um partido da Nação, nem de
direita nem de esquerda. Um blairismo 3.0, produto da fast politics e
fortalecido com golpes de tuites. O PD estava a ponto de se transformar no PdR,
o Partido de Renzi, como alcunhou um lúcido analista político, Ilvo Diamanti. A
princípio, o destroçador, filho predileto do berlusconismo, avançou de vento em
poupa: ganhou com 40% dos votos as eleições europeias de 2014, e os resultados
das pesquisas sorriam para ele. Foi, durante alguns anos, o homem mais forte da
Itália. E, em erro crasso, deixou-se levar pela sua arrogância nas reformas
(trabalhistas e educativas) que de esquerda não tinham sequer o nome, e o
projeto de reforma constitucional, que converteu o referendo de dezembro de
2016 em sua sepultura política. Adeus, Palazzo Chigi [sede da presidência
do Governo].
Em seguida veio o Governo de
transição de Gentiloni – com Renzi que, em vez de se afastar do primeiro
escalão do partido, reconquistava a secretaria, mesmo já tendo se transformado
em um dos políticos menos queridos da Itália –; o opróbrio de Rosatellum
[reforma eleitoral], que misturava um sistema proporcional e majoritário com
colégios uninominais – e as eleições de março de 2018 foram um verdadeiro
terremoto político. Depois do tombo do PD (18,8%), Renzi teve que deixar pela
segunda vez a secretaria do partido, ficando como simples senador, mas seguiu
controlando os grupos parlamentares porque as listas foram feitas segundo seus
desejos. No longo impasse que se seguiu, se negou a tentar seriamente um acordo
com o M5E, definido como um partido de incapazes e incompetentes. Começou-se a
utilizar o termo política pop corn(pombas) a partir de um tuite de Renzi
em que ele dizia que comeria pombas olhando o espetáculo que são as tentativas
de aliança entre os grillini e a Liga. A partir dessas cinzas, nasceu a chapa
Di Maio-Salvini.
Os sapos de Nicola Zingaretti
[secretário do PD]
O que veio depois parecia uma
crônica de uma morte anunciada, com um partido que não conseguia nem se
recuperar eleitoralmente nos diferentes comícios locais – a direita, já
comandada pela Liga de Salvini, foi articulada em quase todas as regiões – nem
encontrar um novo líder, uma linha política coerente ou mesmo uma certa unidade
interna. Sem se aprofundar nessa questão, havia uma incapacidade de fazer
oposição a um governo nacional-populista suficientemente incapaz e pobre, uma
situação em teoria excelente para recuperar os eleitores de esquerda e fazer,
ao menos, uma mínima autocrítica das políticas aplicadas nos cinco anos
anteriores.
Reinos de Taifas
O PD dava a impressão de ser uma
exemplificação plástica dos reinos de taifas [na história ibérica, faz
alusão a um reino muçulmano fragmentado em facções], com um Renzi disposto a
fazer uma cisão para criar seu próprio partido, um secretário provisório –
Maurizio Martina – que parecia um professor que não conseguia colocar a sala de
aula em ordem e um sem fim de correntes com dirigentes cada vez mais
desvinculados de suas bases. Sem qualquer indício que haveria uma alternativa
política real, o governo liderado por Giuseppe Conte, que se definiu como o
“advogado do povo”, podia seguir adiante sem qualquer incômodo. Tampouco a
eleição de Nicola Zingaretti para a secretaria do PD no mês de março, diante de
um certo entusiasmo inicial e com as boas intenções do presidente regional de
Lácio para fechar definitivamente o ciclo renzista, pareceu mudar muito as
coisas: nas últimas eleições europeias, ainda que o PD tenha se recuperasse,
teve que conformar com 22,7% dos votos, superando os grillini, mas ficando
anos-luz da Liga (34,2%).
Como geralmente acontece na
política, sobretudo em uma Itália onde sopram ventos levantinos, as mudanças
são imprevisíveis. Às vezes se trata de terremotos devastadores, outras vezes
de presentes inesperados. Presentes esses que podem ser doces envenenados. Um
Salvini muito confiante, cheio de si mesmo e à frente nas pesquisas, que lhe
davam quase 40% — il Capitano, como o chamam seus apoiadores, também é um
dos filhos prediletos do berlusconismo –, deu um tiro no próprio pé, tocando
música em uma praia do Mar Adriático enquanto tomava um mojito: pediu “plenos
poderes” e abriu uma crise no governo, convencido de que haveria eleições em
outubro. Eleições onde arrasaria, tirando o peso de cima do M5E, em claro
declínio.
Mas o líder liguista não levou em
conta as regras de uma democracia parlamentar, a longa tradição de
transformismo italiana, as mudanças no contexto internacional – leiam a análise a
esse respeito de Enric Juliano –, a preocupação por uma mudança retrógrada em
parte da sociedade e da classe política italianas, além do medo atávico dos
grillini e dos renzianos em convocar novas eleições. Nos cálculos de Salvini,
os primeiros acabariam dizimados e sem influência em comparação com os
resultados conseguidos um ano e meio antes (37,7%), sem contar que por
limitação dos mandatos da maioria dos deputados e senadores não poderiam voltar
a candidatar-se. Os segundos desapareceriam do mapa, já que seria Zingaretti,
que controla o partido, quem faria as listas.
E ali, nessas horas de incerteza
com metade do país já de férias, Renzi, o destroçador destroçado, que há meses
preparava as bases para um racha e a criação de um novo partido de centro, deu
um inesperado giro de 180 graus que mudou tudo: ele se abriu a formar um
governo com o odiado M5E, depois de tê-lo atacado durante meses qualquer
dirigente do PD que propusesse uma tímida abertura em direção aos grillini. Um
governo de “saúde pública” para defender a democracia e evitar que Salvini
conseguisse “plenos poderes”. O desaparecido Renzi voltava ao centro da cena
política italiana e colocava ainda mais pressão sobre Zingaretti que, por mais
que fosse defensor de um possível diálogo com o M5E, havia conseguido somente
no final de julho alcançar a unidade do partido com uma moção da direção no
qual afiançava que PD jamais faria uma aliança com os Di Maio.
E a partir dali as coisas
começaram a mover-se, também dentro da zorra que é o M5E, que até o dia
anterior não parava de grosseiramente insultar o PD pelo “escândalo” de
Bibbiano – uma investigação que revelou uma série de adoções de crianças em uma
prefeitura governada pela centro-esquerda. Consciente de que os grupos
parlamentares estão controlados por Renzi e das pressões existentes, Zingaretti
teve que abandonar a ideia de novas eleições e engolir alguns sapos, incluindo
a permanência de Conte na presidência do futuro governo. Com isso, foram feitos
os acordos de última hora de quarta (dia 28 de agosto) entre as delegações dos
dois partidos e a designação do presidente da República Mattarella a Conte –
reconvertido, de um dia para o outro, em estadista com prestígio internacional
– para a formação de um novo executivo.
Transformismo ou nova fase
política?
Agora, a expectativa é o governo
Conte não naufrague, já que o PD se encontra em uma situação extremamente
delicada. Por um lado, e não cabe dúvida disso, volta a ter protagonismo e
ocupará outra vez ministérios importantes (veremos quais) e, provavelmente,
nomeará o membro italiano na Comissão Europeia. Assim, sairá da invisibilidade
dos últimos quinze meses. Por outro lado, a experiência do governo com os
grillini pode ser desastrosa: um executivo frágil e bloqueado chegaria a duras penas
ao começou de 2020. Esse cenário suporia um grande desgaste para a formação de
Zingaretti e presentearia, só com o atraso de alguns meses, o Palazzo Chigi a
Salvini que, enquanto isso, poderia se fortalecer na oposição. Significaria, em
síntese, a morte do PD.
Zingaretti, que não entrará no
Executivo, perdeu um “governo de mudança e descontinuidade”, conseguindo até o
momento manter o partido unido, apesar de ter sido abandonado pelo eurodeputado
e ex-ministro Carlo Calenda. Conseguirá também nos próximos meses? A princípio,
Renzi defendia um executivo de curto prazo, enquanto que Zingaretti e a maior
parte da direção do PD advogam por um acordo no Legislativo com o M5E, o que
permitiria reverter as políticas do governo Salvini-Di Maio, a partir da imigração,
da política exterior e da economia. Além disso, obviamente, eles liquidariam a
oposição ao líder da Liga, privado de seu pedestal propagandístico no
Ministério do Interior e a espera das investigações sobre Moscopoli, o
escândalo do financiamento russo a seu partido.
No fundo, há três questões
cruciais: a eleição para a Presidência da República em 2022 – o Legislativo
acabaria em princípio de 2023 –, as possíveis alianças regionais – no outono se
vota em Compania, Umbria e Emilia Romaña, todas regiões governadas pelo PD e
que poderiam cair nas mãos da Liga – e a reforma da lei eleitoral – que prevê a
redução do número de parlamentares, uma das bandeiras que o M5E negocia no
Parlamento. O PD era contra, mas poderia chegar a um acordo se trabalharem paralelamente
em uma nova lei eleitoral, do tipo proporcional, o que impediria Salvini de
conseguir uma maioria absoluta.
Os obstáculos são muitos, é
evidente, principalmente pelas diferenças e pelos anos de troca de onfensas
entre PD e M5E. Continuam com a elaboração dos orçamentos que devem ser
aprovados antes de dezembro. Ali as instituições europeias poderiam ajudar. A
Europa é uma das chaves, não se pode perder de vista: o voto do M5E a favor de
Ursula von der Leyen [na eleição que a política de centro-direita alemã
conquistou a presidência da Comissão Europeia] em julho – a Liga votou contra –
abriu a primeira brecha.
Os partidários de Di Maio
aceitarão essa mudança de prioridades? Até que ponto? E Renzi? Quão confiável
é? Muito pouco, tendo em vista os antecedentes: pode derrubar o governo quando
quiser e, enquanto isso, fazer uma guerra contra Zingaretti com o objetivo de
reconquistar a secretaria do partido. Ou se não fizer isso, ele pode abandonar
o PD e criar seu próprio partido. Para isso, no entanto, precisa da nova lei
eleitoral do tipo proporcional. Uma ficção científica? Tudo pode acontecer,
ainda mais depois do que vimos nesse estranho mês de agosto. Mas todos estão
conscientes de uma coisa: o governo Conte pode ser um simples exercício
transformista e um gato-pardo de curto alento ou o início de uma nova fase
política. Isso dependerá tanto do M5E como do PD, que ainda não explicou qual
projeto tem para o país além de algumas fórmulas vazias e uma navegação sem
rumo nem bússola.
* STEVEN FORTI - É professor
associado de História Contemporânea na Universidade Autônoma de Barcelona e
pesquisador do Instituto de Históriai Contemporânea da Universidade Nova de
Lisboa.
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