Passada uma semana desde o início
da operação desencadeada pelo regime de Erdogan, alinhemos factos realmente
comprovados e apuremos causas e consequências indubitavelmente registadas.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
invasão da Turquia é um novo
episódio da guerra internacional contra a Síria. Tratando-se de uma violação da
soberania síria – apesar de Ancara invocar a Carta das Nações Unidas alegando
que se trata de «autodefesa» – a operação veio provocar alterações
significativas nas relações de forças no terreno, e nem todas elas, porém,
desfavoráveis à República Árabe Síria. O que está a acontecer revela um dos
mais complexos quebra-cabeças existentes hoje no panorama internacional.
Levando a sério as declarações
proferidas pelos dirigentes dos países envolvidos e outros mais directamente
interessados conclui-se que existe unanimidade contra a acção turca, com maior
ou menor indignação. Mas será que as palavras ditas correspondem à posição real
de alguns países sobre os acontecimentos ou não passam de atitudes de
conveniência para consumo das opiniões públicas?
Passada uma semana desde o início
da operação «Fonte de Paz» desencadeada pelo regime autocrático de Recep Tayyip
Erdogan e, numa fase em que Ancara parece ter aceitado um acordo de
cessar-fogo, alinhemos alguns factos realmente comprovados, apuremos causas e
consequências indubitavelmente registadas.
Antecedentes
Apesar das declarações de
surpresa que se ouvem de muitas fontes oficiais e oficiosas, a invasão turca
iniciada em 9 de Outubro não surge do nada e não pode ter apanhados
desprevenidos os países mais envolvidos na questão síria, designadamente os da
NATO e da União Europeia.
Tudo indica que o assunto tenha
sido ventilado em reuniões anteriores, como as que realizaram os conselheiros
de segurança nacional da Rússia e dos Estados Unidos na última semana de Junho
e os chefes de Estado da Turquia, da Rússia e do Irão, já no mês de Setembro.
Além de movimentos diplomáticos,
foram-se acumulando sinais de que a administração Trump assumia cada vez mais
uma posição diferente da que foi desenvolvida por Obama em relação à guerra da
Síria, uma vez que, desde Setembro de 2018, vinha evocando a possibilidade de
retirar as tropas envolvidas «nessa guerra ridícula sem fim», palavras do
actual presidente norte-americano.
Os sinais mais elucidativos de
que a acção turca não apanhou Washington de surpresa foram dados em 23 de
Agosto, quando tropas norte-americanas desmantelaram as fortificações dos
terroristas curdos YPG (Força de Protecção do Povo) seus protegidos, como que
aplanando terreno para a entrada patrocinada pela Turquia.
É verdade que os Estados Unidos
decretaram imediatamente sanções contra a Turquia na sequência da operação; não
é menos verdade que as penalizações escolhidas foram irrelevantes e logo
retiradas assim que anunciado o cessar-fogo; não menos verdade é também o facto
de em 11 de Outubro o secretário-geral da NATO, Jens Stoltenberg, se ter
deslocado a Ancara para transmitir implicitamente o apoio da organização às
operações no terreno. O que nunca teria acontecido se os Estados Unidos
estivessem efectivamente contra o comportamento turco.
As partes mais surpreendidas
parecem ter sido França e a Alemanha. É inegável, porém, que sabiam o que iria
passar-se. Paris e Berlim, tal como Londres e todos os membros da «Coligação
Internacional» contra o Daesh, foram convidados pelo governo turco a receber de
volta os seus nacionais envolvidos neste grupo e que estavam nas mãos do YPG.
Isso só poderia significar que os detidos iriam passar para a responsabilidade
turca, pelo que alguma coisa iria acontecer nos domínios do YPG – esse mito
chamado Rojava e qualificado como «um Estado curdo».
Londres reagiu remetendo os seus
nacionais para o Iraque. Paris e Berlim não responderam.
Perante a entrada no Rojava –
isto é, em território sírio – de forças às ordens do governo turco, a França e
a Alemanha tentaram fazer reunir o Conselho da NATO, mas sem êxito; em vez
disso, Stoltenberg partiu para Ancara, deixando Paris e Londres perfeitamente
associados às desventuras do mirífico – mas terrorista – Rojava. Quer isto
dizer que talvez pela primeira vez se assiste a um desencontro de posições
entre as chefias da NATO e a «locomotiva franco-alemã» da União Europeia, isto
é, entre a NATO e a União Europeia.
Primeiras consequências
No espaço de oito dias, entre a
entrada das forças a mando da Turquia e o anúncio do cessar-fogo, registaram-se
alterações de fundo nas relações de forças no campo de batalha em que se
transformou a Síria; e não se verificou qualquer confronto armado entre turcos
e sírios.
As forças invasoras não pertencem
directamente às forças armadas turcas: são essencialmente mercenários curdos
turcos e sírios e turcomanos sírios que agem sob as bandeiras do «Exército
Livre da Síria» ou do «Exército Nacional Sírio», entidades que integram o lote
dos terroristas «moderados» criados pelos «amigos da Síria» e geridos pela
senhora Clinton logo no início da agressão internacional, falsamente
qualificada como uma «guerra civil».
Os grupos comandados por Ancara
atacaram as posições do Rojava numa faixa síria com 32 quilómetros de
profundidade na fronteira norte com a Turquia, a leste do rio Eufrates. Uma
faixa que há muitas décadas é regularmente utilizada pelas tropas turcas para perseguir
guerrilheiros do PKK (Partido dos Trabalhadores do Curdistão), com autorização
dada no tempo do presidente sírio Hafez Assad, pai de Bashar al-Assad.
As tropas às ordens da Turquia
ocuparam toda a faixa – incluindo duas posições abandonadas previamente pelos
ocupantes norte-americanos, Tal Abiad e Ras al-Ain – com excepção de Qamishli.
Esta zona mais a Leste, junto à fronteira com o Iraque, foi tomada por um
comando aerotransportado do exército regular da Síria.
Não foram apenas os grupos de
mercenários turcos que se moveram nestes últimos dias. As tropas regulares
sírias avançaram decididamente para Norte, para a zona do Rojava – entidade que
representava um terço do território sírio – onde tomaram posições estratégicas
decisivas como Raqqa, antiga «capital» do Daesh, e Hasaka, enquanto forças
russas bombardeavam posições da Al-Qaeda na província de Idlib, último bastião
deste grupo terrorista apoiado por potências da NATO.
Entretanto, tropas russas tomaram
conta das bases militares até agora em mãos norte-americanas e que foram
abandonadas.
Antes destas movimentações, em 3
de Agosto, o chefe do regime turco dera ordem às suas tropas, há muito
presentes no província de Idlib, para recuarem na frente que mantinham com as
tropas regulares sírias; de modo que estas ocuparam agora, nessa região, uma
área de território equivalente à faixa ocupada pela Turquia a norte. Uma
«troca» de zonas de influência que não pode ser coincidência.
Em termos gerais, apurados os
movimentos de tropas no terreno durante os últimos dias, assinalam-se a
ocupação de uma faixa a norte a rogo da Turquia, a saída da maioria das tropas
norte-americanas da Síria e a presença russa nas instalações até agora usadas
pelas tropas dos Estados Unidos.
A Síria terá recuperado
aproximadamente mais um quarto do seu território. Para a soberania integral
falta-lhe libertar a totalidade da província de Idlib e a faixa agora tomada
pelos grupos a mando da Turquia.
Não houve confrontos directos
entre as tropas de Damasco e os terroristas enviados por Ancara. E não é de
prever que venham a registar-se, para já, pela reconquista da faixa de
território a norte que estava em poder do YPG. Na verdade, noutros azimutes, o
Iraque ainda não logrou recuperar à Turquia a faixa de Baachica, que tem 110 quilómetros de
profundidade; nem a União Europeia conseguiu ainda expulsar as tropas turcas da
terça parte do território de Chipre que ocupam no norte da ilha.
Fim do mito do Rojava
Os últimos dias representaram o
fim do mito do Rojava, o «Estado curdo» montado em um terço do território sírio
e que encantou algumas «esquerdas» europeias e norte-americanas com as
maravilhas do seu regime «anarco-ambientalista». Que não passou, afinal, de uma
máscara para a ditadura de Salih Muslim exercida por um PKK infiltrado pela CIA
até ao tutano e assente numa limpeza étnica que o mundo silenciou.
Pode ir encontrar-se a génese do
Rojava num protocolo secreto estabelecido em 2011 entre a França de Sarkozy e a
Turquia de Erdogan. Em troca da entrada de Ancara na guerra para destruição da
Líbia, a França comprometia-se a contribuir para construir uma entidade curda
no nordeste da Síria, região onde as comunidades aramaicas cristãs e
comunidades árabes eram maioritárias. Erdogan acreditava que a criação de um
Curdistão na Síria iria eliminar o independentismo curdo na Turquia.
O acordo foi passado à prática em
31 de Outubro de 2014 no Palácio do Eliseu entre o presidente François Hollande
e Erdogan, com a discreta participação de Salih Muslim, copresidente do YPG – o
braço sírio do PKK.
Nem tudo funcionou, porém, como
ambos os presidentes imaginavam.
Hollande foi chamado à ordem pelo
presidente norte-americano, Barack Obama, lembrando-lhe o facto de o
desmembramento da Síria ser um plano a executar sob comando dos Estados Unidos.
O presidente francês ter-se-á
submetido. Erdogan não. Foi este, provavelmente, o primeiro choque de Ancara
com Washington, respectivas repercussões no interior da NATO e uma viragem mais
nítida do regime turco para o nacionalismo.
Por outro lado, Erdogan acusou
Hollande de violar o protocolo de 2011 e o acordo de 2014. Seguiram-se os
atentados de Paris de 13 de Novembro de 2015 e de Bruxelas em 22 de Março de
2016, com fortes possibilidades de terem tido a mão dos serviços secretos
turcos.
Em Outubro de 2015 o Pentágono
criou as Forças Democráticas Sírias (FDS) como organização terrorista para se
substituir ao Daesh – detonado essencialmente pelos esforços conjuntos do
exército sírio e dos aliados russos. O núcleo principal das FDS foi o YPG
curdo, ao qual se juntaram mercenários turcos, sírios e dezenas de comandantes
do Daesh libertados para o efeito.
Iniciou-se então uma dramática
limpeza étnica no nordeste da Síria: as FDS expulsaram as populações árabes e
cristãs assírias, substituídas por mercenários curdos e suas famílias oriundos
do Iraque e da Turquia, que ocuparam as casas e as terras deixadas à força
pelos proprietários. Foi com base neste crime contra a humanidade, silenciado
pela miríade de organizações, governamentais ou não, que sentenciam sobre os
direitos humanos, que nasceu, como braço da NATO, o mitificado Rojava – em 17
de Março de 2016. O arcebispo católico siríaco de Hassakeh-Nisib, monsenhor
Jackes Behnan Hinde, testemunhou que dirigentes curdos lhe mostraram planos
para expulsão dos cristãos do Rojava.
Mudanças de planos
A libertação de Alepo pelo
exército nacional sírio, no início de 2017, marcou, porém, uma viragem no
quadro da guerra contra a Síria. Representou uma grande derrota da NATO e da
sua estratégia de desmantelamento do país – tentando replicar o que já
acontecera no Iraque e na Líbia.
Perante a nova realidade, Trump
alterou gradualmente a estratégia que transitara da administração Obama. Foi
abandonando o YPG ao mesmo tempo que fazia saber à Turquia que a única condição
para acabar com o apoio ao grupo curdo era a garantia de que seria cortada a
estrada que liga o Irão ao Líbano através da Síria. Ancara aceitou: o
reposicionamento das suas forças na faixa fronteiriça permite-lhe bombardear a
estrada em questão.
Desde então o Rojava passou a
ficar sustentado apenas pela França e a Alemanha. Macron aumentou para nove o
número de bases gaulesas no território, de acordo com um mapa divulgado pela
agência oficial turca. Há poucas horas, militares franceses e noruegueses em
debandada por causa do avanço sírio para norte incendiaram a base onde
funcionava a fábrica da cimenteira francesa Lafarge, responsável pela mais
importante edificação de túneis e subterrâneos militares desde a Segunda Guerra
Mundial, colocados ao serviço do Daesh e da al-Qaeda.
Perante a situação, também o YPG
foi obrigado a buscar outros apoios, por uma questão de sobrevivência. Na tarde
de 13 de Outubro, dirigentes do grupo negociaram com representantes de Damasco
na base de Khmeimim, em poder das forças russas. Acordaram submeter-se à
jurisdição do governo sírio, mas a posição assumida foi rejeitada por outra
facção da organização, alegando que os negociadores não tinham mandato para pôr
em causa o Rojava. A divisão enfraquece ainda mais o braço sírio do PKK.
Questões em aberto
A guerra contra a Síria entrou,
indiscutivelmente, em nova fase.
A ofensiva turca contra um Estado
soberano vizinho viola o direito internacional – como todas as acções minando a
soberania, a integridade territorial e a dignidade do povo da Síria realizadas
desde 2011 por várias potências da NATO e aliados árabes do Golfo.
Ciente de que as posições reais
dos seus membros permanentes não estão em sintonia com as declarações
proferidas a propósito do ataque turco, o Conselho de Segurança da ONU abordou
o assunto à porta fechada. E o presidente, ao contrário do que é costume, não
fez qualquer comunicação. É evidente o constrangimento da chamada «comunidade
internacional» perante o que está a acontecer.
O regime turco não está isolado,
apesar do seu comportamento e das declarações que o condenam. Recebeu apoio
expresso da NATO – mesmo contra a vontade de importantes Estados membros – e
contou com a compreensão activa dos Estados Unidos.
Em relação à União Europeia e aos
ataques lançados contra Ancara, Erdogan dispõe de vários instrumentos. Pode
abrir ainda mais as portas para a entrada de refugiados sírios no espaço
europeu; e, sobretudo, pode enviar de volta aos seus países os terroristas
jihadistas que passaram a estar detidos sob sua responsabilidade.
O governo sírio anunciou que vai
reagir contra a ofensiva; tudo indica, porém, que isso só acontecerá em termos
de confronto directo se a Turquia extravasar as operações para o exterior da
faixa fronteiriça ou tentar travar as acções que conduzam à libertação de
Idlib. Até ao momento da aceitação de um cessar-fogo pela parte turca, a Síria
tinha aproveitado as novas circunstâncias proporcionadas para libertar
territórios tanto em Idlib como, sobretudo, no espaço ocupado pelo Rojava.
A Rússia colocou como uma das
exigências a Ancara – presumivelmente na cimeira de Setembro com o Irão e a
Turquia – o regresso aos seus lares e propriedades das populações árabes e
cristãs forçadas a abandonar o Nordeste da Síria devido à limpeza étnica
executada pelas FDS com a cobertura dos Estados Unidos, França, Alemanha e
Reino Unido, entre outros membros da chamada «Coligação Internacional». Tropas
russas apropriaram-se das instalações que foram usadas pelos ocupantes
norte-americanos e participam activamente nas operações contra a al-Qaeda na
província de Idlib.
Os Estados Unidos conseguiram já
a garantia da Turquia de que cortará a estrada que liga o Líbano ao Irão. Na
posição norte-americana estará implícita a hipótese de Israel ter obtido
garantias de «segurança« em relação ao futuro da Síria, uma vez que até agora
tem apostado fortemente no desmantelamento deste país e na criação de entidades
«curdas» (no Iraque e na Síria) que funcionassem como territórios de
interposição. O clã Barzani, que domina o Curdistão iraquiano, tal como os
dirigentes fundadores do Rojava, estão absolutamente sob controlo de Israel e
respectivos serviços secretos.
O Irão reprovou abertamente a
ofensiva turca mas, por outro lado, não mostrou preocupação de maior com o
destino do Rojava. A disponibilidade iraniana para actuar está associada,
implicitamente, a uma eventual necessidade de defender comunidades xiitas,
incluindo as alauitas.
No espaço sírio jogam-se, pois,
várias partidas de xadrez simultâneas. Os grandes pontos de interrogação que se
colocam são: estando a Turquia em vantagem em vários tabuleiros, será que a
euforia nacionalista daí decorrente levará Ancara a ir além dos limites
invocados, designadamente a faixa de 32 quilómetros de
profundidade no norte da Síria? Ou o anúncio de um cessar-fogo será o sinal de
que foram atingidos os objectivos declarados por Erdogan, a saber, «defender-se
do terrorismo»?
Imagem: U. Bektas / Reuters
- Publicado em AbrilAbril em 18 de outubro de 2019
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