Em conferência, especialista em
vigilância adverte: empresas e Estado alimentam megassistema de segurança
construído com nossos dados. Ele vai além da repressão: inclui táticas de
distrações digitais para controlar corações e mentes
Marco Weissheimer, no Sul21 | em Outras Palavras
Em março de 1968, após a
publicação de As Palavras e as Coisas, Michel Foucault falou em uma
entrevista sobre como estava em curso a criação de uma sociedade de notação e
de monitoramento. Algumas décadas antes do surgimento da internet e das redes
sociais, Foucault identificou traços de um fenómeno que acabou assumindo
dimensões globais e, hoje, atravessa as nossas vidas de modos que sequer
percebemos bem. No final da década de 60, o filósofo francês identificou o
surgimento de uma sociedade onde tudo estava sendo registado, o inconsciente,
a sexualidade, sonhos, desejos, praticamente todas as dimensões da vida diária
das pessoas. Uma das características da cultura contemporânea, assinalou, era o
desenvolvimento de um sistema de notação universal.
Professor de Direito e de Ciência
Política na Columbia University, de Nova York, Bernard Harcourt iniciou sua
conferência, segunda-feira à noite (21), no 10º Congresso
Internacional de Ciências Criminais, citando essa reflexão de Foucault que,
em certo sentido, antecipou características que hoje se tornaram marcas de uma
sociedade cada vez mais digital. O regime de datação universal vem sendo
potencializado ao máximo pelas novas possibilidades tecnológicas. Trata-se de
saber tudo, sobre cada um de nós, o tempo todo. Com o Teatro do prédio 40
lotado, Harcourt abriu o ciclo de conferências do Congresso promovido pelo
Programa de Pós-Graduação em Ciências Criminais da PUC/RS, que tem como tema
“Memória e Ciências Criminais”.
O mundo que está sendo construído
nesta nova era digitalizada, no entanto, ao invés de promessas de emancipação,
vem se apresentando com um horizonte sombrio onde a vigilância e a repressão
por parte do Estado são práticas quotidianas e crescentes. Essa nova era
digitalizada, afirmou Bernard Harcourt, capturou os circuitos políticos,
sociais e profissionais, embutindo uma nova tecnologia de notação que permite
uma exploração de dados pessoais permanente, insidiosa e invasiva. Todos,
rigorosamente todos os nossos movimentos na internet, destacou, são anotados e
organizados. Do mais simples ‘like’ de uma postagem no Facebook às pesquisas
que fazemos no Google, tudo está sendo registrado, gerando dados, perfis e
algoritmos.
Muita gente, assinalou o
professor e pesquisador da Columbia University, descreve essa era como uma via
que amplia os nossos acessos à verdade. Para Harcourt, porém, estamos longe
disso. Pior, talvez na direção oposta. Esses sistemas de coleta de dados,
defendeu, não nos dão a verdade, mas um sistema de exercício de poder e de
dominação. A situação se agrava na medida em que tudo isso ocorre com a nossa
entusiasmada colaboração. Vivemos uma sociedade expositiva, onde nós expomos
livremente nossas informações mais íntimas e pessoais a um complexo sistema de
segurança. Citando mais uma vez Foucault (“A Sociedade Punitiva, 1973) e Guy
Debord (“A Sociedade do Espetáculo”), Harcourt observou que um dos traços
definidores da modernidade é a transformação do espetáculo em vigilância.
No final da década de 1970,
Foucault começou a trabalhar com as ideias de biopolítica, biopoder e pesquisas
novas formas de vigilância e segurança. Hoje, apontou ainda Harcourt, temos uma
nova forma de poder, o poder expositivo, concedido por nós mesmos
generosamente. Não somos mais forçados a entrar numa arena ou numa cela para
sermos vigiados. “Estamos nos expondo de forma espontânea. Nós, sujeitos
digitais, nos expomos em frenesi”, disse o pesquisador. Cada clique no
computador, cada site visitado, conteúdo curtido ou compartilhado está
alimentando um complexo sistema de segurança onde os interesses de empresas
privadas e do Estado estão entrelaçados. Quando a Microsoft colabora com a NSA
(agência nacional de segurança dos Estados Unidos) ou com o FBI, observou, não
estamos lidando apenas com o Estado. Este amálgama de interesses forma uma
concentração oligárquica com um poder que desafia todos os limites democráticos
construídos ao longo do século 20. Cada vez mais essas tecnologias alimentam um
sistema de segurança e de vigilância.
Autor do livro “The
Counterrevolution. How Our Government Went to War Against Its Own Citizens”,
Bernard Harcourt vem pesquisando sobre como essa sociedade de exposição digital
permanente representa o primeiro passo para a construção de uma nova política
de contra-insurgência nos Estados Unidos e em outros países, que já está
orientando a ação das forças de segurança. Estamos assistindo, defendeu, ao
surgimento de um novo modelo de governo baseado na teoria e na prática da
contra-insurgência. Não se trata apenas de uma passagem do Estado de Direito
para um Estado de Exceção, alertou, mas da construção de um regime em que o
campo de batalha onde se dá a aplicação de táticas de guerra de
contra-insurgência não tradicionais é a própria população.
Esse modelo, afirmou ainda
Harcourt, vem sendo construído desde antes dos atentados de 11 de setembro e
tem nos serviços de inteligência seu alicerce principal. O alvo potencial
desses serviços de inteligência é qualquer habitante do planeta. E as táticas
de contra-insurgência envolvem desde o uso de drones para eliminar inimigos,
militarização crescente do policiamento, distrações digitais de toda ordem e
táticas de convencimento para ganhar corações e mentes.
Com o governo de Donald Trump, o
desenvolvimento desse novo modelo de governo anda de mãos dadas com o que o
pesquisador chamou de “contra-revolução americana”, uma mistura tóxica de
supremacia branca, fascismo tradicional e grupos inspirados em novos movimentos
europeus de extrema-direita. O pesquisador chamou a atenção para o fato de o
discurso de Trump estar direcionado a alimentar essa nova direita americana,
com ideias simples como a de que a heterossexualidade dos brancos estaria em
perigo. Trump, como vem ocorrendo também no Brasil com Bolsonaro, se dirige a
essa base de direita que está cada vez mais radicalizada. “Estamos assistindo
nos Estados Unidos, em tempo real, supremacistas brancos definirem a agenda da
presidência da República”, resumiu.
Segunda conferencista da noite, Zeynep
Gambetti, professora de Teoria Política na Universidade de Bogazici, em
Istambul, Turquia, também abordou a emergência de discursos e práticas
racistas, sexistas e xenófobas, que alimentam e estimulam o ódio, e a crescente
presença delas em governos como os de Erdogan, na Turquia, Trump, nos Estados
Unidos, e Bolsonaro, no Brasil. A xenofobia, destacou, está alimentando
políticas baseadas no medo e no ressentimento e aumentando a repressão contra
aqueles grupos sociais que são apontados como inimigos. As políticas e
discursos desses governos, acrescentou, estão descartando as contenções
jurídicas e éticas e justificando ‘limpezas’ internas e expansões externas.
Para a pesquisadora, que teve o
livro “Agir em
Tempos Sombrios” recentemente publicado no Brasil pela editora Criação
Humana, estamos assistindo também à emergência de um pós-fascismo, que não é
meramente uma reedição do fascismo histórico com outra roupagem. Esse
pós-fascismo, defendeu Zeynep Gambetti, é plenamente compatível com a
antropologia neoliberal que prega a competitividade baseada no mérito e a
destruição dos ‘fracos’ e ‘fracassados’. Os perdedores, resumiu, são a nova
categoria dos não-humanos. Ela levantou algumas interrogações para refletir
sobre a natureza do pós-fascismo: Por que é mesmo que o fascismo precisa de um
Estado para funcionar hoje? Será que esse regime precisa que as massas
participem de grandes marchas nas ruas quando há um exército de trolls à
disposição nas redes sociais? “Trump foi levado ao poder graças à fama que
construiu na TV e não por um movimento fascista. A comparação aqui é mais com
Berlusconi do que com Mussolini”, afirmou.
Os processos de limpeza étnica,
acrescentou, não precisam mais usar gás venenoso. Podem adotar práticas de
check-point, como na Palestina, de detenções indefinidas, como ocorre em
Guantánamo, ou de incêndios em florestas como está ocorrendo na Amazónia, como
forma de deslocar populações tradicionais e abrir novos territórios de
exploração. Em todas essas práticas, destacou Zeynep, há um nexo entre
biopolítica, segurança e neoliberalismo. Para ela, a criação de inimigos
existenciais é um traço definidor desse nexo, que pode se expressar por
matanças diretas ou por massacres terceirizados, como é o caso dos incêndios na
floresta amazónica. “Deixar alguém morrer pode ser exprimido hoje por meio de
um discurso moralista que afirma que certas pessoas não merecem viver”.
O desenvolvimento do
neoliberalismo no século 21, defendeu ainda, vem sendo marcado pelo avanço da
terceirização e da individualização generalizada do risco, que não é só
económico, mas se manifesta em ampla gama de incertezas que passam a fazer
parte do cotidiano das pessoas. Na opinião da pesquisadora, há fenómenos
semelhantes ocorrendo em diferentes regiões do planeta. Ela comparou, por
exemplo, as realidades vividas hoje na Turquia e no Brasil. “Vejo muitas
semelhanças. As noções de igualdade e de solidariedade firam retiradas dos
nossos códigos de conduta e fomos contaminados por noções como a de os fracos
não valem a pena”.
Zeynep citou três episódios
ocorridos na Turquia que, para ela, ilustram o caráter do pós-fascismo no
século 21. Em setembro de 2015, o governo impôs uma regra de emergência à
população curda que vive na Turquia e bombardeou suas cidades. A Europa, lembrou
a pesquisadora, endossou esses ataques onde ocorreram muitas mortes e violações
de direitos. Ao mesmo tempo que promovia esse ataque, o governo turco anunciou
um plano de US$ 4 biliões para reconstruir as cidades que estavam sendo
destruídas. Os curdos foram removidos de seus lares para dar lugar a refugiados
sírios. O negócio da guerra aconteceu praticamente ao mesmo tempo em que as
bombas caíam na região.
O segundo episódio ocorreu em
agosto de 2016, quando houve uma tentativa fracassada de golpe de Estado. Isso
provocou uma grande ofensiva do governo turco contra opositores que, entre
outras coisas, atingiu mais de 4.500 professores e fechou 15 universidades. As
perseguições a professores envolveram demissões, confisco de passaportes e
mesmo de propriedades. Cerca de 800 académicos (Zeynep entre eles) que
assinaram um manifesto em defesa da paz foram processados e acusados de
terrorismo, entre outras coisas. Por outro lado, acrescentou, hoje há uma
proliferação de universidades privadas na Turquia, pertencentes a homens de
negócios aliados do partido no poder.
O terceiro exemplo é o que está
ocorrendo agora com a invasão do norte da Síria por tropas turcas. Segundo ela,
deve-se olhar esse movimento, não só como uma ação política, mas também como um
negócio. “O que justifica essa ação neste momento? Não houve nenhum ataque
terrorista vindo dessa região curda na Síria. Por que atacar então? Na verdade,
não há necessidade de uma justificação. A ação se justifica por si mesma. Se a
Turquia entrou na Síria é porque deve haver alguma razão. A regra foi inventada
pelo próprio ato”. Ao mesmo tempo que invade a Síria, Erdogan tem um projeto
imobiliário gigantesco para colocar cerca de 2 milhões de refugiados sírios
naquela região. Estimado em cerca de US$ 53 biliões de dólares, o projeto quer
construir 140 vilas e dez cidades no território onde hoje estão os curdos. E
esse projeto, destacou Zeynep, foi planejado antes da incursão militar,
constituindo-se em mais um exemplo da tática neoliberal de usar guerras e desastres
como meio para obter novos lucros.
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