Na Bolívia, golpe de Estado. No
Brasil, tentativa de encarcerar Lula de novo. Derrotados no Outubro
Rebelde, protofascistas querem o troco. Mas rebeldia no Chile expõe seu ponto
vulnerável: o rabo preso com a devastação neoliberal
Antonio Martins | Outras Palavras | Imagem: Emil
Nolde, “Soldados” (1913)
Última lição do dia: os homens,
eles voltam sempre. É preciso estar sempre de olhos abertos… Na peça Os
Saltimbancos, recriada por Chico Buarque, o aviso é dado pelo Jumento,
personagem de fina inteligência. Os Bichos espantaram os Barões e têm, enfim,
onde dormir. Mas ainda não podem descansar em paz, porque prepara-se a
revanche. Na América Latina, um Outubro
Rebelde abalou os governos neoliberais do Chile e do Equador,
destronou Maurício Macri na Argentina e continua a sacudir o Haiti. Novembro,
porém, começou em refrega. Na Bolívia, um golpe militar que estava em
fermentação desde 23 de outubro derrubou ontem Evo Morales, seu vice, a
presidente do Senado e o da Câmara. Gravações vazadas pelo jornal El
Periodico (e reproduzidas no Brasil pela revista Fórum)
indicam que em sua preparação participaram assessores de Jair Bolsonaro e
senadores norte-americanos. Agora, o país está acéfalo, aterrorizado por
milícias. Dois governadores, um ministro e a irmã do presidente tiveram suas casas
queimadas. Meios de comunicação independentes foram atacados
e tirados do ar. Num dos episódios, José Aramayo, diretor de rádio ligada à
Confederação dos Trabalhadores Camponeses, foi amarrado
a uma árvore. A Patricia Arce, prefeita de Vinto, na região de Cochabamba, rasparam os
cabelos, pintaram o corpo de vermelho e fizeram caminhar sob insultos
proferidos por homens.
Ao Brasil, cuja importância
geopolítica é incomparável, a orientação foi dada pelo próprio Steve Bannon,
principal ideólogo e articulador da onda protofascista. Inconformado com a
libertação de Lula, ele propôs no sábado, em entrevista
à BBC, que os partidários de Bolsonaro se aproveitem do fato para acirrar a
polarização e “empurrar a agenda de reformas com um senso extra de urgência”.
Contudo, advertiu que isso deveria ser apresentado não por meio da defesa
explícita das propostas, mas como um movimento em favor do combate à corrupção
e ao sistema político. Dito e feito. Ainda ontem (10/11), revela a Folha
de S.Paulo, Bolsonaro alterou sua tática inicial diante de Lula – que era
manter relativo silêncio. Decidiu encarregar Sérgio Moro de lançar campanha
para que o Congresso restabeleça, por meio de Emenda Constitucional, a prisão
dos réus, após condenação segunda instância.
No mesmo domingo, porém, vinha do
Chile um sinal de sentido oposto. Incapaz de frear os protestos contra seu
governo (houve nova
manifestação gigante na sexta-feira), o presidente Sebastián Piñera
sinalizava que aceitará a convocação
de um “Congresso Constituinte”. Embora nenhuma informação adicional tenha
sido dada, o ato expressa clara vitória de uma revolta
popular reprimida com selvageria. Poderá significar forte pressão
contra o projeto neoliberal, num país que era há pouco visto como sua
“vitrine”.
A América Latina continua
instável e, em certa medida, imprevisível. Até outubro, a região era marcada pelo
avanço de uma onda conservadora em que se somam correntes ultracapitalistas e
protofascistas. No mês passado, uma sucessão revoltas populares e resultados
eleitorais – em especial o da Argentina – interrompeu
a maré e criou uma situação de impasse. Agora, vem a ressaca. A região
parece transformar-se num palco crucial para a disputa entre a ultradireita e
os que buscam, diante da crise civilizatória, alternativas humanizadoras. O
Brasil será certamente centro deste embate – em especial após as esperanças e
ódios despertados pela libertação de Lula. Eis, com base nos fatos mais
recentes, quatro hipóteses para examinar o novo cenário.
1. As ruas, e não as instituições,
estão se tornando o palco central da disputa:
Atente à contradição. Na Bolívia,
um dos governos mais comprometidos com mudanças estruturais na América do Sul
caiu ontem, por ser incapaz de mobilizar as maiorias contra os bandos fascistas
e a polícia, convertida em força pelo golpe. Mas no Chile, governado por um
ultracapitalista, nem ele, nem os tanques do exército e o toque de recolher,
nem a morte de 20 manifestantes pelo exército e os carabineros foram
capazes de frear o ascenso de um movimento que contesta frontalmente o projeto
neoliberal.
A América Latina parece viver um
período raro, em que as ruas adquirem força política. Estão em disputa, em todo
o mundo – atente também à Catalunha, à Argélia, ao Egito, ao Líbano, a Hong
Kong. São voláteis. Como a velha ordem capitalista deixou de produzir
estabilidade, radicalizam-se e perdem o medo. É arriscado confiar nas
instituições para controlá-las. Um texto publicado por El País no
domingo relata o importante
trabalho político realizado junto aos comandantes do exército, ao
longo de anos, por Evo Morales. Reunia-se com eles uma vez por semana.
Participava constantemente de suas cerimônias.
Estimulou-os a criar empresas
militares. Julgava-se seguro. Mas seu apoio castrense esvaiu-se em dias, após
uma combinação de pressões
norte-americanas e protestos de rua. Os avanços
sociais e econômicos da Bolívia, em 13 anos de Evo, são inegáveis. Mas
não bastaram nem para refrear os preconceitos das elites contra o presidente
indígena, nem para constituir, entre as maiorias, um movimento capaz de
defendê-lo permanentemente. As causas precisam ser examinadas sem precipitação
– mas a derrota, também nas ruas, é clara.
2. É preciso impedir que a
ultradireita apresente-se como antissistema:
Do ponto de vista de seus
interesses, Steve Bannon está coberto de razão, quando orienta a ultradireita
brasileira a erguer as bandeiras da luta contra a corrupção e o establishment.
Ele tenta, há anos, ocupar um vazio político real e muito potente – ao qual a
esquerda demora a atentar. O sistema político está em crise, em todo o mundo.
As maiorias sentem-se abandonadas por ele, pois a desigualdade tornou-se
acintosa, as condições de vida das maiorias deterioram-se e a democracia,
sequestrada pelo poder econômico, não oferece alternativas.
Descrita por Serge Halimi e
Pierre Rimbert num texto essencial para
compreender as novas condições da disputa política, a manipulação articulada
por Bannon é notável. Ela permitiu, a dezenas de partidos de ultradireita em
todo o mundo, muitos dos quais sequer existiam antes da crise de 2008, capturar o
ressentimento decorrente destas frustrações. Para fazê-lo, desviam o foco.
Jamais atacam a ditadura financeira, que produz a concentração brutal de
riquezas e o esvaziamento da democracia. Voltam seu eleitorado suscetível
contra uma suposta “elite” – composta pelos mais letrados; pelos que expressam
etnias, culturas, religiões, sexualidades ou padrões morais não-hegemônicos;
pelos que podem ser apontados como politicamente desviantes.
Mas esta manipulação só tem sido
possível graças ao espaço aberto pela esquerda. Incapazes até o momento – em
quase todos os países – de dialogar com o legítimo sentimento antissistema que
cresce entre as multidões, os partidos progressistas travestem-se de defensores
das instituições. Não percebem que já não se trata apenas de defender a
velha democracia, mas de resgatá-la e reinventá-la. Fazem-no,
muitas vezes, porque mergulharam tão profundamente no aparelho de Estado que
são incapazes de enxergar uma política da mobilização social.
O resultado é trágico, como
mostra todo o processo que levou ao impeachment de Dilma Rousseff no Brasil. A
situação é bastante distinta hoje, no Brasil. Mas não se deve desprezar o
bolsonarismo – que criou uma importante legião de apoiadores, uma milícia
digital eficiente para mantê-los mobilizados e um imaginário político
primitivo e retrógrado que lhes serve de horizonte.
3. A força da ultradireita –
sua aliança com o neoliberalismo – pode ser seu desastre
No Brasil, ao contrário do que
ocorreu a partir de 2015, a luta contra a ultradireita pode tirar proveito de
um enorme trunfo. O país é governado há mais de três anos por uma coalizão de
forças golpistas e conservadoras. As condições de vida agravaram-se. Direitos
sociais foram suprimidos e serviços públicos regrediram. Nenhuma das
promessas de geração de mais ocupações cumpriu-se. E o governo acaba de
apresentar três
Propostas de Emendas Constitucionais (PECs) que poderão tornar tudo
ainda mais dramático. Os salários dos servidores poderão ser congelados
ou mesmo reduzidos – diminuindo-se também as horas de atendimento aos
usuários. Direitos sociais como licença-maternidade, auxílio-doença e outros
estão sujeitos
à interrupção. Fundos sociais – que financiam a Educação ou a Ciência e
Tecnologia – serão extintos. Um em cada cinco municípios pode ser
fechado.
O pacote deve-se à aliança com os
neoliberais. Até agora, ela tem sido a fortaleza da ultradireita. Pode, porém,
esvaziar seu discurso e levá-la ao desastre. Entre os benefícios de que estas
duas forças se aproveitam, ao atuar em frente, está a blindagem mútua. Nenhum
presidente que pratica atos ou faz declarações como as de Bolsonaro poderia
manter-se à frente do governo, se não fosse o executor do programa que os
ultracapitalistas querem impor ao país. E este projeto, por sua vez, seria
irrealizável sem o apoio de um político capaz não apenas de vencer as eleições
– mas de impor medidas antipopulares enquanto desvia a atenção da sociedade
para temas menores.
Mas a vantagem desta aliança
transforma-se num estorvo e num fator de crise quando seus objetivos reais
aparecem sem máscara. Por que os apoiadores de Bolsonaro, atraídos pelo
discurso em favor de “Saúde e Educação padrão FIFA”, precisam defender o corte
drástico dos recursos para estas duas áreas? Aqui, o caso do Chile merece um
exame especial. A mobilização que abalou Piñera foi possível porque houve,
antes, campanhas intensas contra as políticas neoliberais. Surgiram, ao longo
de mais de uma década, coalizões contra a entrega do abastecimento de água a
transnacionais, o sistema privado de aposentadorias, a crise da Educação, o
péssimo atendimento à Saúde, o altíssimo custo de vida. A alta dos preços das
passagens de metrô foi apenas o estopim. Quando deu-se a explosão, o acúmulo de
consciência e organização pré-existente tornou possível politizar a revolta
rapidamente, formular um conjunto claro e conciso de reivindicações, torná-lo
popular entre a sociedade.
No período intenso que promete se
abrir no Brasil, o exemplo é inspirador. E a tramitação, no Congresso, do
pacote de PECs de Bolsonaro e Paulo Guedes pode ser um momento de virada. Elas
são tão abertamente antissociais, e seu fundamentalismo está tão em desacordo
até mesmo com o pensamento mais pragmático de outros líderes de direita (no
Reino Unido, Boris Johnson propõe o fim da “austeridade”; no próprio Chile,
depois de pressionado, Piñera tentou calar os protestos com um “pacote social”)
que valeria pensar na hipótese de um combate mais radical contra elas. Em vez
de buscar emendá-las, como fez na votação da contrarreforma da Previdência, a
oposição poderia pensar em rechaçá-las em bloco; e em propor um conjunto de
medidas alternativas; e em abrir uma disputa de projeto contra projeto, para os
serviços públicos do Estado brasileiro.
4. Em vez da nostalgia dos “bons
tempos”, é preciso um novo programa
Ao analisar, no sábado, as
consequências políticas da libertação de Lula, o filósofo Marcos Nobre chamou
a atenção, entre outros, para dois pontos. Livre, o ex-presidente tirará,
quase automaticamente, a esquerda e o PT de uma postura puramente defensiva.
Para contrapor-se a Bolsonaro, já não poderá reclamar a liberdade – terá de
apresentar ideias de país. Espera-se, completou Nobre, que, ao contrário do que
ocorreu em 2018, estas ideias não sejam apenas a evocação aos “bons tempos dos
governos petistas” – mas, principalmente, uma visão distinta sobre os desafios
que o Brasil enfrenta agora. Uma visão semelhante tem sido sustentada
com insistência em Outras Palavras. Não basta falar aos já convencidos
da capacidade da esquerda; nem ocultar que o projeto adotado nos governos Lula
e Dilma entrou em crise já em 2013 e não pode ser repetido.
Ao falar a milhares apoiadores em
São Bernardo, no mesmo sábado, Lula colocou de fato a esquerda em outro patamar.
Suas críticas a Paulo Guedes – muito mais que as feitas a Moro – indicam que
enxerga a fragilidade central do governo Bolsonaro. Sua alusão a temas que
angustiam as maiorias, mas são frequentemente ocultados do debate público (por
exemplo, a captura da riqueza nacional pelo sistema financeiro; o drama das
dezenas de milhões de endividados) mostra que a sensibilidade, uma de suas
grandes virtudes, continua presente e afiada.
Lula parece disposto a partir,
agora, para uma caravana pessoal pelo país, em grandes atos, cujo objetivo
seria resistir e passar à ofensiva. A princípio, parece ótimo. Quebrar a
ausência de oposição, que persiste há tanto tempo, é, mais que nunca,
bem-vindo. Mas talvez também esteja presente, na iniciativa, o risco ao qual
Nobre alude.
O protagonismo pessoal do
ex-presidente é uma força extraordinária e pode ser ainda mais imprescindível
em tempos muito difíceis. Não seria conveniente, por isso mesmo, que ele
estivesse articulada com um esforço mais coletivo de superação do labirinto em
que nos perdemos? Que pudesse atrair outros sujeitos e outros públicos, além
dos que desejariam a volta dos governos de Lula? Por exemplo, os partidos que,
à esquerda, têm projetos distintos dos do PT. Ou os movimentos que propõem
novos paradigmas de desenvolvimento; ou julgam insuficientes as “reformas
fracas” que o lulismo promoveu em seu período. Não será possível abrir, em
mobilização e nas ruas, um novo processo de resistência e de construção de
alternativas, que vá além da reivindicação do passado pré-2016?
Rebeliões. Golpes. Disputa
acirrada pelas ruas. Imprevisibilidade. Numa América Latina em que as
perspectivas pareciam tão estreitas, há apenas 40 dias, o futuro está de novo
em aberto. Será um prazer acompanhar os fatos novos e deixar a condição de
espectadores passivos de nossa tragédia.
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