domingo, 17 de novembro de 2019

O novo Trafalgar dos ingleses


Face à previsível vitória dos tories (conservadores) nas próximas eleições inglesas e à própria indefinição dos seus opositores (trabalhistas e liberais), poucos devem hoje duvidar que o Brexit irá acontecer, qualquer que venha a ser a data final para a sua concretização. Motivo para dúvida deverá ser o que surgirá então e qual, entre a Inglaterra e a UE, será o mais proteccionista?


Com os ingleses no centro do jogo, a analogia com a vitória em Trafalgar (batalha naval que nos inícios do século XIX opôs franceses e ingleses) onde os britânicos em número inferior estavam prestes a ser dominados, mas cuja reviravolta final ditou o abandono de qualquer esperança francesa na invasão do Reino Unido e deu aos ingleses a supremacia marítima na qual fundariam o seu império colonial.

A pequena Inglaterra, sozinha, isolada do continente, não deveria sobreviver ao seu abandono imprudente da UE, mas, se parece certo que estará morta a Inglaterra que governou o continente por cerca de trinta anos via UE e que esta não recuperando o Reino Unido nos seus próprios termos poderá ser a única a entrar em sintonia com ela, o que, ironia das ironias, colocaria os britânicos no centro da dinâmica global moderna.

Se o entendimento anglo-irlandês sobre a polémica fronteira entre as Irlandas tiver resultado de um qualquer acordo entre Boris Johnson e Leo Varadkar (o primeiro-ministro irlandês) que reduza as barreiras alfandegárias após a saída, será a UE que passará a ser vista como uma entidade proteccionista (aberta internamente mas extremamente rígida nas suas trocas com o resto do mundo), como parecem revelar as grandes dificuldades encontradas na assinatura de acordos de comércio livre com o Canadá, os EUA ou o Mercosul e sustentando as múltiplas críticas de proteccionismo normativo, de que tem sido alvo.

Nesta perspectiva o Reino Unido estaria a deixar a UE para se livrar desse proteccionismo e, usando em benefício próprio a estratégia dos seus antigos parceiros, tornar-se na placa rotativa do comércio mundial com a própria UE.



Batalha de Trafalgar, de Joseph Mallord William Turner (Wikipédia)
Admitido este cenário, irá a UE deixar cair a sua política de defesa das regras que tanto irritam Donald Trump e os opositores de toda e qualquer regulamentação que os possa prejudicar, ou pelo contrário manter a defesa das cada vez mais frágeis regras ambientais e de protecção dos consumidores…

A confirmar-se esta ideia, a City londrina, e toda a máquina financeira transnacional, poderá manter a sua posição de relevo no comércio internacional, manter-se-á o nível actual da taxação sobre as transacções e o nível geral de preços (o que não afectará o poder de compra dos britânicos) e a economia britânica continuará a exportar; Trump conseguirá o seu ponto de entrada na UE e Bruxelas poderá ver repentinamente resolvidas as complicadas negociações que mantém com o Canadá, os EUA e o Mercosul, trazendo algum alívio à depauperada economia mundial.

Tudo isto poderá até ser-nos apresentado como positivo, mas será apenas a confirmação do fim do projecto de união europeia como o conhecemos pois, a reafirmação das soberanias nacionais à custa de experiências fracassadas de criação de uma soberania supranacional traduzir-se-á na atomização de cada governo (no limite poder-se-á até falar em regiões ou cidades) que julgarão recuperar uma liberdade e uma flexibilidade individual para a conclusão de negociações que agora parecem impossíveis em bloco. Nenhuma autoridade não eleita voltará a decidir por eles, como propagandearam os defensores do Brexit, mas passarão a depender ainda mais de uns mercados agora ainda mais livres para prosseguirem os seus objectivos que, recorde-se, não têm sido os dos cidadãos.

Este é uma interpretação de um cenário que há mais de três de anos assombra e ensombra a Europa e arredores. Transvertendo-se de tragédia em drama ou até em comédia, o Brexit tem revelado as maiores fragilidades num Reino Unido que arrisca hoje soçobrar com dele e desempenhado um perfeito papel de desagregador de uma unidade europeia que talvez nunca tenha existido nem nos melhores sonhos… Apresentado como aspiração dos defensores do soberanismo e do ideal do estado-nação, o tempo e as contradições dos seus defensores têm revelado – ou pelo menos levantado – outras interpretações, fazendo crescer a dúvida sobre as suas reais fundamentações e recordando as inúmeras dúvidas e obstáculos que durante décadas foram erguidos à integração do Reino Unido no projecto europeu.


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