O primeiro deputado de
extrema-direita assumida garante que sempre defendeu o que agora defende, mas a
sua tese de doutoramento diz-nos o contrário. Quiçá se trate de um aflitivo
caso de dupla personalidade. Ou apenas tenha como princípios a megalomania e o
oportunismo.
Fernanda Câncio | Diário de Notícias
| opinião
Durante bastante tempo decidi,
como muitas outras pessoas pelas mesmas razões, não escrever uma linha de
opinião sobre André Ventura. Ou sequer mencionar o seu nome. Pareceu-me desde o
início que se trata de alguém sequioso de atenção e de palco, à procura de
relevância, e que ser "atacado", declarado "inimigo" por
pessoas conotadas com a esquerda e com os movimentos de que ele se clama
opositor faz parte da sua estratégia de afirmação e de congregação de apoios. A
estratégia de um populista que quer usar o ódio e o medo para seu ganho,
apresentando-se, como é timbre dos populistas, como "aquele que diz as
verdades".
É aliás algo que André Ventura
repete de cada vez que está em personagem: "Estou aqui para dizer as
verdades e o que as pessoas pensam." É a voz do povo, pois claro. Uma
espécie de Jesus (o profeta, não o treinador) da política, que vai,
sacrificadamente, para o templo dos vendidos partir tudo em nome da pureza.
As verdades, pois. Vamos a elas.
Ignorar André Ventura só foi possível enquanto era mais um aspirante a integrar
a primeira linha, primeiro no PSD, pelo qual foi candidato em 2017 à Câmara de
Loures, e depois, ganho balanço graças à sua retórica anticiganos e a alguns
grupos de media que o levaram ao colo, no seu próprio partido, o
Chega. Agora que entrou no parlamento é altura de o tratar como gente crescida.
Decidi, pois, fazer o óbvio para
uma jornalista: procurar informação sobre ele, tentando perceber de onde vem, o
que fez antes de chegar à ribalta. Foi assim que percebi que a sua tese de
doutoramento está "restrita" até 2022 e que online não
encontrava dela uma única referência em trabalhos científicos. Estranhei, tanto
mais que André Ventura é alguém que exibe profusamente as suas credenciais
académicas.
E ocorreu-me então, até pelo tema
- as alterações legais e processuais ocorridas nas jurisdições dos países
ocidentais no pós-11 de Setembro - e pela orientadora da tese, uma professora
da Universidade de Cork, na Irlanda, que faz parte do conselho executivo do
respetivo Centro de Direito Criminal e Direitos Humanos e da Comissão de
Igualdade e Direitos Humanos da Irlanda, que este trabalho académico poderia
trazer algumas surpresas.
Não me enganei. Quem escreveu
aquelas 267 páginas não parece de modo algum apologista de políticas de
imigração musculadas e estigmatizantes, de polícias que disparam primeiro e
perguntam depois (é de lembrar que o Chega apresentou como candidato nas
legislativas, pelo círculo do Porto, um GNR condenado por matar uma criança cigana), da divisão
das comunidades entre "nós e os outros", de reversão do ónus da prova
e de tudo isso que o autor bem caracteriza como "populismo penal".
Pelo contrário; é alguém que
cita abundantemente o sociólogo Boaventura Sousa Santos (referência da esquerda
portuguesa e odiado pela direita); um defensor dos direitos humanos que nos
pergunta de quanto das nossas liberdades fundamentais estamos dispostos a
abdicar por um falso sentimento de segurança; que admite ser Portugal um dos
mais pacíficos países do mundo; que manda as mãos à cabeça pelo facto de as
polícias nacionais terem passado a poder decidir escutas e buscas domiciliárias
e por terem aumentado brutalmente as detenções por "atividades
suspeitas" e as prisões preventivas - que, denuncia, são usadas como
"ferramenta de combate ao crime". Alguém que se preocupa com os danos
causados à "saúde mental" dos detidos pela extensão das prisões
preventivas e domiciliárias.
Alguém que inclusive refere como
preocupantes os maiores poderes das autoridades no que se refere a
"intrusão" na vida financeira das pessoas e adverte para o perigo
para a liberdade de expressão que advém de proibir determinados tipos de
discurso - e exemplifica com o de líderes religiosos muçulmanos que façam o
elogio do terrorismo.
Sim, tudo isto está lá. Nem tudo
coube no texto hoje publicado no DN.
O André Ventura que assina aquela
tese - a não ser que não tenha sido ele a escrevê-la - é alguém que se refere
ao homicídio de Jean Charles de Menezes, o eletricista brasileiro abatido com
cinco tiros na cabeça, "por engano", na sequência dos ataques
terroristas em Londres de 21 de julho de 2005, como um exemplo das atitudes
discriminatórias das polícias em relação a minorias (pareceu
"asiático" aos agentes); alguém que se indigna com a lista de
agressores sexuais criada no Reino Unido, considerando que resultou não de uma
avaliação ponderada e baseada em factos mas de "opiniões populares
expressas nos media" (ou seja, em caixas de comentários) e de um
clima de vigilantismo.
Perante esta evidência, o
agora deputado pode alegar o que quiser. Que se tratou de um exercício
académico; ou, como declarou ao DN, não são opiniões mas "um trabalho
científico". Poderá até vir a sustentar que esteve a fazer de
advogado do diabo (neste caso, ao contrário) e usou o seu trabalho de
investigação para melhor conhecer os argumentos do inimigo - sendo esse inimigo
a ordem constitucional estabelecida nos países ocidentais e a doutrina dos
direitos humanos; ou seja, aquilo que o vemos agora apelidar de
"politicamente correto".
Pode inclusive depreender-se que
jogou o jogo, assumindo o discurso que sabia ser o esperado pela sua
orientadora e pela universidade. E não faltará decerto quem o justifique pelo
alegado domínio do "politicamente correto" nas universidades, que,
argumentar-se-á, impossibilitaria a alguém fazer um doutoramento com sucesso
com base nas ideias que o vemos agora defender.
Mas é inegável - mesmo se
ele a nega - a absoluta contradição entre o que ali está escrito e o seu
discurso político. E que a sua persona atual encarna na perfeição os políticos
descritos na tese como demagogos que alimentam e manipulam o "pânico
social" para virar comunidades umas contra as outras e ganharem
visibilidade e vantagem eleitoral.
De facto, o que parece a quem lê
a sua tese é que a descrição que ali se faz de um aumento do apoio popular a
medidas como a pena de morte, a prisão perpétua, a compressão crescente do
direito de defesa dos suspeitos e a expansão dos poderes das polícias inspirou
o ambicioso doutorando a criar um discurso condizente com a maré que, a partir
de 2016, vimos triunfar em vários pontos do mundo ocidental.
Que reconheceu nesse nicho a
oportunidade para se alcandorar, ele que primeiro procurou a fama como escritor
(antes de a buscar como comentador desportivo e judicial no universo Cofina), e
dedicou o seu segundo romance, A Última Madrugada do Islão (2009),
"a todos os que sempre me disseram que eu seria capaz".
O que pensa realmente André
Ventura não sabemos, nem importa; estamos perante alguém que tanto defende uma
coisa como o seu contrário, tanto nos gaba um produto como o concorrente. Um
vendedor de notória lábia e zero escrúpulos. Que, como na famosa frase do
comediante Grouxo Marx, diz: "Estes são os meus princípios. Se não
gostarem, tenho outros." Ou, mais propriamente no seu caso, "estas
são as minhas verdades. Se não gostarem, tenho melhores lá atrás na carrinha."
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