É perceptível uma angústia quase
apocalíptica por parte de um governo que se alimenta da construção da imagem
desumana de seus inimigos.
O final do ano está às portas. E,
com isso, chega ao fim também o primeiro ano de um novo (velho) governo. Novo
do ponto de vista cronológico, velho com relação a certas práticas e,
sobretudo, no que se refere aos discursos que delineiam a atual política
criminal no Brasil. Na realidade, uma das principais novidades da atual
administração está nos traços marcadamente e escancaradamente neoconservadores
do controle penal que, sem qualquer cerimónia, reproduz o que há de pior no
modelo norte-americano.
Melancolicamente, presenciamos o
desfecho de um ano que, no contexto político-criminal, confirmou as
expectativas quanto à disseminação de uma visão da justiça criminal fadada ao
fracasso. Declaradamente defende-se a redução da criminalidade e a promoção da
segurança pública, porém, na prática, o que se nota é mais do mesmo:
consolidação da hipertrofia penal e criminalização da pobreza. O sistema penal
brasileiro espelha a sua matriz estadunidense e revela-se como parte de um
projeto hegemónico-ideológico cujo propósito é legitimar o desmonte do Estado
de Bem-Estar Social e negar o Direito a partir daquilo que Peter-Alexis Albrecht
chamou de “pós-preventivo direito penal de segurança”.
Esse modelo de controle penal
ganhou forças desde o início deste século e sobrepõe claramente a segurança à
liberdade. O direito penal abandonou a sua função de tutela dos bens jurídicos
para assumir o papel de instrumento de materialização da segurança pública,
recorrendo, assim, a teorias que defendem a militarização da segurança e a
intervenção estatal independentemente de suspeita. Com a multiplicação das
medidas legais de segurança demandadas pela população, o Estado exige dos
cidadãos “sacrifícios” ou deveres em favor da segurança total, pretensão
claramente ilusória.
Esse enredo já conhecido não é
obra do acaso, nem resultado apenas da ignorância política em relação aos
conhecimentos criminológicos ou jurídico-penais. É justamente aqui que
discordamos de Albrecht e nos apoiamos no belíssimo trabalho do historiador
francês Christian Ingrao sobre os intelectuais alemães que fizeram parte da SS
para destacar o papel decisivo dos (pseudo)intelectuais neoconservadores na
construção da narrativa punitivista contemporânea. Apoiados pelos meios de
comunicação de massa, eles interiorizam e disseminam um sistema de crenças que
justifica a extinção de programas sociais e a ampliação do poder punitivo como
solução para a criminalidade.
Esqueçamos, portanto, a imagem de
indivíduos cínicos, arrogantes, oportunistas e incultos. É provável que alguns
assumam essas características, mas não estamos falando de monstros, senão de
verdadeiros “intelectuais militantes” (ou militantes intelectuais), para usar a
expressão de Ingrao.
Ele também provém de sujeitos
esclarecidos – académicos, juristas, economistas, filósofos, historiadores –
eliminando, com isso, a ideia de que quanto maior o grau de instrução, menor o
risco de adesão a ideologias extremistas e a posturas
fundamentalistas.
Raphael Boldt | Carta Capital
Na imagem: Bolsonaro reza? Pede a
concretização plena da ditadura a instaurar, assim como a matança de milhares
de brasileiras contrários aos seus planos ditatoriais? Pede a que deus? E que
deus é esse? Só se fôr um deus menor. (PG)
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