sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Crer para destruir: o punitivismo neoconservador no Brasil


É perceptível uma angústia quase apocalíptica por parte de um governo que se alimenta da construção da imagem desumana de seus inimigos.

O final do ano está às portas. E, com isso, chega ao fim também o primeiro ano de um novo (velho) governo. Novo do ponto de vista cronológico, velho com relação a certas práticas e, sobretudo, no que se refere aos discursos que delineiam a atual política criminal no Brasil. Na realidade, uma das principais novidades da atual administração está nos traços marcadamente e escancaradamente neoconservadores do controle penal que, sem qualquer cerimónia, reproduz o que há de pior no modelo norte-americano. 

Melancolicamente, presenciamos o desfecho de um ano que, no contexto político-criminal, confirmou as expectativas quanto à disseminação de uma visão da justiça criminal fadada ao fracasso. Declaradamente defende-se a redução da criminalidade e a promoção da segurança pública, porém, na prática, o que se nota é mais do mesmo: consolidação da hipertrofia penal e criminalização da pobreza. O sistema penal brasileiro espelha a sua matriz estadunidense e revela-se como parte de um projeto hegemónico-ideológico cujo propósito é legitimar o desmonte do Estado de Bem-Estar Social e negar o Direito a partir daquilo que Peter-Alexis Albrecht chamou de “pós-preventivo direito penal de segurança”. 


Esse modelo de controle penal ganhou forças desde o início deste século e sobrepõe claramente a segurança à liberdade. O direito penal abandonou a sua função de tutela dos bens jurídicos para assumir o papel de instrumento de materialização da segurança pública, recorrendo, assim, a teorias que defendem a militarização da segurança e a intervenção estatal independentemente de suspeita. Com a multiplicação das medidas legais de segurança demandadas pela população, o Estado exige dos cidadãos “sacrifícios” ou deveres em favor da segurança total, pretensão claramente ilusória.

Esse enredo já conhecido não é obra do acaso, nem resultado apenas da ignorância política em relação aos conhecimentos criminológicos ou jurídico-penais. É justamente aqui que discordamos de Albrecht e nos apoiamos no belíssimo trabalho do historiador francês Christian Ingrao sobre os intelectuais alemães que fizeram parte da SS para destacar o papel decisivo dos (pseudo)intelectuais neoconservadores na construção da narrativa punitivista contemporânea. Apoiados pelos meios de comunicação de massa, eles interiorizam e disseminam um sistema de crenças que justifica a extinção de programas sociais e a ampliação do poder punitivo como solução para a criminalidade.

Esqueçamos, portanto, a imagem de indivíduos cínicos, arrogantes, oportunistas e incultos. É provável que alguns assumam essas características, mas não estamos falando de monstros, senão de verdadeiros “intelectuais militantes” (ou militantes intelectuais), para usar a expressão de Ingrao.

Ele também provém de sujeitos esclarecidos – académicos, juristas, economistas, filósofos, historiadores – eliminando, com isso, a ideia de que quanto maior o grau de instrução, menor o risco de adesão a ideologias extremistas e a posturas fundamentalistas. 

Raphael Boldt | Carta Capital

Na imagem: Bolsonaro reza? Pede a concretização plena da ditadura a instaurar, assim como a matança de milhares de brasileiras contrários aos seus planos ditatoriais? Pede a que deus? E que deus é esse? Só se fôr um deus menor. (PG)

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