Do Chile e Haiti à França; do
Líbano ao Sudão e Hong Kong: multidões inquietam-se. Não se movem pela disputa
clássica entre esquerda e direita. Mas pronunciam, em comum, um já
basta – dirigido à desigualdade e à vida-mercadoria
Ben Ehrenreich, no The Nation |
Tradução: Felipe Calabrez
Algo – alguém – continua batendo
na porta. Está frio lá fora e está ficando mais frio, mas as pessoas do lado de
dentro estão confortáveis no sofá com a TV ligada e um cobertor no colo. Então,
vem aquela batida de novo: na porta da frente agora, depois na porta lateral e
depois atrás. Talvez seja o vento. Agora batem nas janelas, no telhado e nas
paredes da casa – quem sabia que eram tão finas? É difícil entender: como
tantas pessoas podem bater de uma vez?
Mas eles estão, e está ficando
mais alto. Na semana passada, as batidas vieram da Colômbia – em Bogotá, Cali,
Cartagena, Barranquilla, Medellín, um toque de recolher declarado, o exército
nas ruas – e na semana anterior no Irã, uma batida constante que rapidamente se
espalhou por mais de 100 cidades . Cem manifestantes foram mortos, segundo a
Anistia Internacional. O governo desligou a Internet no segundo dia dos
protestos. Mas mesmo quando há uma conexão estável, é difícil reunir tudo:
protestos estão acontecendo na Alemanha, Argélia, Bolívia, Chile, Colômbia,
Equador, Egito, Espanha, França, Guiné, Líbano, Haiti, Holanda, Honduras, Hong
Kong, Índia, Indonésia, Irã, Iraque, Reino Unido, Sudão e Zimbábue – tenho
certeza de que estou deixando um lugar de fora – e isso apenas desde setembro.
Alguns são do tipo fugaz e rotineiro que atrapalha o tráfego por um dia. Outros
parecem mais revoluções, grandes o suficiente para derrubar governos, paralisar
nações inteiras.
Algo está acontecendo aqui. Mas o
que? E porque agora? Nas últimas doze semanas, os protestos espalharam-se por
cinco continentes – a maior parte do planeta – desde as ricas Londres e Hong
Kong até as famintas Tegucigalpa e Cartum. As manifestações são tão
geograficamente díspares e aparentemente heterogéneas em causa e composição que
ainda não vi nenhuma tentativa séria de vê-las como um fenómeno unificado.
Em face disso, parece haver pouco
que os une. No Irã, o anúncio de um aumento de 50% nos preços dos combustíveis
desencadeou tudo. Na Alemanha, Holanda e França, os agricultores bloquearam
estradas para protestar contra as regulamentações ambientais. A indignação que
tem sacudido Hong Kong desde junho começou com uma proposta de legislação que
permitiria extradições para a China continental. No Chile, a faísca foi um
aumento nas passagens do transporte público; na Indonésia, uma lei de crimes
opressivos; no Líbano, o anúncio de novos impostos sobre tudo, desde gasolina a
chamadas pelo WhatsApp.
Alguns desses movimentos foram
organizados por sindicatos ou partidos formais da oposição, mas muitos são do
tipo horizontal e sem liderança. (“Seja como a água”, como dizem os
manifestantes de Hong Kong, repetindo Bruce Lee.) Nenhuma ideologia
revolucionária abrangente os une. Nenhum partido de vanguarda está correndo
para o fronte. O eixo esquerda-direita no qual o mundo foi dividido durante a maior
parte do século passado nem sempre é útil. Os direitistas e o governo dos
Estados Unidos aplaudiram os manifestantes em Hong Kong, Irã e Bolívia – antes
do golpe que derrubou Evo Morales – enquanto desprezavam ou ignoravam as
manifestações mais ou menos em qualquer outro lugar. Os setores mais
doutrinários da esquerda farejaram o intervencionismo imperialista por trás dos
protestos de Hong Kong e do Irã, afirmando a legitimidade de praticamente todos
os outros movimentos populares do planeta.
Se você consegue olhar de soslaio
além da fumaça das barricadas, os pontos em comum começam a se destacar. No
Chile, a raiva causada por um aumento de 3% nas tarifas de metrô revelou uma
população não apenas irritada com “problemas de bolso” – a alta da tarifa elevou
os custos de transporte para 21% da renda mensal de um trabalhador que ganha o
salário mínimo – mas tão exausta pela austeridade , tão espremida pelos baixos
salários, pelas longas horas e pelas dívidas, tão farta da ganância e cegueira
dos poucos ricos que governam o país que estavam prontos para queimar quase
tudo. Poucas horas depois de declarar estado de emergência e enviar as forças
armadas para as ruas, o presidente bilionário Sebastián Piñera foi à TV para
lembrar aos cidadãos que a “democracia estável” do Chile e a economia crescente
o tornam um “verdadeiro oásis” em um continente caótico. “As práticas que
sustentam a prosperidade não são populares”, observou The Economist secamente.
Em outro canto da mesma câmara de
eco, pouco depois de a polícia egípcia prender milhares que ousaram se
manifestar em setembro, o ministro das Finanças do país lamentou que os “frutos
da reforma económica [do Egito] não fossem capturados pelas pessoas comuns”.
Medidas impostas pelo Fundo Monetário Internacional na verdade fizeram com que
a inflação subisse 60% em três anos, jogando milhões na pobreza. Isso é o que
um analista do Morgan Stanley chamou recentemente de “melhor história de
reforma no Oriente Médio”.
A desconexão entre a percepção da
elite e a experiência de multidão é tão difundida quanto fundamental: todos os
países que vêm enfrentando revoltas populares – e grande parte do resto do
planeta – são governados há décadas por um único modelo económico, no qual o
“crescimento” comemorado por poucos significa miséria para muitos e o capital
flui para contas norte-americanas e europeias com a mesma certeza com a qual o
esgoto flui ladeira abaixo. O Chile foi um notório laboratório inicial: os
esquadrões de assassinato de Pinochet trabalharam em conjunto com economistas
formados em Chicago para criar um “milagre econômico” que apenas os
afortunados, inescrupulosos e cegos puderam apreciar. Se as mobilizações
populares na Bolívia não conseguirem reverter o golpe de 10 de novembro, elas
podem esperar futuro semelhante.
A palavra neoliberalismo é usada
banalmente hoje, mas refere-se de fatgo a um método globalmente aplicável para
preservar o desequilíbrio esmagador de poder. Ele funciona microcosmicamente
nas cidades. Pense em sistemas de transporte público decadentes, com um
orçamento que cai sem parar e tarifas segregadoras, enquanto bilionários vão de
helicóptero de teto em teto. Mas também age macrocosmicamente em escala
planetária: as elites nacionais conspiram com corporações multinacionais e
instituições financeiras para manter a mão-de-obra barata e a riqueza e os
recursos direcionados aos canais de sempre.
Durante a maior parte do início
dos anos 2000, o abundante capital chinês e os altos preços de commodities como
petróleo, gás, minerais e produtos agrícolas fizeram com que alguns países
pobres tivessem opções. Por um tempo, eles puderam evitar as armadilhas
draconianas de “reforma” associadas aos empréstimos do FMI: a receita usual de
“austeridade”, incluindo cortes no setor público, privatização de recursos estatais
e destruição de proteções trabalhistas em nome de “liberalização”. Na América
Latina, os governos de esquerda ganharam terreno e a pobreza e a desigualdade
despencaram. Mas o boom das commodities acabou, a economia chinesa cresce mais
lentamente e, depois de anos daquilo que deve ter sido uma dolorosa constrição,
o FMI voltou com as mesmas velhas e desacreditadas soluções.
As elites locais ficaram felizes
em jogar junto, atacando suas próprias populações para manter o dinheiro
fluindo. Em março, o presidente equatoriano Lenín Moreno assinou um acordo com
o FMI para um empréstimo de 4,2 biliões de dólares e, em outubro, conforme
acordado, cortou os salários do setor público e os subsídios aos combustíveis,
fazendo com que o preço do diesel dobrasse – e levando milhares de
equatorianos, principalmente indígenas, às ruas. (Moreno logo fugiu da capital
e concordou em abandonar o pacote de austeridade). No Líbano, o
primeiro-ministro Saad al-Hariri anunciou uma série de novos impostos ao
consumidor – combustível, tabaco e telefonemas feitos por meio de serviços de
mensagens na Internet – como parte de um pacote de redução de déficit exigido
por credores estrangeiros para garantir um empréstimo de 11 biliões de dólares.
Após 12 dias de protestos, nos quais participou cerca de um quarto da população
do Líbano, Hariri renunciou. As manifestações não cessaram.
O mesmo modelo aplica-se mesmo em
países onde o FMI e o Banco Mundial estão proibidos de fazer negócios: o Irão,
vítima por quatro décadas de sanções americanas, adotou há anos a série usual
de medidas de “austeridade”. Se fracassaram amplamente em fornecer a panaceia
económica que prometeram, elas seguramente amorteceram a elite, transferindo o
sofrimento para as classes consideradas dispensáveis. Até que isso não foi mais
possível.
Dignidade é uma coisa curiosa:
depois de recuperá-la, fica ainda mais difícil desistir. As demandas dos
manifestantes expandiram-se em quase todos os lugares, muito além da indignação
original que as desencadeou. Em Hong Kong, os manifestantes rapidamente
determinaram que a retirada do projeto de extradição não era suficiente.
Pede-se também sufrágio universal. (Metade dos assentos no Conselho Legislativo
da cidade são eleitos diretamente pelos “eleitores funcionais”, como banqueiros,
fabricantes e incorporadores; os custos de moradia são mais altos do que em
qualquer lugar do mundo). No Chile, as demandas dos manifestantes expandiram-se
da reversão de tarifas do transporte até o fim da Constituição da era Pinochet.
(Parece que eles terão os dois – Piñera reverteu o aumento da tarifa e
concordou com um referendo para uma nova Constituição.)
No Líbano, os manifestantes estão
debatendo se seu movimento conta como uma revolução. (Não deveria surpreender
que tais protestos ferozes tenham surgido em Beirute, Hong Kong e Chile, alguns
dos lugares mais privatizados do planeta). No Sudão, um levante que começou
quando o governo de Omar al-Bashir cortou os subsídios ao trigo e aos
combustíveis – “por sugestão de parceiros financeiros internacionais”, segundo
o jornal New York Times – acababou derrubando seu regime de 30 anos e
ainda não cessou. Também no Haiti, os protestos começaram mais de um ano atrás,
quando o presidente Jovenel Moïse elevou vertiginosamente os preços dos
combustíveis para agradar o FMI. Os manifestantes logo exigiram a renúncia do
Moïse, apoiado pelos EUA, e seguem com essa reinvindicação.
É difícil não notar que não
apenas no Haiti, mas em pelo menos meia dúzia de países, do Equador ao
Zimbábue, os protestos foram desencadeados por aumentos no preço da gasolina.
Não é segredo que temos que começar a nos retirar imediatamente dos
combustíveis fósseis, se quisermos ter alguma esperança de preservar alguma
versão suportável da vida humana na Terra, mas embora quase todos esses países
tenham sido afetados pela crise climática – e seus os cidadãos mais vulneráveis
são os que mais sofrem – esses
aumentos de preços não eram para reduzir emissões. O FMI frequentemente vincula
empréstimos a cortes nos subsídios à energia, e os impostos sobre combustíveis
são uma maneira fácil, embora regressiva, de custear a dívida pública. São duas
táticas para tirar dos pobres e de todos aqueles que não se beneficiaram dos
favores do Estado, para socorrer os que tiraram proveito.
Do outro lado do espectro global,
os países ricos da Europa tiveram protestos diretamente ligados à política
climática – ou porque os governos estão fazendo muito pouco, como no Reino
Unido, ou porque as medidas que estão adotando distribuem desigualmente a dor,
como na Holanda e a Alemanha. Lá, os agricultores reagiram às restrições às
emissões de pesticidas e nitrogênio, bloqueando as rodovias com milhares de
tratores. Já na França, um imposto sobre combustíveis com motivação ambiental,
associado a cortes nos impostos para os ricos, produziu mais de um ano de
confitos nas ruas.
De ambos os lados, as lições aqui
são muito claras. Primeiro, qualquer tentativa de enfrentar a crise climática
que também não atenda às necessidades básicas da esmagadora maioria dos
habitantes do planeta fracassará catastroficamente. E segundo, essas
necessidades básicas incluem não apenas comida, saúde e moradia, mas também
dignidade e formas de solidariedade que o sistema atual faz de tudo para
destruir.
É de se admirar que tantas
revoltas, simultâneas, mal mereçam uma menção nos noticiários da TV? No início
deste mês, a romancista Dominique Eddé escreveu sobre os levantes populares no
Líbano que é “como se centenas de milhares de pessoas solitárias tivessem
descoberto ao mesmo tempo, após uma hibernação sem fim, que não estavam
sozinhas”. Se examinarmos bem, a mesma coisa está acontecendo em todo o mundo.
As pessoas despertam juntas. Olham em volta. E descobrem que todo mundo está,
aos poucos, saindo de um longo sono.
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