quinta-feira, 19 de dezembro de 2019

Portugal | Os que pagam mas não são donos disto tudo


Anselmo Crespo | TSF | opinião

 “Quem paga o excedente orçamental são os contribuintes." A frase é de Mário Centeno, durante a apresentação do Orçamento do Estado para 2020. Num misto de enfado e indignação, o ministro das Finanças responde com a honestidade possível aos que o criticam por aplicar ao país uma das maiores cargas fiscais de sempre, enquanto deixa ao Estado uma almofada financeira de 0,2%. Quem se atreve a questionar tamanho feito se esta é a primeira vez, em democracia, que Portugal alcança um superavit? Quem são os ingratos que não valorizam e se sentem orgulhosos por partilharem a mesma nacionalidade do CR7 das Finanças?

Os orçamentos, tal como a vida, fazem-se de opções. E, no Orçamento do próximo ano, o Governo fez três grandes opções: investir nos transportes públicos, atirar uma mão cheia de dinheiro para a saúde - que, antes das eleições, não tinha um problema de suborçamentação, mas agora já tem - e ficar na história como o primeiro executivo a alcançar um excedente orçamental. É difícil compreender como é que um país que tem uma dívida pública tão elevada e uma carga fiscal superior a 35% do PIB opta, ainda assim, por ter um excedente orçamental. É por isso que, se estas escolhas são legítimas, as críticas também o são - e La Palice nunca nos falha nestas alturas: se é verdade que Roma e Pavia não se fizeram num dia, não é menos verdade que nunca se consegue agradar a gregos e a troianos.


As opções do Governo têm, assim, como consequência deixar quase tudo o resto para trás. A dívida pública não vai descer tanto como seria possível; as empresas vão continuar à espera de um regime fiscal mais competitivo; e os funcionários públicos e pensionistas, que são uma fatia significativa da despesa do Estado, ainda recebem umas migalhas de aumento - para convencer o PCP e o BE a aprovarem o OE -, mas dificilmente ficarão satisfeitos. E o resto dos contribuintes, que passam quase metade do ano a trabalhar para pagar impostos, vão ter que continuar à espera. Sentados, para não se cansarem.

Ou seja, se, na velha máxima das empresas, quem paga manda, na velha máxima dos governos, quem paga pode sempre pagar ainda mais pela ganância e pela ineficiência do Estado. O problema da elevada carga fiscal em Portugal tem pouco a ver com os recordes que bate todos os anos. Porque se a um elevado nível de impostos correspondesse um Serviço Nacional de Saúde digno, uma escola pública de qualidade e acessível a todos, creches públicas, lares de terceira idade ou serviços de cuidados continuados em número suficiente, talvez ninguém em Portugal se importasse de pagar tantos impostos. Se o Estado nos exigisse, a nós contribuintes e às empresas, que pagássemos os nossos impostos a tempo e horas, fosse implacável nos juros de mora e nas multas que aplica, mas usasse para ele próprio a mesma bitola, dificilmente alguém teria motivo para se lamentar. Se o Estado fosse uma pessoa de bem e não deixasse contribuintes e empresas à espera durante meses, se não nos envolvesse a todos numa teia burocrática montada propositadamente para nos dissuadir de uma simples reclamação, talvez nenhum de nós se pudesse queixar da maior carga fiscal de sempre.

Mas não. O mesmo Governo que assume publicamente estar a recolher os louros - até pessoais - do esforço dos contribuintes, recusa-se a fazer o mais óbvio e o mais difícil: tornar o sistema fiscal em Portugal mais simples, mais justo e, sobretudo, mais eficiente. E, já agora, menos oportunista na ilimitada criatividade que o poder político vai revelando para encontrar novas formas de cobrar mais dinheiro aos contribuintes. Eu percebo que dá trabalho, demora tempo e é capaz de render poucos votos. Mas seria um motivo de orgulho tão grande quanto ter um superavit orçamental.

A consequência desta opção - que não é só do Governo de António Costa - é continuarmos a ter um país impróprio para quem trabalha e paga os seus impostos. Um país onde a esmagadora maioria da população ativa se sente numa espécie de prensa, cada vez mais apertada por salários que não crescem - e são, tantas vezes, indignos - e uma carga fiscal cada vez mais impossível de suportar. Um país onde quem paga não é dono disto tudo e sente-se, tantas vezes, entregue à sua própria sorte.

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