A realidade da situação da Líbia
está para lá do que possam conceber as imaginações mais treinadas em tentar
perceber os sentidos dos desenvolvimentos na arena internacional.
José Goulão | AbrilAbril | opinião
A herança caótica deixada pela
agressão da NATO contra a Líbia e que se aprofunda há quase nove anos está a
degenerar numa situação aterradora de guerras cruzadas, motivadas por múltiplos
interesses, capaz de fazer explodir alianças político-militares, afinidades
religiosas e relações institucionais – com repercussões em todo o panorama
internacional. O início, no dia de Natal, da transferência de terroristas da
Al-Qaeda da Síria para território líbio, de modo a reforçar as forças do
governo de Tripoli reconhecido pela ONU e a União Europeia, é apenas um dos
muitos movimentos em curso na sombra dos holofotes mediáticos. E a Turquia
acaba de aprovar o envio de tropas regulares para a Líbia.
A realidade da situação da Líbia
está para lá do que possam conceber as imaginações mais treinadas em tentar
perceber os sentidos dos desenvolvimentos na arena internacional. Habituada às
notícias quase rotineiras relacionadas com os movimentos migratórios nas costas
líbias e aos altos e baixos da guerra das tropas do governo de Benghazi contra
as forças do executivo de Tripoli, a opinião pública mundial não faz a menor
ideia do que está a acontecer. E do que pode vir a suceder de um momento para o
outro.
A Líbia deixada pela guerra de
destruição conduzida pela aliança entre a NATO e grupos terroristas islâmicos
do universo Al-Qaeda/Isis tem actualmente três governos, além de um xadrez de
zonas de influência controladas por milícias armadas correspondentes a facções
tribais, tendências religiosas ou simples negócios de oportunidade, à cabeça
dos quais estão o contrabando de petróleo e o tráfico de seres humanos.
Haftar,
à frente das tropas do chamado «Exército Nacional Líbio»; e um governo
instalado no hotel Rixos, em Tripoli, formado pela Irmandade Muçulmana e do
qual se diz que ninguém reconhece mas tem muitos apoios.
Nos últimos meses, a ofensiva das
tropas do marechal Haftar chegou às imediações de Tripoli mas não conseguiu
tomar a capital, apesar dos sangrentos bombardeamentos. Nos bastidores desta
guerra diz-se que nenhum dos beligerantes está em condições de levar a melhor,
esgotando-se num conflito sem solução à vista.
Uma guerra internacional
A guerra está num impasse, o caos
e a ingovernabilidade agravam-se, mas não existe qualquer esforço de
entendimento entre as facções líbias. Pelo contrário, cada centro de poder tem
vindo a ser reforçado no quadro das perspectivas de continuação do conflito –
porque não se trata de uma guerra civil, mas de uma guerra internacional.
No dia de Natal, como já se
escreveu, começou a deslocação de grupos terroristas filiados na Al-Qaeda
da província de Idlib, na Síria, para a Líbia. A movimentação é patrocinada
pela Turquia, que deixou claro aos mercenários islâmicos que a única
possibilidade de se salvarem da ofensiva final das tropas governamentais sírias
é abandonarem as posições que ainda ocupam e, de certa forma, regressarem às
origens. Recorda-se que grande
parte dos terroristas que combateram na Síria contra o governo de Damasco foram
transportados da Líbia, onde estiveram ao serviço da coligação com a NATO.
A operação iniciada no Natal foi
montada pela Turquia com a colaboração da Tunísia: o presidente Erdogan acordou
com o seu homólogo tunisino, Kais Saied – apoiado pela Irmandade Muçulmana – a
utilização do porto e do aeroporto de Djerba para transporte dos grupos armados
e material militar em direcção a Tripoli e Misrata, onde irão engrossar as
fileiras do Governo de Unidade Nacional (GUN).
Em 15 de Dezembro, o presidente
turco recebera em Istambul o chefe do GUN, al-Sarraj, a quem prometeu a entrega
de drones e blindados ao exército às ordens do governo reconhecido pela ONU e a
União Europeia; o legislativo turco acaba de aprovar o envio de forças
militares regulares para a Líbia. Ao mesmo tempo, a Turquia acelerou o
processo de produção de seis submarinos militares, encomendados à Alemanha.
Choques petrolíferos
A Turquia foi um dos países aos
quais o governo de Tripoli pediu auxílio quando se iniciou a ofensiva das
forças de Khalifa Haftar. Al-Sarraj dirigiu-se também à Argélia, Itália, Reino
Unido e Estados Unidos. Sabe-se, entretanto, que Washington está de bem com
todos os governos da Líbia e vê com muito bons olhos a continuação do conflito.
Não existem dúvidas, porém, de
que foi a Turquia quem mais rápida e concretamente respondeu aos apelos do
governo instalado em Tripoli.
Há razões que explicam porquê.
Erdogan revelou que assinou um acordo de princípio com al-Sarraj para exploração
conjunta de petróleo no Mediterrâneo, podendo para isso dispor de
instalações portuárias líbias – que se juntam assim às que a Turquia já utiliza
em Chipre, onde ocupa militarmente o norte do país.
Como a Turquia tomou conta, em
termos de exploração petrolífera, das águas territoriais de Chipre que confinam
com o sector ocupado, o acordo com o governo de Tripoli proporciona uma
combinação de Zonas Económicas Exclusivas que atingem águas cipriotas e gregas.
A actuação de Ancara parece violar a Convenção do Direito Marítimo (UNCLOS),
que aliás a Turquia ainda não assinou.
Em 22 de Dezembro, exactamente
uma semana depois do encontro entre Erdogan e al-Sarraj em Istambul, o ministro grego dos Negócios Estrangeiros, Nikos Dendios, foi
directamente a Benghazi encontrar-se com o próprio Khalifa Haftar e
outros representantes do governo local. Depois viajou para o Cairo e para
Chipre.
Atenas exige ao governo de
Tripoli que se retire do acordo de incidência petrolífera e militar com a
Turquia, num quadro em que as relações greco-turcas estão no nível mais elevado
de agressividade de há muito tempo a esta parte.
Sabe-se ainda que a Grécia
pretende accionar a NATO e a União Europeia para que cancelem o reconhecimento
do governo líbio de Tripoli. Em suma, a guerra internacional com epicentro na
Líbia passa pelo meio da NATO e da União Europeia.
Acresce que esta dança política,
diplomática e militar decorre em simultâneo com os movimentos norte-americanos
para usar a Grécia como antídoto à degradação das relações com a Turquia e no
âmbito de um novo quadro de segurança regional para bloquear a Rússia no Mar
Negro.
Isto é, Washington usa um membro
da NATO contra outro membro da NATO e dá um novo passo na estratégia de quebrar
as relações entre Atenas e Moscovo originalmente assentes em afinidades
religiosas que têm vindo a ser deterioradas por conspirações dentro da Igreja
Ortodoxa iniciadas na Ucrânia.
Não é difícil confirmar o
ecumenismo dos Estados Unidos em relação aos governos líbios. Se está ao lado
do executivo de Tripoli, juntamente com a União Europeia, a ONU e a NATO,
também aposta em Benghazi, como se percebe através da estratégia montada com a
Grécia.
O xadrez dos gasodutos
São amplos os cenários de
confrontação a partir da situação líbia. Mais amplos ainda porque os acordos
entre Ancara e o governo de Tripoli vêm potenciar a crise aberta com a
exploração ilegal de petróleo pela Turquia na Zona Económica Exclusiva de
Chipre.
Em causa não estão apenas
interesses cipriotas, mas também da Grécia e de Israel, parceiros na exploração de hidrocarbonetos no Mediterrâneo e
respectiva distribuição através do eixo Griscy (de Grécia, Chipre e Israel) –
ideia fortemente encorajada pelos Estados Unidos para criar vias que permitam à
Europa ter mais alternativas às fontes russas de energia. Trata-se de uma opção
contra a Rússia que atinge também a Turquia, porque põe em causa o gasoduto
turco-russo Turkish Stream.
Deste modo, não é surpreendente
que a Turquia tenha procurado patrocinar o governo líbio de Tripoli.
Surpreendente, em termos
abstractos, deveria ser a declaração do marechal Khalifa Haftar segundo a qual
o governo de Benghazi tem todo o interesse em fazer entendimentos com Israel.
Na realidade, aprofundando a
leitura desta declaração à luz da guerra internacional em torno da Líbia iremos
encontrar países como a Arábia Saudita e o Egipto – muito próximos de Israel –
ao lado de Khalifa Haftar em termos financeiros, políticos e militares; não
espanta que Israel se junte ao grupo por estas afinidades e pelas explicadas
razões energéticas. Através das quais iremos encontrar Estados Unidos Israel,
Grécia e Chipre em oposição a um governo reconhecido por ONU, União Europeia,
NATO e… Estados Unidos.
Sinal dos tempos
As frentes em confronto nesta
guerra da Líbia são um sinal dos tempos. Os tempos em que os conflitos de
interesses inter-capitalistas começam a dissolver linhas que definem alianças
político-militares, coligações de países, associações regionais, afinidades
religiosas, políticas e sistémicas que têm formatado o mundo desde a queda do
Muro de Berlim. Com a particularidade de entidades como a NATO e a União
Europeia não estarem a salvo da turbulência.
Tomemos como exemplo o assustador
caso líbio. Do lado do governo de Tripoli, cuja legitimidade representativa do
país é reconhecida pela ONU e a União Europeia, estão a Turquia, a Tunísia, o
Qatar e terroristas islâmicos do universo Al-Qaeda e Estado Islâmico defendendo
interesses económicos que coincidem com os da Rússia.
Do lado de Khalifa Haftar e do
seu governo de Benghazi estão os Estados Unidos, Israel, Egipto, Arábia
Saudita, Emirados Árabes Unidos, países da União Europeia como Chipre e Grécia,
além de forças de reacção rápida sudanesas, mercenários russos e grupos
terroristas próprios de uma região, a Cirenaica, considerada das mais fortes no
abastecimento do extremismo islâmico internacional. Saif Khaddafi, filho do
dirigente líbio assassinado pela NATO, juntou-se igualmente a Haftar1.
São dados a ter em conta quando a
nova tragédia da Líbia explodir, então já sob os holofotes mediáticos.
Na imagem: Forças aliadas do
governo de Tripoli, apoiado pela ONU, em Sirte, Líbia, a 12 de Março de 2019.CréditosAyman
Al-Sahili / Reuters
Nota
1.Ayesha
Khaddafi, irmã de Saif, apelou aos líbios para repelirem a invasão turca, em
declarações à Jamahiriya Satellite TV: «quando as botas dos soldados
turcos profanarem a nossa terra, adubada pelo sangue dos nossos mártires, se
não houver entre vós que alguém para repelir esta agressão, então deixem o
campo de batalha às mulheres livres da Líbia, e eu estarei entre as primeiras».
Ver Almarsad, 3 de Janeiro de 2020.
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