quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Portugal | Olá, ano judicial. Adeus, ano judicial


Pedro Ivo Carvalho | Jornal de Notícias | opinião

Em janeiro temos o frio, os Reis e a abertura do ano judicial. Se não fosse inconsequente, seria comovente. É um simbólico tiro de partida. Mesmo que a pólvora nas espingardas esteja seca. A lei obriga a cumprir o ritual.

É de lei que todos os que intervêm o façam. Pela ordem determinada. Até há pouco tempo, o ano judicial começava em setembro. Agora não. Coincide com o ano civil. É uma espécie de resolução de ano novo adaptada. E, tal como as resoluções de ano novo que não se cumprem, também na Justiça as promessas solenes sucumbem à passagem do tempo. Até à próxima abertura do ano judicial. Ainda assim, o país das leis e da política engalana-se. Aperta-se numa sala austera rodeada de microfones e câmaras. Abre o peito à nação. Revisita as feridas, repete o diagnóstico, diversifica as curas.

Só que o Portugal aflorado entre as dezenas de "excelentíssimos" e "digníssimos" que enxameiam os discursos passa ao largo da homilia. Como numa igreja, professa-se a fé e espera-se em conjunto por um milagre que não vem. Valha-nos Deus.

Dir-me-ão: a cerimónia de abertura do ano judicial não tem como propósito resolver, por procuração mediática, os problemas do setor. É verdade. Mas sendo ela um ato formal, venerando e um pouco medieval até, acaba por traduzir, na estéril coreografia que se forma, um estado geral de incapacidade, assente numa retórica ensimesmada de quem fala para o umbigo. Para ser ouvido e entendido por outros que falam para a mesma parte do corpo.

Os advogados culpam as leis dos políticos, os juízes culpam a ingerência dos políticos, os procuradores culpam o sistema, os ministros e o presidente da República vestem a toga do conciliador e distribuem esperança num mar de desabafos soturnos. Todos, em conjunto, andam há anos a pedir as mesmas coisas e a concluir pelas mesmas evidências. Foi assim no passado. É assim agora. Será assim no futuro. Não ganhamos nada. Mas também não perdemos nada, se excetuarmos o tempo. Em janeiro temos o frio, os Reis e a abertura do ano judicial. As tradições são uma sentença.

*Diretor-adjunto

- Imagem: em Expresso/Google

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