Pedro Ivo Carvalho
| Jornal de Notícias | opinião
Em janeiro temos o frio, os Reis
e a abertura do ano judicial. Se não fosse inconsequente, seria comovente. É um
simbólico tiro de partida. Mesmo que a pólvora nas espingardas esteja seca. A
lei obriga a cumprir o ritual.
É de lei que todos os que intervêm
o façam. Pela ordem determinada. Até há pouco tempo, o ano judicial começava em
setembro. Agora não. Coincide com o ano civil. É uma espécie de resolução de
ano novo adaptada. E, tal como as resoluções de ano novo que não se cumprem,
também na Justiça as promessas solenes sucumbem à passagem do tempo. Até à
próxima abertura do ano judicial. Ainda assim, o país das leis e da política
engalana-se. Aperta-se numa sala austera rodeada de microfones e câmaras. Abre
o peito à nação. Revisita as feridas, repete o diagnóstico, diversifica as
curas.
Só que o Portugal aflorado entre
as dezenas de "excelentíssimos" e "digníssimos" que
enxameiam os discursos passa ao largo da homilia. Como numa igreja, professa-se
a fé e espera-se em conjunto por um milagre que não vem. Valha-nos Deus.
Dir-me-ão: a cerimónia de
abertura do ano judicial não tem como propósito resolver, por procuração
mediática, os problemas do setor. É verdade. Mas sendo ela um ato formal,
venerando e um pouco medieval até, acaba por traduzir, na estéril coreografia
que se forma, um estado geral de incapacidade, assente numa retórica
ensimesmada de quem fala para o umbigo. Para ser ouvido e entendido por outros
que falam para a mesma parte do corpo.
Os advogados culpam as leis dos
políticos, os juízes culpam a ingerência dos políticos, os procuradores culpam
o sistema, os ministros e o presidente da República vestem a toga do
conciliador e distribuem esperança num mar de desabafos soturnos. Todos, em conjunto,
andam há anos a pedir as mesmas coisas e a concluir pelas mesmas evidências.
Foi assim no passado. É assim agora. Será assim no futuro. Não ganhamos nada.
Mas também não perdemos nada, se excetuarmos o tempo. Em janeiro temos o frio,
os Reis e a abertura do ano judicial. As tradições são uma sentença.
*Diretor-adjunto
- Imagem: em Expresso/Google
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