quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Valores retirados ilegalmente de Angola continuam a ser uma incógnita


Economistas ouvidos pela DW Africa veem fragilidades na ofensiva do Governo angolano contra a corrupção e consideram que o eventual confisco dos ativos de Isabel dos Santos não terá grande impacto na economia.

O impacto económico dos bens arrestados à Isabel dos Santos por decisão da justiça angolana seria uma gota d'água no oceano. E o que pensa o diretor do Centro de Estudos e Investigação Científica da Universidade Católica de Angola (CEIC), Manuel Alves da Rocha.

"Ao falar-se em 1.100 milhões de dólares, montante que ainda não percebi como é que foi atribuído… Isso é uma gota d'água [num oceano]. As necessidades financeiras da economia angolana são eventualmente cem vezes mais do que isso", pondera.

Rocha lembra que continua a ser uma incógnita o montante total de valores retirados ilegalmente do Estado e transferidos de Angola para o exterior.

"Ninguém conseguiu dizer qual é o montante dos bens, o valor do dinheiro que saiu do país ou que foi retirado ilegalmente do Estado - nem o Banco Nacional de Angola, nem o próprio Governo conseguiram fazer isso", destaca o economista.

Foco na família Dos Santos?

O diretor do CEIC lembra que a economia angolana está em recessão contínua desde 2015, e questiona se não existem outras razões que levam o Governo de João Lourenço a focalizar-se na família e aliados políticos de José Eduardo dos Santos.

Já o economista e professor da Universidade de Lisboa, Manuel Ennes Ferreira, considera necessário dar o benefício da dúvida ao Governo face às promessas de reformas que se impõem há muito tempo – especialmente a luta contra a corrupção.

Ennes Ferreira considera que um eventual confisco dos bens de Isabel dos Santos não iria contribuir para um salto significativo da economia angolana. O economista concorda, entretanto, que se a ofensiva legal ficar somente em Isabel dos Santos "passa a ideia de que é uma perseguição à família do ex-Presidente José Eduardo dos Santos".

Para Rocha, o Governo de João Lourenço tem perdido apoio popular na suas ações contra a corrupção. "Ele representou ou pretendeu representar a mudança, uma nova atitude de organização da economia e da sociedade, só que os resultados não estão a aparecer".

Pode haver confisco

Ennes Ferreira questiona-se sobre a recuperação de ativos expatriados por vários integrantes da elite angolana durante o regime de José Eduardo dos Santos. O professor lembra que o Governo referiu que sabia sobre os responsáveis e os valores expatriados, além de anunciar que contava com apoio internacional para recuperar os [ativos].

"Passaram dois anos e pouco e há este fugaz. Eu espero que seja mais do que um fugaz, que é muito forte, este da Isabel dos Santos. As pessoas, no entanto, questionam se há lista e porque ela não é divulgada?" 

Para Ennes Ferreira, é precipitado da parte de Isabel dos Santos afirmar que a decisão judicial de arresto dos seus bens em Angola não terá impacto em Portugal, onde a empresária detém participações em várias empresas. O economista considera que a multimilionária angolana pode contar com os obstáculos jurídicos tanto em Angola como em Portugal, mas em Angola "pode haver uma decisão radical, que é o confisco".

Um eventual arresto de bens de cidadãos angolanos fora de Angola esbarra na legislação vigente no país recetor, porque os capitais aplicados geralmente são feitos de acordo com a legislação.

Assim, o Governo angolano pode detetar que é um dinheiro desviado, mas - do ponto de vista do país de quem recebe os capitais - os trâmites podem obedecer a lei. "Obviamente tem que haver cooperação entre as autoridades judiciais desses países e de Angola. Não vai ser muito simples", diz o professor da Universidade de Lisboa.

Conta-gotas

Ennes Ferreira acha que a ofensiva contra a corrupção do Governo de João Lourenço deveria ser mais concreta e ágil. Para ele, há processos judiciais que dão a sensação de se estar a agir a conta-gotas, "para ir mantendo a chama viva", com o objetivo de dar a entender que se está a "tentar fazer alguma coisa".

Por outro lado, ele considera que há limitações, barreiras e questões de ordem jurídica que limitam a expetativa das pessoas sobre a recuperação dos ativos e bens pertencentes ao Estado. "Alguma coisa de concreto, mas muito concreto, tem que ser feita sob pena de as pessoas começarem a deixar de acreditar", adverte.

Rocha e Ennes Ferreira lançaram nesta quarta-feira (16.01), em Lisboa, o livro "Angola: Dois Olhares Cruzados". Na obra, eles consideram que os desafios que João Lourenço enfrenta são enormes, porque originam-se numa herança que envolve "corrupção, burocracia, deficiência da administração pública, tráfico de influências, ambiente de negócios pouco favorável ao investimento estrangeiro e fraquíssima qualificação do capital humano".

Os autores analisam as fragilidades de Angola para lidar com taxas de pobreza e desemprego elevadas, o desafio demográfico, a taxa de urbanização crescente, a pressão sobre os equipamentos sociais, a gestão do desenvolvimento tecnológico, os circuitos internos de distribuição e comercialização. 

João Carlos (Lisboa) | Deutsche Welle

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