quinta-feira, 16 de janeiro de 2020

Portugal | Descentralização sem regionalização o que é?


A tese enunciada pelo PR de que «se deveria finalizar a descentralização e, só depois, dar passos no sentido da criação das regiões administrativas» acaba por ser uma forma de, defendendo aparentemente a viabilização da regionalização, a liquidar. E de caminho liquidar também a descentralização.


Reacendeu-se o debate acerca da regionalização e, o Presidente da República, que tem vindo a influenciá-lo desde há cerca de três anos, embora nem sempre de forma pública e notória, veio agora subir o tom dizendo, no Congresso da ANMP realizado em novembro 2019, que o carro não devia ir à frente dos bois. Ou seja, que se deveria finalizar a descentralização e, só depois, dar passos no sentido da criação das regiões administrativas.

Com o devido respeito, parece que tratar-se de uma hipótese sem fundamento e contrária à valorização organizacional da administração pública. Se a Constituição não tiver um carácter dúplice, isto é, com coisas que são para cumprir e outras que são para adiar ou esquecer, os obstáculos presidenciais poderiam, até, ser entendíveis como anticonstitucionais

Veja-se que tanto a descentralização como a regionalização estão constitucionalmente consagradas desde o início. É certo que, entretanto, foi possível aos seus adversários armadilhar a lei fundamental criando-lhe uma limitação contranatura que a autocondiciona (!?), fazendo depender a regionalização de um prévio referendo. Mesmo assim, não existe uma gradação hierárquica ou temporal entre um princípio e outro. Isto é, não está escrito que a regionalização só pode e deve ser concretizada depois de estar feita a descentralização.

Mas, pergunta-se, existem razões objetivas para o escalão regional ser concretizado depois de se ter procedido à transmissão total de todas aquelas funções de administração pública que são mais eficiente e eficazmente governáveis pelos municípios e freguesias (subsidiariedade)?

Quanto tempo duraria esse processo de passagem de atributos e competências? Como se avaliariam os custos-benefícios de tal procedimento mais próprio de uma visão produtivista de linha de montagem de bens de equipamento?

Existe, claro, a velha ideia, que já vem do tempo do Estado Novo, de que as populações e as organizações em geral só estariam preparadas para novas formas de governação autónoma depois de serem devidamente educadas. Isto significava e, parece, pode ainda hoje representar, o desejo de fatiar a democracia em doses digeríveis por estômagos fracos.

Tanto a descentralização, como a regionalização, não são conceitos apenas correlacionáveis com a eficiência e eficácia managerialista. São vitais para a vivência democrática e para o desenvolvimento sustentável, embora, só por si, não sejam suficientes.

O processo de descentralização vem-se arrastando no tempo, com alguns períodos mais efervescentes, mas, sempre, com tendência atávica para descambar na metodologia da cenoura e da moca.

É um processo atribulado devido a contradições perenes: a ciosa vontade de quem está no governo do Estado em manter poder executivo e simbólico, deslastrando apenas o que é qualificado como repetitivo e vulgar ou o que pode causar mossa na imagem; a sistemática desproporção entre o nível quantitativo e qualitativo das atribuições descentralizadas e das competências e dos meios (recursos humanos e orçamentais) transferidos; o temor do aparelho administrativo central e desconcentrado em perder poderes e mordomias, e, finalmente, o barriguismo autárquico, defeito que leva alguns eleitos locais a não serem criteriosos naquilo que aceitam fazer, podendo assim contribuir para falsas soluções sempre más para territórios e populações.

O Presidente da República em funções é um mestre na arte de afagar egos, explorar contradições e promover reações e análises emocionais. E, nesta matéria, fazendo-o, não tem vindo a contribuir para o bem do país, desde logo quando minou a possibilidade da concretização das autarquias metropolitanas, quando cria impedâncias à regionalização e, também, quando promove aquela coisa designada por “democratização das CCDR’s”, uma solução híbrida condenada ao fracasso e que, de facto, contribuirá para o adiamento da regionalização. Acrescentar que, a inteligência presidencial afasta as fórmulas trogloditas dos militantes antirregionalização e explora muito bem com as hesitações, sinuosidades e ambições pessoais dos dirigentes dos partidos do centro.

O verdadeiro problema, contudo, é que a visão presidencial que, admite-se, até pode ser bem intencionada, constitui uma falha no diagnóstico e na hipótese resolutiva: nunca haverá suficiência qualitativa e quantitativa numa descentralização feita através de uma enxurrada de atribuições vazadas desde o alto da administração central para as centenas de entidades municipais e milhares de freguesias situadas no terreno, sem qualquer modulação desenvolvida num nível regional intermédio, supramunicipal e democrático.

Existem diversos domínios de ação pública, em particular os serviços prestados através de redes normalizadas de equipamentos dotados com especialistas e tecnologias elaboradas e/ou de bens que exigem redes infraestruturais complexas, que são insuscetíveis de planeamento, investimento e gestão ao nível municipal. Acrescentar que, também no domínio da mobilidade e dos transportes, da política de habitação e do planeamento e gestão territorial, a escala municipal, embora importante, é insuficiente.

E, assim, dizer que fazer depender a regionalização da consumação da descentralização é, na prática, matar as duas.


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