A tese enunciada pelo PR de que
«se deveria finalizar a descentralização e, só depois, dar passos no sentido da
criação das regiões administrativas» acaba por ser uma forma de, defendendo
aparentemente a viabilização da regionalização, a liquidar. E de caminho
liquidar também a descentralização.
Reacendeu-se o debate acerca da
regionalização e, o Presidente da República, que tem vindo a influenciá-lo
desde há cerca de três anos, embora nem sempre de forma pública e notória, veio
agora subir o tom dizendo, no Congresso da ANMP realizado em novembro 2019, que
o carro não devia ir à frente dos bois. Ou seja, que se deveria finalizar a
descentralização e, só depois, dar passos no sentido da criação das regiões
administrativas.
Com o devido respeito, parece que
tratar-se de uma hipótese sem fundamento e contrária à valorização
organizacional da administração pública. Se a Constituição não tiver um
carácter dúplice, isto é, com coisas que são para cumprir e outras que são para
adiar ou esquecer, os obstáculos presidenciais poderiam, até, ser entendíveis
como anticonstitucionais
Veja-se que tanto a descentralização como a regionalização estão constitucionalmente consagradas desde o início. É certo que, entretanto, foi possível aos seus adversários armadilhar a lei fundamental criando-lhe uma limitação contranatura que a autocondiciona (!?), fazendo depender a regionalização de um prévio referendo. Mesmo assim, não existe uma gradação hierárquica ou temporal entre um princípio e outro. Isto é, não está escrito que a regionalização só pode e deve ser concretizada depois de estar feita a descentralização.
Mas, pergunta-se, existem razões
objetivas para o escalão regional ser concretizado depois de se ter procedido à
transmissão total de todas aquelas funções de administração pública que são
mais eficiente e eficazmente governáveis pelos municípios e freguesias
(subsidiariedade)?
Quanto tempo duraria esse
processo de passagem de atributos e competências? Como se avaliariam os
custos-benefícios de tal procedimento mais próprio de uma visão produtivista de
linha de montagem de bens de equipamento?
Existe, claro, a velha ideia, que
já vem do tempo do Estado Novo, de que as populações e as organizações em geral
só estariam preparadas para novas formas de governação autónoma depois de serem
devidamente educadas. Isto significava e, parece, pode ainda hoje representar,
o desejo de fatiar a democracia em doses digeríveis por estômagos fracos.
Tanto a descentralização, como a
regionalização, não são conceitos apenas correlacionáveis com a eficiência e
eficácia managerialista. São vitais para a vivência democrática e para o
desenvolvimento sustentável, embora, só por si, não sejam suficientes.
O processo de descentralização
vem-se arrastando no tempo, com alguns períodos mais efervescentes, mas,
sempre, com tendência atávica para descambar na metodologia da cenoura e da
moca.
É um processo atribulado devido a
contradições perenes: a ciosa vontade de quem está no governo do Estado em
manter poder executivo e simbólico, deslastrando apenas o que é qualificado
como repetitivo e vulgar ou o que pode causar mossa na imagem; a sistemática
desproporção entre o nível quantitativo e qualitativo das atribuições
descentralizadas e das competências e dos meios (recursos humanos e
orçamentais) transferidos; o temor do aparelho administrativo central e
desconcentrado em perder poderes e mordomias, e, finalmente, o barriguismo
autárquico, defeito que leva alguns eleitos locais a não serem criteriosos
naquilo que aceitam fazer, podendo assim contribuir para falsas soluções sempre
más para territórios e populações.
O Presidente da República em
funções é um mestre na arte de afagar egos, explorar contradições e promover
reações e análises emocionais. E, nesta matéria, fazendo-o, não tem vindo a
contribuir para o bem do país, desde logo quando minou a possibilidade da
concretização das autarquias metropolitanas, quando cria impedâncias à
regionalização e, também, quando promove aquela coisa designada por
“democratização das CCDR’s”, uma solução híbrida condenada ao fracasso e que,
de facto, contribuirá para o adiamento da regionalização. Acrescentar que, a
inteligência presidencial afasta as fórmulas trogloditas dos militantes
antirregionalização e explora muito bem com as hesitações, sinuosidades e
ambições pessoais dos dirigentes dos partidos do centro.
O verdadeiro problema, contudo, é
que a visão presidencial que, admite-se, até pode ser bem intencionada,
constitui uma falha no diagnóstico e na hipótese resolutiva: nunca haverá
suficiência qualitativa e quantitativa numa descentralização feita através de
uma enxurrada de atribuições vazadas desde o alto da administração central para
as centenas de entidades municipais e milhares de freguesias situadas no
terreno, sem qualquer modulação desenvolvida num nível regional intermédio,
supramunicipal e democrático.
Existem diversos domínios de ação
pública, em particular os serviços prestados através de redes normalizadas de
equipamentos dotados com especialistas e tecnologias elaboradas e/ou de bens
que exigem redes infraestruturais complexas, que são insuscetíveis de
planeamento, investimento e gestão ao nível municipal. Acrescentar que, também
no domínio da mobilidade e dos transportes, da política de habitação e do
planeamento e gestão territorial, a escala municipal, embora importante, é insuficiente.
E, assim, dizer que fazer
depender a regionalização da consumação da descentralização é, na prática,
matar as duas.
*Em O Diário.info
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