Após quatro décadas de
desinvestimentos estatais, privatizações e competição sem fim, sociedade “sem
fronteiras” está confinada, com medo da morte transmitida pelo próximo.
Reversão da náusea, apenas com a luta política
Gilberto Maringoni, no Blog da Boitempo | em Outras Palavras
Toda a lógica societária à qual
nos acostumamos desde os anos 1980 se desmanchou no ar nas últimas semanas.
Para nós brasileiros, mais exatamente desde o último fim de semana (14/15 de
março), quando os números da disseminação do coronavírus mostraram expansão
geométrica.
A percepção dessa mudança de
lógica é tão abrupta, tão repentina e violenta que afeta nossos sentidos. É
como se estivéssemos num voo acrobático, após dois loopings, um parafuso e um
tunô de barril. Com a cabeça meio girada, você leva alguns segundos para
perceber onde está o horizonte, de que lado estão o céu e a terra e em que
direção ficou a pista para a qual você deve voltar. Isso sem contar, para os
novatos, aquela horripilante sensação do cérebro ter trocado de lugar com o
estômago.
Ao longo de quatro décadas
digerimos a ideia de que a felicidade chegara para todos e haveria um pote de
ouro no fim de um ajuste fiscal. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso
escreveu, em 1995, que assistíamos à chegada de um “Novo Renascimento”.
A crise económica a partir de
2015, a retração brutal no nível de emprego e a queda de renda cortaram um
pouco nossas asas. “Dilma, devolva meu dólar a R$1! Quero voltar à Disney” era
a consigna-símbolo dos órfãos irados dos anos petistas.
Mas nada, nada mesmo tem paralelo
à trombada dos últimos dias. Se já era difícil materializar a festa das viagens
ao exterior – quando até “as empregadas domésticas” lotavam aeroportos (GUEDES,
P. Abertura do ano legislativo 2020, revista Voto, BSB, 2020) –, agora as
restrições chegam a um nível absurdo. Uma tal bolha estourou.
Não posso sair às ruas. Uma praga
invisível me impede. Como a carruagem que vira abóbora de um segundo a outro,
deixei de ser global, deixei de ser nacional e sequer sou local. Não sou mais
do bairro e nem mesmo da rua. Sou de casa, dessas quatro paredes que me isolam,
se eu tiver a sorte de ter casa. “Proibiram-me de percorrer uma cidade, um
ponto; mas deixaram-me o universo inteiro”, confinado ao meu aposento por 42
dias, escreveu Xavier de Maistre (1863-1852) em “Viagem à roda de meu quarto”,
em 1794.
Como ele, estou agora exilado
dentro de casa e cada saída dela é uma expedição aos Martírios, repleta de
perigos. Um parêntesis. Sou um “parasita” com emprego público estável, no dizer
do mesmo Guedes citado acima. Posso ficar no meu canto com relativo conforto.
Nesses dias não tenho de pegar metros, comboios e autocarros lotados para trabalhar.
Fecha parêntesis.
Minha globalização se dá num
espaço menor que a aldeia de Tolstói. Falarei de meu cómodo e serei universal.
Olharei por essa janela virtual na qual talvez você me leia e tentarei ser
global, como toneladas de lixo informativo da grande mídia garantiram
incessantemente.
Minha globalização agora é pautada
por um ser de tamanho infinitesimal que saiu de províncias chinesas, invadiu o
sul da Itália – como os árabes no século IX ou os aliados em 1943 -, ganhou a
França, a Espanha, Portugal, pedaços da Alemanha e cruzou o Canal da Mancha. Em
seguida, atravessou o Atlântico e chegou aos Estados Unidos e ao Brasil.
Meu único consolo mundializado é
saber que a essa hora, alguém em Seul, Teerão, Milão, Paris ou Londres está como
eu, enfurnado atrás da porta de um barraco, de uma kitchinete, de um apartamento
ou de uma casa, apavorado por não saber como se proteger de um espectro que
ronda a Europa e o mundo.
“Estamos em guerra”, afirmou
Emmanuel Macron, na segunda, 16. Britânicos limpam gôndolas de supermercados,
como se aguardassem o próximo ataque da Luftwaffe. Até mesmo o ministro da
Defesa, Fernando Azevedo e Silva, cujas maiores proximidades com campos de
batalha se deram em filmes de Steven Spielberg e Quentin Tarantino, fala em
“guerra”. Uma guerra, essa sim, global. Uma guerra, com a lógica que martelaram
em nossas cabeças por quarenta anos, vista agora da janela virtual de meu
computador.
Uma quantidade oceânica de
empregos será destruída em diversos países. Chuta-se algo em torno de 200
milhões. Chuta-se, pois a pandemia não tem parâmetros ou paralelos conhecidos.
Botequins, restaurantes, cafés, papelarias, armarinhos, livrarias, pequenos e
médios comércios fecharão as portas. A construção civil e a produção entrarão
em recesso.
A última doença planetária dessas
proporções tem exatamente um século. Foi a gripe espanhola de 1918, que
contaminou um quarto da população mundial e matou entre 30 e 50 milhões de
pessoas em pouco mais de um ano. Mesmo assim, aquela influenza se difundiu num
tempo em que o capitalismo ganhava musculatura para uma arrancada de desenvolvimento
no Ocidente, que acabaria na crise de 1929.
Estamos no início do turbilhão,
sem conhecer ao certo o ciclo vital de um vírus que avança sobre territórios
com velocidade inusitada. Projeções sobre sua curva ascendente e descendente
são apenas projeções até agora. A invasão está em andamento. Autoridades agora
dão graças aos céus por termos os SUS, sistema público de saúde que ainda outro
dia queriam privatizar. Só ele pode realizar atendimentos em massa, tratar em
rede e mapear o território dominado pela praga.
A doença potencializa o mergulho
recessivo – e até depressivo – em economias de baixíssimo crescimento. No
Brasil, após cinco anos de recuos sem fim, os próximos meses se afiguram
tétricos.
Branko Milanovic, professor da
London School of Economics escreveu quinta (19) na Foreign Affairs seu
temor de um “colapso social”. Segundo ele:
“O mundo enfrenta a perspectiva
de mudança profunda: um retorno à economia natural – ou seja, autossuficiente.
Essa mudança é exatamente o oposto da globalização. Enquanto a globalização
implica uma divisão do trabalho entre economias díspares, um retorno à economia
natural significa que as nações se moveriam em direção à autossuficiência. Esse
movimento não é inevitável. […] Mas se a crise continuar, a globalização poderá
se desfazer. Quanto mais dura a crise, e quanto mais obstáculos ao livre fluxo
de pessoas, bens e capitais, mais esse estado de coisas parecerá normal. […] O
movimento para a economia natural seria impulsionado não por pressões
económicas comuns, mas por preocupações muito mais fundamentais, a saber,
doenças epidérmicas e medo da morte”.
Confinado ao meu quadrado,
planeio um contato cada vez mais egoísta e mesquinho com o mundo. Não quero
sair, não quero passear, não quero fazer compras. Temo o contágio, a
enfermidade e a morte. Almejo apenas uma caverna com geladeira cheia e sinal
estável de wi-fi. Um individualismo regressivo, medíocre, tacanho e
antissocial. Um ambiente de átomos que não se misturam e não chegam a menos de
um metro e meio dos demais.
É muito precipitado e arriscado
assegurar que algo mudará na geopolítica mundial quando a irradiação virótica
recuar. Ou se mudará a vida em sociedade. Como ficará a percepção de cada um em
relação ao seu semelhante? Se a globalização neoliberal até aqui nos fez ver no
outro alguém a ser derrotado em uma competição sem fim, a desglobalização
conoravírica constrói um outro que pode me contaminar e me levar a morte. Ele
agora é minha negação. Ele, o diverso, o de cor de pele diferente, o pobre, o
invisível que se torna fantasmagórico. O outro a ser eliminado!
A história está em curso. Este
eterno episódio de Black Mirror, um presente distópico em que nos metemos,
passará algum dia, quem sabe. Ninguém tem ideia de como será o mundo para os
que ficarem. A mudança das lógicas espacial, territorial, cultural e afetiva do
que virá a ser um ambiente global que nunca aboliu suas fronteiras para seres
humanos pode ser estrutural. Para melhor ou para pior.
A resposta não virá da medicina,
embora esta seja essencial. Virá da luta política. Virá da possibilidade de
invertermos a lógica da globalização do capital especulativo, repetida até a
náusea, dada como inevitável e imposta como se fosse a oitava maravilha. There
is no alternative! Privatizem, vendam, desinvistam, mercadizem-se.
Esse caminho desembocou no pânico
sem fronteiras. É hora de exaltar tudo o que foi tido como pecado mortal desde
as duas últimas décadas do século passado. Queremos mais Estado, mais espaço e
serviços públicos, mais dinheiro para a produção, para a vida e não para a
farra especulativa. Mais Estado! Mais Estado! Mais Estado! É o caminho para se
romper o quatro por quatro em que a miragem ultraliberal nos enfiou e para
podermos sair da roda dos nossos mesquinhos quartos!
Vencer a bola de ferro home-office precário.
Por um world-office mais justo e menos desigual! Disputemos!
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