sexta-feira, 27 de março de 2020

A globalização sem limites que nos confinou em casa


Após quatro décadas de desinvestimentos estatais, privatizações e competição sem fim, sociedade “sem fronteiras” está confinada, com medo da morte transmitida pelo próximo. Reversão da náusea, apenas com a luta política

Gilberto Maringoni, no Blog da Boitempo | em Outras Palavras

Toda a lógica societária à qual nos acostumamos desde os anos 1980 se desmanchou no ar nas últimas semanas. Para nós brasileiros, mais exatamente desde o último fim de semana (14/15 de março), quando os números da disseminação do coronavírus mostraram expansão geométrica.

A percepção dessa mudança de lógica é tão abrupta, tão repentina e violenta que afeta nossos sentidos. É como se estivéssemos num voo acrobático, após dois loopings, um parafuso e um tunô de barril. Com a cabeça meio girada, você leva alguns segundos para perceber onde está o horizonte, de que lado estão o céu e a terra e em que direção ficou a pista para a qual você deve voltar. Isso sem contar, para os novatos, aquela horripilante sensação do cérebro ter trocado de lugar com o estômago.

Ao longo de quatro décadas digerimos a ideia de que a felicidade chegara para todos e haveria um pote de ouro no fim de um ajuste fiscal. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso escreveu, em 1995, que assistíamos à chegada de um “Novo Renascimento”.

O mundo teria se globalizado, as informações, a circulação de dinheiro e os limites entre países estariam em dissolução. O Estado-nação seria um conceito anacrónico e a TV a cabo, a internet, o multiculturalismo e uma série de quinquilharias simbólicas vieram para mudar nossas vidas para sempre. Passamos a fazer MBAs e a assistir palestras de conselheiros de mercado vindos de fora – hoje chamam-se coaches – a nos ensinar como ser eficientes e competitivos na vida profissional. Haveria até mesmo um estatuto de cidadania global, que a classe média traduzia como a possibilidade de ir a Miami duas vezes ao ano. Com a queda relativa dos preços de passagens aéreas e a expansão do crédito pessoal após o advento do Plano Real – que nos deu acesso a uma moeda mais valorizada que o dólar -, o planeta estaria ao alcance das mãos. E esse planeta falava inglês, obviamente. Os supermercados ficaram abarrotados de marcas que conhecíamos de filmes e, apesar da qualidade dos vinhos ter melhorado, a vida real seguia na periferia daquele admirável mundo novo, com estatais e serviços públicos privatizados.

A crise económica a partir de 2015, a retração brutal no nível de emprego e a queda de renda cortaram um pouco nossas asas. “Dilma, devolva meu dólar a R$1! Quero voltar à Disney” era a consigna-símbolo dos órfãos irados dos anos petistas.

Mas nada, nada mesmo tem paralelo à trombada dos últimos dias. Se já era difícil materializar a festa das viagens ao exterior – quando até “as empregadas domésticas” lotavam aeroportos (GUEDES, P. Abertura do ano legislativo 2020, revista Voto, BSB, 2020) –, agora as restrições chegam a um nível absurdo. Uma tal bolha estourou.

Não posso sair às ruas. Uma praga invisível me impede. Como a carruagem que vira abóbora de um segundo a outro, deixei de ser global, deixei de ser nacional e sequer sou local. Não sou mais do bairro e nem mesmo da rua. Sou de casa, dessas quatro paredes que me isolam, se eu tiver a sorte de ter casa. “Proibiram-me de percorrer uma cidade, um ponto; mas deixaram-me o universo inteiro”, confinado ao meu aposento por 42 dias, escreveu Xavier de Maistre (1863-1852) em “Viagem à roda de meu quarto”, em 1794.

Como ele, estou agora exilado dentro de casa e cada saída dela é uma expedição aos Martírios, repleta de perigos. Um parêntesis. Sou um “parasita” com emprego público estável, no dizer do mesmo Guedes citado acima. Posso ficar no meu canto com relativo conforto. Nesses dias não tenho de pegar metros, comboios e autocarros lotados para trabalhar. Fecha parêntesis.

Minha globalização se dá num espaço menor que a aldeia de Tolstói. Falarei de meu cómodo e serei universal. Olharei por essa janela virtual na qual talvez você me leia e tentarei ser global, como toneladas de lixo informativo da grande mídia garantiram incessantemente.

Minha globalização agora é pautada por um ser de tamanho infinitesimal que saiu de províncias chinesas, invadiu o sul da Itália – como os árabes no século IX ou os aliados em 1943 -, ganhou a França, a Espanha, Portugal, pedaços da Alemanha e cruzou o Canal da Mancha. Em seguida, atravessou o Atlântico e chegou aos Estados Unidos e ao Brasil.

Meu único consolo mundializado é saber que a essa hora, alguém em Seul, Teerão, Milão, Paris ou Londres está como eu, enfurnado atrás da porta de um barraco, de uma kitchinete, de um apartamento ou de uma casa, apavorado por não saber como se proteger de um espectro que ronda a Europa e o mundo.

“Estamos em guerra”, afirmou Emmanuel Macron, na segunda, 16. Britânicos limpam gôndolas de supermercados, como se aguardassem o próximo ataque da Luftwaffe. Até mesmo o ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, cujas maiores proximidades com campos de batalha se deram em filmes de Steven Spielberg e Quentin Tarantino, fala em “guerra”. Uma guerra, essa sim, global. Uma guerra, com a lógica que martelaram em nossas cabeças por quarenta anos, vista agora da janela virtual de meu computador.

Uma quantidade oceânica de empregos será destruída em diversos países. Chuta-se algo em torno de 200 milhões. Chuta-se, pois a pandemia não tem parâmetros ou paralelos conhecidos. Botequins, restaurantes, cafés, papelarias, armarinhos, livrarias, pequenos e médios comércios fecharão as portas. A construção civil e a produção entrarão em recesso.

A última doença planetária dessas proporções tem exatamente um século. Foi a gripe espanhola de 1918, que contaminou um quarto da população mundial e matou entre 30 e 50 milhões de pessoas em pouco mais de um ano. Mesmo assim, aquela influenza se difundiu num tempo em que o capitalismo ganhava musculatura para uma arrancada de desenvolvimento no Ocidente, que acabaria na crise de 1929.

Estamos no início do turbilhão, sem conhecer ao certo o ciclo vital de um vírus que avança sobre territórios com velocidade inusitada. Projeções sobre sua curva ascendente e descendente são apenas projeções até agora. A invasão está em andamento. Autoridades agora dão graças aos céus por termos os SUS, sistema público de saúde que ainda outro dia queriam privatizar. Só ele pode realizar atendimentos em massa, tratar em rede e mapear o território dominado pela praga.

A doença potencializa o mergulho recessivo – e até depressivo – em economias de baixíssimo crescimento. No Brasil, após cinco anos de recuos sem fim, os próximos meses se afiguram tétricos.

Branko Milanovic, professor da London School of Economics escreveu quinta (19) na Foreign Affairs seu temor de um “colapso social”. Segundo ele:

“O mundo enfrenta a perspectiva de mudança profunda: um retorno à economia natural – ou seja, autossuficiente. Essa mudança é exatamente o oposto da globalização. Enquanto a globalização implica uma divisão do trabalho entre economias díspares, um retorno à economia natural significa que as nações se moveriam em direção à autossuficiência. Esse movimento não é inevitável. […] Mas se a crise continuar, a globalização poderá se desfazer. Quanto mais dura a crise, e quanto mais obstáculos ao livre fluxo de pessoas, bens e capitais, mais esse estado de coisas parecerá normal. […] O movimento para a economia natural seria impulsionado não por pressões económicas comuns, mas por preocupações muito mais fundamentais, a saber, doenças epidérmicas e medo da morte”.

Confinado ao meu quadrado, planeio um contato cada vez mais egoísta e mesquinho com o mundo. Não quero sair, não quero passear, não quero fazer compras. Temo o contágio, a enfermidade e a morte. Almejo apenas uma caverna com geladeira cheia e sinal estável de wi-fi. Um individualismo regressivo, medíocre, tacanho e antissocial. Um ambiente de átomos que não se misturam e não chegam a menos de um metro e meio dos demais.

É muito precipitado e arriscado assegurar que algo mudará na geopolítica mundial quando a irradiação virótica recuar. Ou se mudará a vida em sociedade. Como ficará a percepção de cada um em relação ao seu semelhante? Se a globalização neoliberal até aqui nos fez ver no outro alguém a ser derrotado em uma competição sem fim, a desglobalização conoravírica constrói um outro que pode me contaminar e me levar a morte. Ele agora é minha negação. Ele, o diverso, o de cor de pele diferente, o pobre, o invisível que se torna fantasmagórico. O outro a ser eliminado!

A história está em curso. Este eterno episódio de Black Mirror, um presente distópico em que nos metemos, passará algum dia, quem sabe. Ninguém tem ideia de como será o mundo para os que ficarem. A mudança das lógicas espacial, territorial, cultural e afetiva do que virá a ser um ambiente global que nunca aboliu suas fronteiras para seres humanos pode ser estrutural. Para melhor ou para pior.

A resposta não virá da medicina, embora esta seja essencial. Virá da luta política. Virá da possibilidade de invertermos a lógica da globalização do capital especulativo, repetida até a náusea, dada como inevitável e imposta como se fosse a oitava maravilha. There is no alternative! Privatizem, vendam, desinvistam, mercadizem-se.

Esse caminho desembocou no pânico sem fronteiras. É hora de exaltar tudo o que foi tido como pecado mortal desde as duas últimas décadas do século passado. Queremos mais Estado, mais espaço e serviços públicos, mais dinheiro para a produção, para a vida e não para a farra especulativa. Mais Estado! Mais Estado! Mais Estado! É o caminho para se romper o quatro por quatro em que a miragem ultraliberal nos enfiou e para podermos sair da roda dos nossos mesquinhos quartos!

Vencer a bola de ferro home-office precário. Por um world-office mais justo e menos desigual! Disputemos!

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