terça-feira, 17 de março de 2020

EUA: viveiro ideal do COVID-19


António Santos

Os Centros para o Controlo de Doenças e Prevenção (CDC, na sigla inglesa) só pedem que todos os estado-unidenses façam três coisas para evitar a propagação do COVID-19:   1) lavar as mãos;   2) não ir trabalhar doente;   3) se os sintomas persistirem, ir ao médico. Nos EUA, metade da população só terá dinheiro para a primeira.

Comecemos pela segunda recomendação: não ir trabalhar doente. Nos EUA, 32 milhões de trabalhadores não têm qualquer tipo de baixa médica paga. Se tivermos em conta que 45 por cento dos estado-unidenses têm zero dólares nas poupanças e que outros 25 por cento têm menos de 1000 dólares para uma emergência, ficar em casa sem salário durante 14 dias, como sugerem os CDC, é uma impossibilidade financeira que não só pode significar ter de escolher entre pagar a renda da casa ou a alimentação, como pode querer dizer perder o posto de trabalho: não há qualquer legislação que impeça o patrão de despedir um trabalhador em quarentena voluntária.

A terceira recomendação não é menos problemática: nos EUA, 60 milhões de pessoas não têm acesso a cuidados de saúde porque não podem pagar um seguro de saúde. Para esses, um teste do COVID-19 custa em média 1000 dólares. Mesmo para os sortudos com seguro de saúde, o preço do teste varia entre os 200 e os 600 dólares. Milhares de estado-unidenses com sintomas suspeitos queixam-se de que os hospitais lhes estão a negar o teste. Até ao dia 1 de Março, menos de 500 pessoas tinham conseguido fazer o teste.

Quando o número de casos positivos no país já supera os 600, a inoperância do sistema de saúde privado e sucessivamente suborçamentado revela-se em toda a sua inoperância. Desperdiçado um mês inteiro e crítico para a contenção, 8,3 mil milhões de dólares foi todo o dinheiro que o Congresso disponibilizou para enfrentar a epidemia, um décimo do que gasta anualmente com a guerra no Afeganistão. Na costa ocidental, a mais afectada, a crise foi recebida sem qualquer plano de contenção. Na costa oriental faltam milhões de kits de teste e ainda não há qualquer plano para os adquirir. De costa a costa, a especulação agiganta os preços dos produtos recomendados pelo CDC. Mesmo perante a possibilidade de uma pandemia, o capital só vê oportunidades de negócio e mantém-se disposto a lutar por elas, cêntimo a cêntimo, até ao fim.

Pode parecer paradoxal, mas o país mais rico do mundo que disputa a vanguarda global da ciência e da tecnologia é simultaneamente um dos mais frágeis a uma pandemia. É esta opinião que o eminente epidemiologista Michael Mina, da Universidade de Harvard, expressou recentemente num fórum sobre o COVID-19: "O estado do nosso sistema de saúde, a forma como privatizámos tudo, vai afectar seriamente a nossa capacidade. Não vamos conseguir criar novas camas, muito menos novos hospitais, nem sequer conseguimos testar as pessoas".

Ao longo da História, as grandes pandemias nunca derrubaram o domínio de nenhuma classe nem revolucionaram os modos de produção vigentes. O que faz do COVID-19 um vírus altamente contagioso é o capitalismo: engendra as misérias que o propagam; atrofia e desorganiza a ciência que o podia travar; transforma os Estados em meros administradores de negócios e mercados, espantalhos inúteis e incapazes de responder às mais urgentes necessidades da espécie humana.

12/Março/2020

O original encontra-se em www.avante.pt/pt/2415//158454/

Este artigo encontra-se em https://resistir.info/

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