quarta-feira, 4 de março de 2020

Há doenças que valem mais do que outras?


Pedro Tadeu | TSF | opinião, em 02 Março, 2020

Segundo a ONU, há 820 milhões de pessoas que passam fome no mundo e a cada quatro ou cinco segundos há uma pessoa, muitas vezes criança, que morre por não comer o suficiente para sobreviver.

A malária, uma doença que, apesar de estar em queda assinalável, atinge mais de 200 milhões de pessoas no mundo, mata ainda 300 a 400 mil pessoas todos os anos.

A pneumonia mata 16 pessoas por dia em Portugal e mais de 11 mil só na Europa.

As doenças cardiovasculares, as chamadas doenças do coração, matam cerca de 17 milhões de pessoas todos os anos e um estudo recente do Centro de Medicina Baseada na Evidência da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa afirma que até 2036 vamos ter em Portugal um aumento de 70% de mortes devido à insuficiência cardíaca, por causa do efeito do envelhecimento da população.

E o cancro provoca cerca de 26% de todas as mortes no planeta.

Todos este números servem para eu tentar aqui relativizar o medo que parece estar instalado à escala global com os números do coronavírus, uma doença que até agora, desde dezembro/janeiro, provocou cerca de três mil mortes mas que mobilizou já meios de combate e de prevenção gigantescos e que parece estar a assustar as pessoas muito para lá da racionalidade e da prudência saudáveis.

Note-se que em Portugal ainda não há notícia de haver uma pessoa residente infetada (embora seja inevitável que isso vá acontecer) e já li que na semana passada houve em alguns sítios uma corrida à compra de máscaras (que esgotaram rapidamente) a medicamentos para aliviar sintomas e até a desinfetantes nos hipermercados.


Por outro lado, a exigência de resposta que populações afetadas fazem aos respetivos governos é extremamente elevada e os políticos mobilizam tudo o que podem para tentar conter as críticas enquanto os que estão na oposição argumentam que tudo o que está a ser feito é tardio ou insuficiente.

E, claro, nas bolsas os especuladores aproveitaram para venderem as ações que têm e que ainda estavam caras para, daqui a uns meses, quando o pânico passar, voltarem a comprá-las muito mais baratas e assim, mais uma vez, obterem lucros de milhares de milhões enquanto, no meio do processo, provavelmente milhares de empresas terão de se reestruturar e mandar milhões de trabalhadores para o desemprego.

Este comportamento um tanto ou quanto histérico face a uma doença nova contrasta violentamente com a relativa indiferença com que encaramos as mortes, muito mais elevadas, de doenças que já conhecemos e com que nos habituámos a lidar.

Quando, por exemplo, vejo os números de mortos pela fome ou pela malária que citei há pouco, tragédias para as quais a humanidade, em teoria, tem há décadas recursos suficientes para as evitar, percebo de forma dramática como as pessoas dos países mais pobres são simplesmente abandonados pelos países mais ricos, numa gestão global do sistema em que vive a humanidade que é, simplesmente, criminosa.

O coronavírus tem, portanto, este lado irritante de ser uma espécie de doença da moda, que nos mete medo por nos poder matar, mas que não nos confronta com a nossa indiferença perante as crónicas milhões de mortes (há, literalmente, séculos) provocadas por doenças que desvalorizamos porque são dos pobres ou porque nos habituámos a conviver com elas e a aceitá-las como naturais.

O coronavírus mostra que até nas doenças a desigualdade mostra cruelmente o lado perverso da organização da sociedade humana: como em tudo, nem todas as doenças mortais são iguais.

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