quinta-feira, 5 de março de 2020

IMENSA GRATIDÃO!...


Martinho Júnior, Luanda 

Imensa gratidão pública e reconhecimento ao companheiro Mário Motta, ao Página Um e ao Página Global, que possibilitaram a publicação de tantos textos meus e em 2011 e 2014 precisamente este que se junta, “A TRIPLA FRONTEIRA”, que há que por ora evocar!

Lembro-o por que hoje, olhando pelo retrovisor, temos a obrigação de “honrar o passado e a nossa história, construindo no trabalho o homem novo” e por que a “Iª CONFERÊNCIA SOBRE A HISTÓRIA DOS ÓRGÃOS DE INFORMAÇÕES E SEGURANÇA DO ESTADO” é um ponto de partida, no momento tático que se afirmou como ponto de chegada!

O lema escolhido pela Conferência foi “analisando e reflectindo o passado com os olhos do futuro” e no 5º painel os homens de informação e análise mantiveram “sob o olhar silencioso de António Agostinho Neto, corrigir o que está mal e melhorar o que está bem”… algo que tem tudo a ver com “A TRIPLA FRONTEIRA”!

Retomo muitas das abordagens elaboradas desde então e sobretudo as que o foram nos termos da lógica com sentido de vida que dá sequência ao movimento de libertação em África, da geoestratégia para um desenvolvimento sustentável em Angola e no continente africano e à necessidade de cultura de inteligência patriótica, por que o Bié, bem no centro de Angola e no fulcro da região central das grandes nascentes, o recordar é olhar de frente para o desafio da mudança de paradigma, bem no âmago dos pressupostos de “A TRIPLA FRONTEIRA”!

O movimento que está já em curso sobre a história da Segurança do Estado merece abrir-se para os desafios que o são para o estado, para a sociedade, para o povo angolano e acima de tudo, um caminho imprescindível e coerente para as presentes e futuras gerações!

Água é vida e o próprio corpo humano anima-se com 65% de água…

Por isso a decisão de defender o Bié desde 1975, é um mérito de Agostinho Neto que se tornou geoestratégico património comum, tanto mais que uma mudança de paradigma a que se apela, acarreta revitalização, renascimento, mobilização e um enorme esforço colectivo que poderá galvanizar os caminhos da paz, da democracia e da vida em Angola!

O futuro precisa ser construído a partir dos pilares de mérito estabelecidos pelo movimento de libertação em África e, olhando pelo retrovisor, os mentores de mérito estão aí, no tecido humano de Angola, com tantas provas dadas na própria “TRIPLA FRONTEIRA”!...

O exercício de história merece ser alargado, merece ir muito mais para além, passar à doutrina, passar à filosofia, passar à ideologia e isso só será possível no presente e no futuro, se os conceitos trilhados na lógica com sentido de vida respeitarem a Mãe Terra e a água interior de Angola e de África, para que o homem se assuma numa civilização solidária, digna e capaz de sustentabilidade futura! 

Já repararam?

Estamos mesmo a pisar o chão de 

A TRIPLA FRONTEIRA



Martinho Júnior, Luanda 

I - A cidade do Cuito, capital da Província do Bié, é com esse estatuto a cidade mais próxima do centro geográfico de Angola, que coincide com a matriz das grandes nascentes hidrográficas do país.

Durante a guerra que surgiu em sequela da luta contra o “apartheid”, a guerra que se internacionalizou e se encadeou com o descalabro da região central de África (“Iª Guerra Mundial Africana”), por que Savimbi entendeu participar recorrendo à rebelião armada na tentativa da conquista do poder em Angola pela via da “guerra dos diamantes de sangue”, a cidade do Cuito em 1992 foi palco, conjuntamente com as cidades do Huambo e de Malange, dos mais encarniçados combates.

Esse período foi para alguns conhecido como a “guerra das cidades”, mas resultava da aplicação dos conceitos de Mao Tse Tung sobre a guerra revolucionária, que Savimbi aprendeu nas academias chinesas para depois à sua maneira vir aplicar em Angola: “realizar o cerco às cidades a partir do campo, para depois tomá-las”, um projecto que teria de começar pelas capitais provinciais, a fim de, por último, chegar à capital e tomar o poder pela via armada.

O assédio ao Cuito tornou-se mais fácil a Savimbi por várias razões e entre elas destaco a fragilização da posição governamental em função dos Acordos que haviam sido assinados primeiro em Bicesse, fez já 20 anos e depois em Lusaka.

O Governo havia não só desmobilizado enormes efectivos das FAPLA que foram entretanto extintas, mas no Bié desmobilizou por tabela as Forças Especiais da Segurança do Estado, Ministério que acabaria também por ser extinto.

As Forças Especiais acabaram por desempenhar entre 1976 e 1990 um papel contributivo muito forte no reforço geoestratégico na luta contra o “apartheid” e contra as sequelas do colonialismo e “apartheid”.

Em 1977 era Governador Provincial do Bié Faustino Muteka (na actualidade Governador do Huambo) e o movimento de libertação havia decidido com coerência geoestratégica criar as Forças Especiais no Bié, às ordens do Presidente Agostinho Neto e articulando a Defesa e a DISA, para procurar conseguir supremacia no planalto central e fazer face às incursões impulsionadas pelo regime do “apartheid”, manobra que da parte da África do Sul integrava tacitamente os efectivos dum Savimbi que entretanto a administração republicana de Ronald Reagan havia considerado de “freedom fighter” (tal como fizera com os “contras” na Nicarágua e com Bin Laden no Afeganistão).

O Presidente Agostinho Neto, tendo em conta o cenário da luta contra o “apartheid”, aplicou a favor do Estado Angolano a receita similar à que o colonialismo português havia aplicado ao MPLA no Leste, quando pela via da “Operação Madeira” atraiu Savimbi à sua órbita, de forma a que suas forças servissem de “almofada amortecedora” contra a tentativa de progressão do movimento de libertação em direcção ao planalto central; desta feita, as Forças Especiais desempenhavam papel análogo na luta contra o “apartheid”, servindo de “almofada amortecedora” contra as SADF coligadas a Savimbi, desejosos de reverter a seu favor as estratégias no planalto central.

As Forças Especiais, conjuntamente com as FAPLA e a ODP (Organização de Defesa Popular) garantiam, numa região decisiva para o todo nacional, o exercício da soberania e a “última fronteira” em direcção a norte por parte das incursões militares, de inteligência e de reconhecimento dos racistas sul-africanos dentro do território de Angola após o insucesso da “Operação Savannah”.

Os sul-africanos tentaram em vão, em estreita consonância de esforços com Savimbi, vencer essa barreira geo estratégica, na azáfama de, a partir do planalto central, alcançar por fim Luanda, desde a declaração de Independência a 11 de Novembro de 1975 e Savimbi acabaria em 1992 de manter essa tentação, o que influenciou decisivamente na sua decisão de tomada das capitais provinciais após o “encerramento” das FAPLA e das Forças Especiais (neste caso no Bié).

Os sul-africanos durante a década de oitenta chegaram mesmo a desembarcar meios através de vários voos de seus C-130 sobre a parte sul da Reserva Integral do Luando, a leste do curso do rio Cuanza, a fim de “catapultar” as incursões na direcção norte.

Apesar desse desembarque de material resultar no incremento das acções de Savimbi, os resultados foram escassos.

Em 1977 foi formado no Bié o 1º Batalhão das Forças Especiais, unidade que iria impulsionar pouco a pouco a formação de mais Batalhões que comporiam a Brigada e, sob orientação de Faustino Muteka, procedeu-se ao recrutamento para completar o efectivo do Batalhão a partir dos grupos de acção e células do MPLA em todos os Municípios e principais Comunas do Bié.

Como em todos os recrutamentos para a DISA e depois para a Segurança do Estado, só poderiam ter acesso a essas instituições da 1ª República membros do MPLA, o que significa que o efectivo das Forças Especiais só ingressou nelas por que todos os recrutas eram do MPLA.

A ideia da barreira de resistência ao “apartheid” no Bié, para além das concepções geoestratégicas, integrava componentes ideológicas que interagiam com a implementação do próprio Estado Angolano: eram as ideias do movimento de libertação em África que estavam presentes, que eram instrumento de Defesa e Segurança do Estado em formação e continham elementos que davam consistência ao facto de “na Namíbia, no Zimbabwe e na África do Sul estar a continuação da nossa luta”.

Esses conceitos ideológicos nada tinham a ver com ideologias “stalinistas”, identificando-se com os conceitos e estratégias das revoluções na América Latina, bem como com a luta de libertação em África, perseguindo políticas de Não Alinhamento e de exercício sem ingerências da soberania nacional.

Desde os primeiros Acordos sobre Angola, a começar com o de Bicesse há 20 anos, nunca os efectivos que integravam a Segurança do Estado, incluindo as Tropas Guarda Fronteira, as Forças Especiais, ou as Unidades de Luta Contra Bandidos, foram tidos nem achados.

As componentes militares presentes nos Acordos do lado Governamental não integravam agendas relativas aos elementos provenientes da Segurança, muito menos discutiram o que quer que fosse relacionado com esses milhares e milhares de homens que acabaram por ser desactivados sem que houvesse sequer um documento que comprovasse os seus bons serviços ao Estado Angolano…

Essa foi a primeira fronteira do Cuito e os homens da fronteira, aqueles que defenderam a soberania em muito difíceis condições e conjunturas, são merecedores de reconhecimento por parte de todos os angolanos.

A intensidade dos combates foi de tal ordem que os mortos eram enterrados nos quintais e a água era conseguida com as cacimbas (poços) abertos nos mesmos quintais.

Para comer, muitos tinham que romper as linhas que cercavam a cidade e antes da aurora arrancar, os alimentos disponíveis nos campos circundantes, regressando às suas trincheiras.

Apesar de terem sido desactivados sem sequer merecer um documento, sem terem qualquer suporte e apoio, votados ao abandono, muitos elementos das Forças Especiais participaram por sua livre vontade e iniciativa na batalha integrando o lado governamental e foram muito importantes na resistência que o Estado Angolano ofereceu a Savimbi no Cuito.


II - A segunda fronteira é a que se faz sentir no presente, aquela que marca o início da reconstrução sobre as feridas e as cinzas do passado com os olhos postos no futuro.

O Cuito foi deixado praticamente em escombros por que as linhas de contacto entre as forças estiveram dentro da cidade, pelo que agora subsiste o desafio de ultrapassar o passado, vencendo traumas, preconceitos e reconstruindo.

O que tive a oportunidade de constatar, é que apesar de tudo se está a superar as expectativas no que diz respeito à recuperação de infra estruturas e estruturas, com o equipamento administrativo e social a merecer uma atenção prioritária.

A capital do Bié está limpa, bastante funcional, as escolas estão a abarrotar de alunos e, apesar de ser tanto o que há a realizar na agricultura e na indústria, há sinais de empreendimento nos mais diversos níveis sociais, esbatendo-se os desequilíbrios humanos, que são muito mais palpáveis em Luanda.

No que diz respeito aos alimentos, uma parte dos frescos é já de produção local (carne, hortícolas, grãos e fuba).

Impactos de outras culturas existem e tive a oportunidade num artigo anterior, de destacar o emprego disseminado de motorizadas de baixo custo de origem asiática no sistema preferencial de transporte de pessoas, coisa que nunca existiu em tal escala mesmo em cidades como Benguela, onde a bicicleta foi sempre rainha.

Estive agora numa das posições dentro do Cuito muito próximo do Palácio Governamental, que marcaram a divisória entre as forças em combate em 1992: dum lado está um prédio inteiramente recuperado, que ainda hoje é a maior construção da cidade, do outro está o esqueleto dum edifício em escombros ainda por recuperar e com evidentes marcas dos combates.

Por toda a cidade ainda há alguns edifícios por recuperar, mas têm dono que só não se conseguiram meter em obras por que estão descapitalizados.

Ao aproximarmo-nos do décimo aniversário do Acordo de Luena, que ocorrerá no próximo ano, a maior parte da estrutura do Cuito está recuperada, a funcionar de forma satisfatória, com a cidade indiciando vontade de crescer e de viver.

O Caminho de Ferro de Benguela já começou a recuperar os troços dentro da Província: o novo assentamento da linha, que será feito do Lobito à fronteira, já entrou nas áreas do Município do Chinguar, podendo até ao final do ano abranger os troços a leste, pelo menos até à ponte sobre o rio Cuanza.

Quando os comboios começarem a circular, um novo impulso será dado ao planalto central do país e às comunidades ao longo da linha, com reflexos também, como é óbvio, nas capitais Provinciais do interior, cidade do Cuito incluída.

Até 2015 a segunda fronteira estará consolidada, com particular realce para a reconstrução e a caminho duma relativa estabilidade emocional e humana, apesar da lógica capitalista que se impôs ao país com tantos desequilíbrios.


III - A terceira fronteira é talvez a mais complexa, mas a mais decisiva, por que ela envolve inteiramente a componente humana, integrando questões históricas, sociopolíticas, económicas e até psicológicas.

As próprias Forças Especiais são disso exponentes: recrutados pelo MPLA nas horas difíceis do “parto” da Independência, sendo os primeiros em muitos combates no âmbito da “almofada amortecedora” contra a coligação Botha-Savimbi, heróis anónimos da batalha do Cuito, os antigos efectivos interrogam-se, por que são reconhecidamente dos últimos a beneficiar com dignidade dos frutos da paz possível que se ergue sobre as cinzas.

Foram muitos os que ficaram pelo caminho, a começar no seu primeiro comandante, Leite, foram muitos os sacrifícios, mas foi esse cimento que deu consistência à sua resistência moral, mesmo em condições tão adversas como aquelas de 1992, quando desactivados não tinham a obrigação perante o próprio Estado que “dar o litro” por ele.

Da boca desses efectivos, pude constatar, não há ressentimentos pelo facto de tantos que estiveram nas trincheiras contra Angola, terem sido de há dez anos a esta parte beneficiários desses frutos, antes deles.

Pelo contrário, eles estão satisfeitos pela paz possível, apesar da sua “travessia no deserto” e, desse modo são a prova de que é possível estabelecer pontes entre a vocação socialista do passado e o que se pretende no quadro do socialismo democrático que não abdique de enquadrar o homem como prioridade.

Eles confirmam que a sua resistência que faz parte da resistência de muitos mais, está no sentido de criar benefícios para todo o Povo Angolano e não em benefício de grupos, por que, conforme dizia Agostinho Neto, “o mais importante é resolver os problemas do povo”.

Para eles, socialismo, mesmo o socialismo democrático, só poderá ser realizável se a prioridade for efectivamente o homem, geração após geração, estabelecendo a corrente a partir do passado histórico e enfrentando as rupturas quando houver que as enfrentar!

A construção da paz, na fronteira humana, só é exequível com a batalha das ideias e com as acções que venham a beneficiar todo o Povo Angolano!

O patriotismo desses combatentes é inquestionável, mas a primeira barreira surge, nesta terceira fronteira, de quem ou pretende fazer esquecer a história, ou de quem a quer contar de acordo com seus próprios interesses ou conveniências.

Entre estes que perfilham este tipo de opções, estão desde tecnocratas de última geração, inteiramente vocacionados às políticas de “mercado”, até a alguns membros do próprio MPLA que sempre tiveram aversão às “linhas da frente” e agora são os primeiros a beneficiar das conjunturas de ausência de tiros e impregnadas com a lógica do capitalismo com políticas de “portas abertas”.


Muitas narrações aliás das batalhas que foram travadas em Angola, estão propositadamente a esquecer do seguinte, na esteira do abandono a que foram votados os efectivos da Segurança do Estado: foram muitas vezes oficiais que pertenciam a essa Instituição que, pela via de reconhecimento, ou pela via da contra inteligência, obtinham os dados indispensáveis para a actuação das FAPLA e por isso mesmo é justo em muitos casos questionar se algumas narrações estão de acordo ou não com o que se passou realmente.

Foi esse o exercício que eu fiz em relação ao que escrevi sobre a batalha do Cuito Cuanavale, cuja parte inicial, a frustração de Mavinga, que resultou em pesadas perdas humanas para Angola, suscita questões sobre as quais ainda não há respostas.

Estas questões são tanto mais sensíveis quanto algumas correntes consideram os efectivos da Segurança do Estado como “funcionários”, quando de facto eles estavam, por imperativos da luta, entre os muitos que não fugiram às primeiras linhas.

Os equilíbrios que perfazem uma paz com justiça social, uma paz socialista que não ponha em causa a democracia, antes pelo contrário a aprofunde no sentido da cidadania e da participação, fazem parte da resistência daqueles que não caem na tentação do capitalismo de tendência elitista que alguns poderosos tentam introduzir em Angola após as refregas.

Aqueles que perfilham o sentido da vida do movimento de libertação não podem nunca esquecer que “o mais importante é resolver os problemas do povo”, efectivamente de todo o Povo Angolano, independentemente de origem, raça, crença, ou de filiação política – esse é o único caminho possível que dá continuidade aos esforços dum MPLA que antes se constituiu em vanguarda e sobre o qual recaem as responsabilidades de vencer todas as fronteiras!

A terceira fronteira é um dos principais desafios presentes e futuros para o MPLA, restando ele demonstrar se está ou não à altura humana de enfrentar esse desafio.

Para lá caminha, dirão alguns, mas perante riscos e desequilíbrios, perante um foço de desigualdades que cresce imparável, os realistas confirmam: “ver para crer como São Tomé!”


Luanda, 26 de Fevereiro de 2020

Imagens do roteiro da Acção Social Para Apoio e Reinserção, ASPAR, em 2011

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