Martinho Júnior, Luanda
Imensa gratidão pública e
reconhecimento ao companheiro Mário Motta, ao Página Um e ao Página Global, que
possibilitaram a publicação de tantos textos meus e em 2011 e 2014 precisamente
este que se junta, “A TRIPLA FRONTEIRA”, que há que por ora evocar!
Lembro-o por que hoje, olhando
pelo retrovisor, temos a obrigação de “honrar o passado e a nossa história,
construindo no trabalho o homem novo” e por que a “Iª CONFERÊNCIA SOBRE A
HISTÓRIA DOS ÓRGÃOS DE INFORMAÇÕES E SEGURANÇA DO ESTADO” é um ponto de
partida, no momento tático que se afirmou como ponto de chegada!
O lema escolhido pela Conferência
foi “analisando e reflectindo o passado com os olhos do futuro” e no 5º painel
os homens de informação e análise mantiveram “sob o olhar silencioso de António
Agostinho Neto, corrigir o que está mal e melhorar o que está bem”… algo que
tem tudo a ver com “A TRIPLA FRONTEIRA”!
Retomo muitas das abordagens
elaboradas desde então e sobretudo as que o foram nos termos da lógica com sentido
de vida que dá sequência ao movimento de libertação em África, da geoestratégia
para um desenvolvimento sustentável em Angola e no continente africano e à
necessidade de cultura de inteligência patriótica, por que o Bié, bem no centro
de Angola e no fulcro da região central das grandes nascentes, o recordar é
olhar de frente para o desafio da mudança de paradigma, bem no âmago dos
pressupostos de “A TRIPLA FRONTEIRA”!
O movimento que está já em curso
sobre a história da Segurança do Estado merece abrir-se para os desafios que o
são para o estado, para a sociedade, para o povo angolano e acima de tudo, um
caminho imprescindível e coerente para as presentes e futuras gerações!
Água é vida e o próprio corpo
humano anima-se com 65% de água…
Por isso a decisão de defender o
Bié desde 1975, é um mérito de Agostinho Neto que se tornou geoestratégico
património comum, tanto mais que uma mudança de paradigma a que se apela,
acarreta revitalização, renascimento, mobilização e um enorme esforço colectivo
que poderá galvanizar os caminhos da paz, da democracia e da vida em Angola!
O futuro precisa ser construído a
partir dos pilares de mérito estabelecidos pelo movimento de libertação em
África e, olhando pelo retrovisor, os mentores de mérito estão aí, no tecido
humano de Angola, com tantas provas dadas na própria “TRIPLA FRONTEIRA”!...
O exercício de história merece
ser alargado, merece ir muito mais para além, passar à doutrina, passar à
filosofia, passar à ideologia e isso só será possível no presente e no futuro,
se os conceitos trilhados na lógica com sentido de vida respeitarem a Mãe Terra
e a água interior de Angola e de África, para que o homem se assuma numa
civilização solidária, digna e capaz de sustentabilidade futura!
Já repararam?
Estamos mesmo a pisar o chão de
A TRIPLA FRONTEIRA
Martinho Júnior, Luanda
I - A cidade do Cuito, capital da
Província do Bié, é com esse estatuto a cidade mais próxima do centro
geográfico de Angola, que coincide com a matriz das grandes nascentes
hidrográficas do país.
Durante a guerra que surgiu em
sequela da luta contra o “apartheid”, a guerra que se internacionalizou e se
encadeou com o descalabro da região central de África (“Iª Guerra Mundial
Africana”), por que Savimbi entendeu participar recorrendo à rebelião armada na
tentativa da conquista do poder em Angola pela via da “guerra dos diamantes de
sangue”, a cidade do Cuito em 1992 foi palco, conjuntamente com as cidades do
Huambo e de Malange, dos mais encarniçados combates.
Esse período foi para alguns
conhecido como a “guerra das cidades”, mas resultava da aplicação dos conceitos
de Mao Tse Tung sobre a guerra revolucionária, que Savimbi aprendeu nas
academias chinesas para depois à sua maneira vir aplicar em Angola: “realizar o
cerco às cidades a partir do campo, para depois tomá-las”, um projecto que
teria de começar pelas capitais provinciais, a fim de, por último, chegar à
capital e tomar o poder pela via armada.
O assédio ao Cuito tornou-se mais
fácil a Savimbi por várias razões e entre elas destaco a fragilização da
posição governamental em função dos Acordos que haviam sido assinados primeiro
em Bicesse, fez já 20 anos e depois em Lusaka.
O Governo havia não só
desmobilizado enormes efectivos das FAPLA que foram entretanto extintas, mas no
Bié desmobilizou por tabela as Forças Especiais da Segurança do Estado,
Ministério que acabaria também por ser extinto.
As Forças Especiais acabaram por
desempenhar entre 1976 e 1990 um papel contributivo muito forte no reforço
geoestratégico na luta contra o “apartheid” e contra as sequelas do
colonialismo e “apartheid”.
Em 1977 era Governador Provincial
do Bié Faustino Muteka (na actualidade Governador do Huambo) e o movimento de
libertação havia decidido com coerência geoestratégica criar as Forças
Especiais no Bié, às ordens do Presidente Agostinho Neto e articulando a Defesa
e a DISA, para procurar conseguir supremacia no planalto central e fazer face
às incursões impulsionadas pelo regime do “apartheid”, manobra que da parte da
África do Sul integrava tacitamente os efectivos dum Savimbi que entretanto a
administração republicana de Ronald Reagan havia considerado de “freedom
fighter” (tal como fizera com os “contras” na Nicarágua e com Bin Laden no
Afeganistão).
O Presidente Agostinho Neto,
tendo em conta o cenário da luta contra o “apartheid”, aplicou a favor do
Estado Angolano a receita similar à que o colonialismo português havia aplicado
ao MPLA no Leste, quando pela via da “Operação Madeira” atraiu Savimbi à sua
órbita, de forma a que suas forças servissem de “almofada amortecedora” contra
a tentativa de progressão do movimento de libertação em direcção ao planalto
central; desta feita, as Forças Especiais desempenhavam papel análogo na luta
contra o “apartheid”, servindo de “almofada amortecedora” contra as SADF
coligadas a Savimbi, desejosos de reverter a seu favor as estratégias no
planalto central.
As Forças Especiais,
conjuntamente com as FAPLA e a ODP (Organização de Defesa Popular) garantiam,
numa região decisiva para o todo nacional, o exercício da soberania e a “última
fronteira” em direcção a norte por parte das incursões militares, de
inteligência e de reconhecimento dos racistas sul-africanos dentro do
território de Angola após o insucesso da “Operação Savannah”.
Os sul-africanos tentaram em vão,
em estreita consonância de esforços com Savimbi, vencer essa barreira geo
estratégica, na azáfama de, a partir do planalto central, alcançar por fim
Luanda, desde a declaração de Independência a 11 de Novembro de 1975 e Savimbi
acabaria em 1992 de manter essa tentação, o que influenciou decisivamente na
sua decisão de tomada das capitais provinciais após o “encerramento” das FAPLA e
das Forças Especiais (neste caso no Bié).
Os sul-africanos durante a década
de oitenta chegaram mesmo a desembarcar meios através de vários voos de seus
C-130 sobre a parte sul da Reserva Integral do Luando, a leste do curso do rio
Cuanza, a fim de “catapultar” as incursões na direcção norte.
Apesar desse desembarque de
material resultar no incremento das acções de Savimbi, os resultados foram
escassos.
Em 1977 foi formado no Bié o 1º
Batalhão das Forças Especiais, unidade que iria impulsionar pouco a pouco a
formação de mais Batalhões que comporiam a Brigada e, sob orientação de
Faustino Muteka, procedeu-se ao recrutamento para completar o efectivo do Batalhão
a partir dos grupos de acção e células do MPLA em todos os Municípios e
principais Comunas do Bié.
Como em todos os recrutamentos
para a DISA e depois para a Segurança do Estado, só poderiam ter acesso a essas
instituições da 1ª República membros do MPLA, o que significa que o efectivo
das Forças Especiais só ingressou nelas por que todos os recrutas eram do MPLA.
A ideia da barreira de
resistência ao “apartheid” no Bié, para além das concepções geoestratégicas,
integrava componentes ideológicas que interagiam com a implementação do próprio
Estado Angolano: eram as ideias do movimento de libertação em África que
estavam presentes, que eram instrumento de Defesa e Segurança do Estado em
formação e continham elementos que davam consistência ao facto de “na Namíbia,
no Zimbabwe e na África do Sul estar a continuação da nossa luta”.
Esses conceitos ideológicos nada
tinham a ver com ideologias “stalinistas”, identificando-se com os conceitos e
estratégias das revoluções na América Latina, bem como com a luta de libertação
em África, perseguindo políticas de Não Alinhamento e de exercício sem
ingerências da soberania nacional.
Desde os primeiros Acordos sobre
Angola, a começar com o de Bicesse há 20 anos, nunca os efectivos que
integravam a Segurança do Estado, incluindo as Tropas Guarda Fronteira, as
Forças Especiais, ou as Unidades de Luta Contra Bandidos, foram tidos nem
achados.
As componentes militares
presentes nos Acordos do lado Governamental não integravam agendas relativas
aos elementos provenientes da Segurança, muito menos discutiram o que quer que
fosse relacionado com esses milhares e milhares de homens que acabaram por ser
desactivados sem que houvesse sequer um documento que comprovasse os seus bons
serviços ao Estado Angolano…
Essa foi a primeira fronteira do
Cuito e os homens da fronteira, aqueles que defenderam a soberania em muito
difíceis condições e conjunturas, são merecedores de reconhecimento por parte
de todos os angolanos.
A intensidade dos combates foi de
tal ordem que os mortos eram enterrados nos quintais e a água era conseguida
com as cacimbas (poços) abertos nos mesmos quintais.
Para comer, muitos tinham que
romper as linhas que cercavam a cidade e antes da aurora arrancar, os alimentos
disponíveis nos campos circundantes, regressando às suas trincheiras.
Apesar de terem sido desactivados
sem sequer merecer um documento, sem terem qualquer suporte e apoio, votados ao
abandono, muitos elementos das Forças Especiais participaram por sua livre
vontade e iniciativa na batalha integrando o lado governamental e foram muito
importantes na resistência que o Estado Angolano ofereceu a Savimbi no Cuito.
II - A segunda fronteira é a que
se faz sentir no presente, aquela que marca o início da reconstrução sobre as feridas
e as cinzas do passado com os olhos postos no futuro.
O Cuito foi deixado praticamente
em escombros por que as linhas de contacto entre as forças estiveram dentro da
cidade, pelo que agora subsiste o desafio de ultrapassar o passado, vencendo traumas,
preconceitos e reconstruindo.
O que tive a oportunidade de
constatar, é que apesar de tudo se está a superar as expectativas no que diz
respeito à recuperação de infra estruturas e estruturas, com o equipamento
administrativo e social a merecer uma atenção prioritária.
A capital do Bié está limpa,
bastante funcional, as escolas estão a abarrotar de alunos e, apesar de ser
tanto o que há a realizar na agricultura e na indústria, há sinais de
empreendimento nos mais diversos níveis sociais, esbatendo-se os desequilíbrios
humanos, que são muito mais palpáveis em Luanda.
No que diz respeito aos
alimentos, uma parte dos frescos é já de produção local (carne, hortícolas,
grãos e fuba).
Impactos de outras culturas
existem e tive a oportunidade num artigo anterior, de destacar o emprego
disseminado de motorizadas de baixo custo de origem asiática no sistema
preferencial de transporte de pessoas, coisa que nunca existiu em tal escala
mesmo em cidades como Benguela, onde a bicicleta foi sempre rainha.
Estive agora numa das posições
dentro do Cuito muito próximo do Palácio Governamental, que marcaram a
divisória entre as forças em combate em 1992: dum lado está um prédio
inteiramente recuperado, que ainda hoje é a maior construção da cidade, do
outro está o esqueleto dum edifício em escombros ainda por recuperar e com
evidentes marcas dos combates.
Por toda a cidade ainda há alguns
edifícios por recuperar, mas têm dono que só não se conseguiram meter em obras
por que estão descapitalizados.
Ao aproximarmo-nos do décimo aniversário
do Acordo de Luena, que ocorrerá no próximo ano, a maior parte da estrutura do
Cuito está recuperada, a funcionar de forma satisfatória, com a cidade
indiciando vontade de crescer e de viver.
O Caminho de Ferro de Benguela já
começou a recuperar os troços dentro da Província: o novo assentamento da
linha, que será feito do Lobito à fronteira, já entrou nas áreas do Município
do Chinguar, podendo até ao final do ano abranger os troços a leste, pelo menos
até à ponte sobre o rio Cuanza.
Quando os comboios começarem a
circular, um novo impulso será dado ao planalto central do país e às
comunidades ao longo da linha, com reflexos também, como é óbvio, nas capitais
Provinciais do interior, cidade do Cuito incluída.
Até 2015 a segunda fronteira
estará consolidada, com particular realce para a reconstrução e a caminho duma
relativa estabilidade emocional e humana, apesar da lógica capitalista que se
impôs ao país com tantos desequilíbrios.
III - A terceira fronteira é
talvez a mais complexa, mas a mais decisiva, por que ela envolve inteiramente a
componente humana, integrando questões históricas, sociopolíticas, económicas e
até psicológicas.
As próprias Forças Especiais são
disso exponentes: recrutados pelo MPLA nas horas difíceis do “parto” da
Independência, sendo os primeiros em muitos combates no âmbito da “almofada
amortecedora” contra a coligação Botha-Savimbi, heróis anónimos da batalha do
Cuito, os antigos efectivos interrogam-se, por que são reconhecidamente dos
últimos a beneficiar com dignidade dos frutos da paz possível que se ergue
sobre as cinzas.
Foram muitos os que ficaram pelo
caminho, a começar no seu primeiro comandante, Leite, foram muitos os
sacrifícios, mas foi esse cimento que deu consistência à sua resistência moral,
mesmo em condições tão adversas como aquelas de 1992, quando desactivados não
tinham a obrigação perante o próprio Estado que “dar o litro” por ele.
Da boca desses efectivos, pude
constatar, não há ressentimentos pelo facto de tantos que estiveram nas
trincheiras contra Angola, terem sido de há dez anos a esta parte beneficiários
desses frutos, antes deles.
Pelo contrário, eles estão
satisfeitos pela paz possível, apesar da sua “travessia no deserto” e, desse
modo são a prova de que é possível estabelecer pontes entre a vocação
socialista do passado e o que se pretende no quadro do socialismo democrático
que não abdique de enquadrar o homem como prioridade.
Eles confirmam que a sua
resistência que faz parte da resistência de muitos mais, está no sentido de
criar benefícios para todo o Povo Angolano e não em benefício de grupos, por
que, conforme dizia Agostinho Neto, “o mais importante é resolver os problemas
do povo”.
Para eles, socialismo, mesmo o
socialismo democrático, só poderá ser realizável se a prioridade for
efectivamente o homem, geração após geração, estabelecendo a corrente a partir
do passado histórico e enfrentando as rupturas quando houver que as enfrentar!
A construção da paz, na fronteira
humana, só é exequível com a batalha das ideias e com as acções que venham a
beneficiar todo o Povo Angolano!
O patriotismo desses combatentes
é inquestionável, mas a primeira barreira surge, nesta terceira fronteira, de
quem ou pretende fazer esquecer a história, ou de quem a quer contar de acordo
com seus próprios interesses ou conveniências.
Entre estes que perfilham este
tipo de opções, estão desde tecnocratas de última geração, inteiramente
vocacionados às políticas de “mercado”, até a alguns membros do próprio MPLA
que sempre tiveram aversão às “linhas da frente” e agora são os primeiros a
beneficiar das conjunturas de ausência de tiros e impregnadas com a lógica do
capitalismo com políticas de “portas abertas”.
Muitas narrações aliás das
batalhas que foram travadas em Angola, estão propositadamente a esquecer do
seguinte, na esteira do abandono a que foram votados os efectivos da Segurança
do Estado: foram muitas vezes oficiais que pertenciam a essa Instituição que,
pela via de reconhecimento, ou pela via da contra inteligência, obtinham os
dados indispensáveis para a actuação das FAPLA e por isso mesmo é justo em
muitos casos questionar se algumas narrações estão de acordo ou não com o que
se passou realmente.
Foi esse o exercício que eu fiz
em relação ao que escrevi sobre a batalha do Cuito Cuanavale, cuja parte
inicial, a frustração de Mavinga, que resultou em pesadas perdas humanas para
Angola, suscita questões sobre as quais ainda não há respostas.
Estas questões são tanto mais
sensíveis quanto algumas correntes consideram os efectivos da Segurança do
Estado como “funcionários”, quando de facto eles estavam, por imperativos da
luta, entre os muitos que não fugiram às primeiras linhas.
Os equilíbrios que perfazem uma
paz com justiça social, uma paz socialista que não ponha em causa a democracia,
antes pelo contrário a aprofunde no sentido da cidadania e da participação,
fazem parte da resistência daqueles que não caem na tentação do capitalismo de
tendência elitista que alguns poderosos tentam introduzir em Angola após as
refregas.
Aqueles que perfilham o sentido
da vida do movimento de libertação não podem nunca esquecer que “o mais
importante é resolver os problemas do povo”, efectivamente de todo o Povo
Angolano, independentemente de origem, raça, crença, ou de filiação política –
esse é o único caminho possível que dá continuidade aos esforços dum MPLA que
antes se constituiu em vanguarda e sobre o qual recaem as responsabilidades de
vencer todas as fronteiras!
A terceira fronteira é um dos
principais desafios presentes e futuros para o MPLA, restando ele demonstrar se
está ou não à altura humana de enfrentar esse desafio.
Para lá caminha, dirão alguns,
mas perante riscos e desequilíbrios, perante um foço de desigualdades que
cresce imparável, os realistas confirmam: “ver para crer como São Tomé!”
Luanda, 26 de Fevereiro de 2020
Imagens do roteiro da Acção
Social Para Apoio e Reinserção, ASPAR, em 2011
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