David North*
O anúncio cínico da administração
Trump de um conjunto de “diretrizes” fraudulentas, que servirão para legitimar
uma rápida reabertura dos negócios e uma volta forçada ao trabalho em condições
inseguras, derruba qualquer pretensão pública de um esforço sistemático e
coordenado dentro dos Estados Unidos para priorizar a saúde e proteger a vida
das pessoas no combate à propagação da pandemia de COVID-19.
A prematura volta ao trabalho que
a administração Trump está organizando levará a incontáveis milhares de mortes,
que poderiam ser evitadas se um programa rigoroso de distanciamento social,
apoiado por um programa massivo de testes e rastreamento de contatos fosse
implementado e sustentado durante os decisivos próximos meses.
Não há qualquer evidência, menos
ainda análise científica, que possa ser dada para justificar o anúncio de
Trump. Epidemiologistas de renome já desafiaram publicamente a validade do
modelo estatístico sendo utilizado pela Casa Branca. Referindo-se às projeções
do Instituto de Métricas e Avaliação em Saúde (IHME, na sigla em inglês) da
Universidade de Washington, a epidemiologista Ruth Etzioni, do Centro Fred
Hutchinson de Pesquisa de Câncer, disse à revista científica STAT: “O fato
de que o modelo IHME continua sendo alterado revela sua falta de confiabilidade
como uma ferramenta preditiva. O fato de que está sendo utilizado para decisões
de política e seus resultados estão sendo interpretados da forma errada é uma
farsa acontecendo diante de nossos olhos”.
O custo humano causado pela
pandemia está sendo enorme. Nas 24 horas que antecederam o anúncio de Trump, o
coronavírus da COVID-19 causou 4.591 mortes nos EUA. O aumento em relação às
2.569 mortes durante o período de 24 horas anterior é de 75%. Nos últimos três
dias, a quantidade de mortes em todo o país subiu de 26 mil para mais de 36
mil.
É amplamente reconhecido que o
número total de mortos é muito maior. A descoberta de corpos de pacientes
idosos em dois diferentes asilos é apenas o exemplo mais terrível da diferença
entre o número de mortos oficial e o real. Neste momento, não há contagem
confiável das pessoas que estão morrendo fora dos hospitais, seja por uma
infecção de COVID-19 não diagnosticada, ou por causas relacionadas à pandemia.
Essa é uma pandemia global. Até o
momento desta publicação, já são 2.216.000 casos e 151 mil mortes. Essas
estatísticas não são mais confiáveis do que aquelas fornecidas pelos EUA. Os
números previamente divulgados já estão sendo revistos para cima.
A ignorância flagrante e o
comportamento criminoso de Trump cobriram o anúncio das diretrizes com uma
atmosfera sociopata e em geral apodrecida que envolve todas as suas declarações
públicas. Porém, suas políticas não são simplesmente aquelas de um indivíduo. A
forma criminosa como as políticas são apresentadas é determinada pelos
interesses económicos e sociais da classe a qual Trump serve.
Para a oligarquia
corporativa-financeira, a pandemia tem sido vista, acima de tudo, como uma
crise económica. Sua principal preocupação, desde o início, não foi a potencial
perda de vidas, mas a desestabilização dos mercados financeiros, a interrupção
do processo de extração de lucro e, é claro, um declínio significativo na
riqueza pessoal dos membros da oligarquia.
Em fevereiro e março, enquanto a
administração Trump minimizava publicamente a gravidade da crise, autoridades
no Departamento do Tesouro e no Federal Reserve trabalhavam em parceria com os
grandes bancos para organizar e implementar um resgate multitrilionário muito
maior do que aquele que foi realizado após o colapso financeiro de 2008.
Durante as primeiras três semanas
de março, as notícias foram dominadas pelo impacto internacional e nacional
crescente da pandemia sobre a saúde pública. A atenção pública foi focada no
drama dos cruzeiros, nas mortes na Itália e nos primeiros casos de infecções no
estado de Washington. A necessidade urgente de implementar quarentenas e fechar
as empresas não essenciais foi, apesar de Trump, amplamente reconhecida.
Em 19 de março, a lei CARES foi
apresentada no Senado. A rápida aprovação do resgate de toda a indústria
financeira foi dada como certa. De fato, os executivos das corporações,
mantidos bem informados pelos seus servos políticos no Congresso dos EUA,
aproveitaram-se da queda em Wall Street para recomprar bilhões de ações
empresariais prevendo o massivo aumento que se seguiria à aprovação final da
lei CARES.
Assim que a lei CARES foi
apresentada, o foco da mídia começou a mudar para uma campanha agressiva pela
volta ao trabalho. Não poderia haver demora. O massivo aumento de capital
fictício - mais de US$ 2 trilhões em dívidas criadas digitalmente - seria
acrescentado ao balanço do Federal Reserve em menos de um mês. Triliões de
dólares adicionais serão acrescentados nos próximos meses. Isso representa, na
análise final, reivindicações sobre o valor real, que devem ser atendidas
através da exploração da potência de trabalho da classe trabalhadora. Quanto
maior a dívida contraída pela criação de capital fictício aprovada pelo
governo, mais urgente será a demanda pelo rápido término das restrições no
processo de extração de lucro.
Assim, em 22 de março, mesmo
quando a lei CARES estava para ser aprovada, Thomas Friedman, o colunista líder
do New York Times, iniciou a campanha pela volta ao trabalho: “Que diabos
estamos fazendo a nós mesmos? Com a nossa economia? Com a nossa próxima
geração?”, exclamou. “Seria essa cura - mesmo por um curto tempo - pior do que
a doença?”.
A última frase forneceu o slogan
para uma campanha que se tornou cada vez mais insistente nas semanas seguintes.
Os argumentos contra a excessiva preocupação com a proteção da vida humana se
tornaram cada vez mais explícitos. Evitando um exame dos interesses
socioeconómicos que haviam impedido uma resposta efetiva à pandemia, o Times começou
a enaltecer os benefícios do sofrimento humano. “Por mais que desejemos, nenhum
de nós pode evitar o sofrimento”, opinou a colunista Emily Esfahani Smith em 7
de abril. “É por isso que também é importante aprender a sofrer.”
No dia 11 de abril, o Times publicou
novas reflexões sobre os benefícios do sofrimento e da morte. Ross Douthat, em
uma coluna intitulada “A pandemia e a vontade de Deus”, convidou os leitores a
considerarem “como o sofrimento se encaixa em um plano providencial”. Outro
artigo, de Simon Critchley, da universidade “The New School” na cidade de Nova
York, declarou que “Filosofar é aprender a morrer. Invocando pretensiosamente a
autoridade de Descartes, Boécio, More, Gramsci, Heidegger, Pascal, T. S. Eliot,
Montaigne, Cícero, Dafoe, Camus, Kierkegaard e mesmo Boccaccio - todos dentro
dos limites de uma coluna de jornal -, esse académico atrevido resumiu a
sabedoria dos séculos aconselhando seus leitores: “Enfrentar a morte pode ser
uma chave para a nossa libertação e sobrevivência”.
A agenda prática brutal sustentando
essas discussões bastante etéreas sobre o sofrimento e a morte encontraram
expressão direta no texto de uma mesa redonda transmitida por videoconferência
organizada pelo Times. Os participantes incluíam Zeke Emanuel, que é
conhecido por defender que os médicos não devem procurar prolongar a vida além
dos 75 anos de idade, e Peter Singer, um professor de bioética na Universidade
de Princeton, cuja defesa da eutanásia para bebés debilitados levou a protestos
após ser nomeado para o cargo na universidade há 20 anos. O Times está
perfeitamente familiarizado com as visões de Singer, dado que escreveu
extensamente há duas décadas sobre a controvérsia gerada por sua chegada à
Princeton.
O texto da discussão da
videoconferência foi postado na edição online da New York Times Magazine em
10 de abril, sob o título “Reiniciar os EUA significa que pessoas morrerão.
Então quando faremos isso? Cinco pensadores pesam escolhas morais em uma
crise”.
Em sua introdução do texto,
o Times afirmou que se tornará necessário aceitar que existe uma
“escolha entre salvar vidas e salvar a economia”. Embora os dois objetivos
possam estar alinhados no curto prazo, “no prazo mais longo, entretanto, é
importante reconhecer que uma escolha vai surgir - e se tornará mais urgente
nos próximos meses, conforme a economia escorrega mais profundamente em uma
recessão”.
Em sua análise da “escolha”,
o Times parte da premissa incontestável de que os interesses
económicos só podem ser aqueles da classe capitalista. O sistema de lucro, a
propriedade privada das forças produtivas e a vasta riqueza pessoal são
imutáveis e eternos. Portanto, a “escolha” requer, inevitavelmente, o
sacrifício da vida humana, especificamente, as vidas dos trabalhadores.
Singer declarou que é impossível
oferecer um “pacote de assistência para todas essas pessoas” por um ano ou 18
meses. “É aí que começaremos a dizer: Sim, pessoas morrerão se abrirmos [a
economia], mas as consequências de não abrirmos são tão severas que talvez nós
tenhamos que fazer isso mesmo assim”.
Naturalmente, nenhum dos
integrantes do painel do Times chamou atenção para o fato de que o
Congresso havia acabado de injetar vários triliões de dólares nos cofres dos
bancos e corporações para salvar os executivos e acionistas. Nem foi apontado
que existem aproximadamente 250 bilionários nos Estados Unidos, que possuem uma
riqueza coletiva de aproximadamente US$ 9 triliões. Se essa riqueza fosse
expropriada e distribuída igualmente entre as 100 milhões de famílias mais
pobres nos EUA, seria fornecida a cada família uma renda mensal de US$ 5 mil
por 18 meses!
É claro que a expropriação dessa
quantia enorme de riqueza privada - que é inteiramente legítima e necessária no
contexto de uma massiva crise social - não é uma opção que o Times e
seus convidados do painel estão preparados para sequer considerar como uma
possibilidade teórica. Porém, elas estão dispostas a aceitar as mortes de
incontáveis milhares como uma questão de necessidade prática, ou seja,
capitalista.
A subordinação da vida ao sistema
de lucro não é limitada aos Estados Unidos. Ela está sendo proclamada como um
princípio universal pelas elites dominantes na Europa. O Neue Zurcher
Zeitung, a voz principal da classe dominante suíça, publicou um artigo ontem
que pergunta:
Você quer viver para sempre? Essa
foi a pergunta que Frederico, o Grande fez aos seus soldados na Batalha de
Kolin em 1757, quando eles foram derrotados pelo inimigo. A mesma pergunta está
novamente sendo feita tendo em vista a relação controversa entre os
contaminados e mortos pelo coronavírus, por um lado, e a população como um todo
e aqueles que sofrem de doenças comuns, pelo outro.
Algumas dessas coisas parecem ser
- literalmente - loucura. Porém, o dano colateral da doença com sua aceitação
excessiva da destruição da economia também provoca toda a questão. Qualquer um
que queira colocar a questão de maneira drástica poderia dizer: Nós escolhemos
o suicídio económico para impedir que pessoas idosas morram alguns anos antes
do que seria esperado em circunstâncias normais.
A defesa de uma política que
aceita, e até mesmo defende a morte dos idosos e dos mais fracos encontra a sua
expressão mais abertamente fascista em um longo artigo publicado em 13 de abril
na revista alemã Der Spiegel. Intitulado “Nós precisamos falar sobre
morrer”, o artigo foi escrito por Bernard Gill, um sociólogo que tem sido
associado ao Partido Verde.
Em um amplo ataque ao desenvolvimento
da ciência, Gill denuncia a “narrativa heróica” que celebrou os grandes
cientistas do século XIX Louis Pasteur e Robert Koch “como heróis que tornaram
os micróbios visíveis, manuseáveis e, portanto, controláveis”. Gill protesta:
Nessa história de criação, os
micróbios são alienígenas, que nos ameaçam e, portanto, nos prendem com o seu
poder e são melhores exterminados. As “nossas” vidas contra as vidas “deles” -
o conhecimento científico e a luta defensiva bem organizada até a vitória final
da higiene, que promete a vida eterna em um ambiente livre de germes.
Porém, isso é uma violação da
natureza. “A nossa vida”, Gill declara, “não é concebível sem a morte”. Porém,
aqueles que buscam conter a infecção de todas as maneiras, também lutam contra a
morte de todas as maneiras.”
Gill defende uma aceitação da
propagação natural da pandemia - baseada no programa de “imunidade de rebanho”
- que vê “a morte como um processo natural que é individualmente doloroso para
aqueles envolvidos, mas, no todo, abre espaço para nova vida”. Com essa
abordagem, Gill defende que “nós aceitamos os micróbios sabendo que a nossa
vida sem a morte é impensável. Nós nos consolamos com a possibilidade de nova
vida”.
O líder nazista, Adolf Hitler,
que cometeu suicídio há 75 anos em seu “bunker” em Berlim, teria concordado
imediatamente com esses argumentos.
Ideias profundamente reacionárias
e desumanas estão circulando na Alemanha. Porém, lá, não menos do que nos EUA,
elas não surgem da psicologia doentia dos indivíduos, mas das necessidades do
sistema capitalista.
A mesma publicação, Der
Spiegel, que fornece um fórum para Gill, alerta que a indústria automotiva
alemã não consegue resistir a um fechamento prolongado.
Quanto mais tempo durar a crise
do coronavírus, mais alto a indústria pedirá que os políticos definam uma data
para o relaxamento dos fechamentos para dar às empresas alguma
previsibilidade...
A indústria automotiva em
particular está enfrentando um teste de força para o qual não há precedentes
históricos. A fim de evitar um colapso, as empresas precisam abrir suas
fábricas novamente nesta primavera [no hemisfério norte].
Também estão envolvidas questões
críticas de competitividade global. A Der Spiegel acrescenta:
Também existem interesses
geoestratégicos. Os executivos das empresas na Europa querem fortalecer o
mercado europeu para estabelecê-lo como um contrapeso aos Estados Unidos e à
China como potências económicas...
Isso é ainda mais verdadeiro
porque a China, onde o coronavírus teve origem, parece estar saindo da crise
mais rápido do que o resto do mundo.
A COVID-19 confronta a humanidade
não apenas com um problema médico-científico, mas também com um desafio
político e social. A resposta das classes dominantes à pandemia do coronavírus
revela que os seus interesses são incompatíveis com o progresso humano e com a
própria sobrevivência da humanidade.
Em seu fracasso ao se preparar
para a pandemia, sua resposta caótica e desorganizada ao coronavírus após o
início do surto, sua subordinação de todas as necessidades sociais aos seus
próprios interesses económicos, sua sabotagem enraizada nacionalmente de todas
as possibilidades de uma resposta global unificada à doença e em sua
justificativa aberta do programa reacionário e neofascista de eutanásia social,
a classe dominante está demonstrando a necessidade do socialismo.
Para que a humanidade sobreviva,
é preciso pôr fim à subordinação da sociedade às elites capitalistas obcecadas
por dinheiro.
David North | World Socialist Web Site
Publicado originalmente em 18 de
abril de 2020
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