Covid-19. "A postura
antissistema de Bolsonaro pode não lhe valer de nada quando a coisa se
descontrolar a sério"
Mais de 190 associações
brasileiras lançaram esta semana um manifesto onde pedem ao Presidente do
Brasil, Jair Bolsonaro, mais medidas de proteção financeira e sanitária para a
população. Um dos impulsionadores da iniciativa explica ao Expresso porque é que
esta tragédia pode mesmo tornar-se maior do que os apoios políticos que
sustentam o "bolsonarismo"
São quase duas centenas as
associações da sociedade civil brasileira que esta semana assinaram um manifesto
contra a forma como o Presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, está a lidar com a
pandemia do coronavírus: ou, de facto, segundo estas associações, contra a
forma como não está a lidar de todo. Neste momento, o Brasil tem 1124 mortes e
mais de 20 mil infectados mas os especialistas acreditam que os números são
muito maiores do que aqueles que estão a ser registados oficialmente,
principalmente devido à falta de testes e aos óbitos que estão a ser registados
sem que a palavra “covid-19” apareça listada como causa de morte.
No manifesto, as associações
escrevem que “a Presidência da República não tem exercido o papel que lhe cabe
de coordenar o enfrentamento da pandemia com medidas sanitárias e com políticas
públicas que garantam uma renda mínima aos trabalhadores e a capacidade das
empresas, principalmente as micro, pequenas e médias, de sobreviverem e
honrarem seus compromissos”.
O professor de Política e
politólogo Benedito Tadeu César, coordenador do Comité em Defesa da Democracia
e do Estado de Direito, grupo que deu início à recolha destas assinaturas,
falou ao Expresso sobre a necessidade de que toda a população brasileira seja
protegida contra uma doença que, no seu entender, o Presidente tende a
“desvalorizar” - no que diz respeito à gravidade da doença mas também quanto
aos impactos económicos no nível de vida das pessoas. “O Presidente diz que o
isolamento social paralisa a economia e que isso é mais prejudicial para as
pessoas do que as consequências da pandemia, porque ficam sem salário e sem
trabalho, mas ele esquece que lhe cabe a ele, enquanto chefe de Estado, pôr de
lado as políticas de austeridade e simplesmente atribuir um rendimento mínimo à
população. Cerca de 50% do Brasil recebe salários de até ao valor do ordenado
mínimo, friso o ‘até’”, diz Tadeu César acrescentando que “o que preocupa
Bolsonaro é que ele sabe que se a economia não recuperar a eleição dele é muito
difícil”.
Nem tudo parece, porém, passar
completamente ao lado do Presidente. Além de
um fundo de dinheiro recuperado aos intervenientes da Operação Lava Jacto e
que deverá ser encaminhado para a saúde, a CNN Brasil dá
conta de uma visita que Bolsonaro fez este sábado a um hospital no
estado de Goiás o que, segundo se lê no site da cadeia, garante que Presidente
está a tratar o assunto com seriedade. Depois de um período turbulento dentro
do governo, em que Bolsonaro e o ministro da Saúde, Henrique Mandetta, se
desentenderam sobre as medidas a tomar no combate a este novo coronavírus, os
dois governantes, escreve a CNN, “cumpriram agenda juntos para mostrar que
existe unidade no governo e que as medidas para controlar os avanços do novo
coronavírus estão sendo tomadas”.
REPRESENTANTE DA HUMAN RIGHT
WATCH DIZ QUE BRASILEIROS ESTÃO “EM PERIGO”
Às vozes indignadas do manifesto
junta-se a de José Miguel Vivanco, diretor do braço da Human Rights Watch na
América do Sul. O responsável pela organização de ajuda humanitária considera
que Bolsonaro está a colocar em risco as vidas dos cidadãos brasileiros:
"Há semanas que Bolsonaro sabota os esforços dos vários estados e do seu
próprio Ministério da Saúde para conter a disseminação da Covid-19, colocando
assim em risco a vida e a saúde dos brasileiros", disse. “Para evitar
mortes evitáveis com esta pandemia, os
líderes devem garantir que as pessoas têm acesso a informações precisas e
apoiadas em provas científicas. O presidente Bolsonaro está a fazer tudo menos
isso”, acrescentou ainda num comunicado divulgado este sábado nas redes sociais
da ONG.
A Justiça brasileira e o
Presidente parecem estar em guerra. A Human Rights Watch também fez um
levantamento de todas as vezes que os tribunais tiveram de desautorizar o
Presidente. A 20 de março, Bolsonaro emitiu uma ordem executiva para retirar
aos estados a autoridade para restringir os movimentos das pessoas. Quatro dias
depois, o Supremo Tribunal revogou essa ordem. A 26 de março, Bolsonaro emitiu
um decreto presidencial que isentava igrejas e casas de jogo dos regulamentos
sanitários emitidos a nível estadual e municipal, classificando-os como
serviços essenciais. No dia seguinte, um tribunal federal suspendeu o decreto,
declarando que violava a lei federal. O tribunal também proibiu o governo de
adotar medidas contra o distanciamento social promulgado pelos estados.
A 23 de março, Bolsonaro emitiu
nova ordem executiva suspendendo os prazos limite para as agências
governamentais responderem a solicitações de informações por parte do público,
incluindo sobre as suas próprias políticas sobre como lidar com a emergência de
saúde. Ou seja, as instituições de salvaguarda da saúde pública não são
obrigadas a dizer ao público o que fazer para que cada brasileiro possa
garantir que está o mais protegido possível contra esta pandemia.
Isso pode ser explicado pelas
novas prioridades que se abateram sobre o país, tendo a política passado para
um papel secundário. Mesmo alguns governadores que apoiaram Bolsonaro, quer na
primeira, quer na segunda voltas das presidenciais - casos de João Dória, de
São Paulo, e Ronaldo Calado, de Goiás - têm tido atritos com o presidente pela
forma “muito relaxada” com a qual ele está a lidar com esta pandemia. Estas
desavenças, considera o professor, mostram que o problema da pandemia no Brasil
está a tornar a ideologia uma factor secundário. “O apoio político esbate-se
porque todo o mundo se vê obrigado a lidar com um vírus potencialmente mortal,
todos, apoiantes e não apoiantes de Bolsonaro, juízes, governadores, e nessa
hora o que toda a gente quer é equipamento, ventiladores, ajuda do Estado. Quem
está do lado de Bolsonaro politicamente está tão chateado quanto os outros”.
A “teimosia” de Bolsonaro,
acredita Tadeu César, mais não é do que o seu compromisso com a imagem de homem
antissistema: “Ele precisa de manter essa posição antissistema, ele tem de ser
contra, ele tem de alimentar isso. Se está o mundo todo a dizer que é preciso
isolamento ele vai dizer que não”.
Desta vez, porém, talvez esta
falha na aceitação de factos científicos não lhe valha de muito: “Se a coisa se
descontrola, e nos sítios mais pobres e com menos cuidados de saúde vai
descontrolar, postura antissistema de Bolsonaro pode não lhe valer de nada”.
Ana França | Expresso
Imagem: Jair Bolsonaro, durante
uma conferência de imprensa em Brasília, a 18 de Março // ANDRE COELHO/GETTY
IMAGES
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