O ditador húngaro Orbán avança perante a inércia da UE |
Governo Orbán aproveita a
pandemia para assumir poderes emergentes por prazo indeterminado, em choque
frontal com os valores da UE. Especialista húngaro em direito analisa perigos
da nova lei e possibilidades de revogá-la.
Em 30 de março, o Parlamento
húngaro, dominado pelo partido Fidesz, do primeiro-ministro Vitkor Orbán,
aprovou um projeto de lei concedendo ao governo poderes de emergência.
Pouco mais tarde, a assim chamada
"lei de capacitação" foi ratificada, permitindo ao PM governar por
decreto, a fim de conter a pandemia de covid-19. Ela não tem prazo de
prescrição e possibilita ao Executivo passar facilmente por cima do Parlamento.
Em meados de abril, o Parlamento
Europeu divulgou uma declaração afirmando que as novas medidas na Hungria são
"incompatíveis com os valores europeus". A Comissão Europeia, braço
executivo da União Europeia, ameaçou Budapeste com uma ação legal.
Orbán insiste que a lei é
essencial à reação do governo à pandemia, e até ao momento Bruxelas não tomou
medidas legais. Nesta quinta-feira (14/05), a comissária da UE para Valores e
Transparência, Vera Jourová, reiterou que a Comissão Europeia está apreensiva e
avalia diariamente "se podemos adotar ações legais".
Os militares são presença constante nas ruas da Hugria, o pretexto é a pandemia |
Gábor Halmai é professor de
Direito Constitucional Comparado no Instituto Universitário Europeu (IUE), em
Florença, Itália. De 1990 a
1996, foi o consultor-chefe do presidente no Tribunal Constitucional Húngaro.
Em entrevista à DW, ele fala sobre os perigos da lei de emergência e as
possibilidades de revogá-la.
DW: Até ao momento, a UE decidiu
não agir contra a muito criticada "lei de capacitação" da Hungria, e
recentemente Viktor Orbán exigiu que os seus críticos se desculpassem. Numa
carta ao grupo Partido Popular Europeu (EPP) – do qual a legenda dele foi
suspensa –, o PM húngaro fala de um "ataque e campanha de desinformação
contra a Hungria, infundados e sem precedentes". O clamor inicial contra a
lei foi injustificado?
Gábor Halmai: No começo de
abril, Vera Jourová deu uma entrevista criticando o governo húngaro sobre a
falha do país, na última década, de acatar o preceito da UE de Estado de
direito. Ao mesmo tempo, enfatizou que não via nenhuma maneira imediata de
contestar a lei de capacitação. O governo húngaro aproveitou essa oportunidade
para atacar seus críticos.
Agora Jourová parece ter mudado
de ideia: numa entrevista recente, ela disse ver numerosas imprecisões e
perigos na lei e nos decretos governamentais impostos através dela. O governo
húngaro reagiu muito zangado e agora está criticando-a, assim como aos que eram
contra a lei desde o começo.
O que a UE poderia fazer se
decidisse agir contra a Hungria?
Há muitas possibilidades legais.
Não existe nenhuma razão real para a Comissão não iniciar um procedimento de
infração, nos termos do Artigo 2º do Tratado da União Europeia – isso
significaria acusar a Hungria de violar os valores básicos da UE. Passados dez
anos, o sistema do país já não é uma democracia, nem segue os valores básicos
da UE. O problema não é a falta de instrumentos legais, mas a falta de vontade
política.
O governo húngaro, em especial a
ministra da Justiça, Judit Varga, criticou a aplicação de "duplos
critérios". Ela alega que na atual crise do coronavírus outros Estados
estão também governando com leis de emergência e restringindo os direitos
fundamentais. Em que a lei húngara difere das leis de emergência de outros países?
Alguns aspectos são exclusivos da
Hungria, não podendo ser comparados às medidas em qualquer outro Estado-membro
da UE ou outro país do mundo. A lei húngara viola a Constituição do país de
diversas formas – uma Constituição que, aliás, só foi aprovada em 2011 com os
votos do atual governo.
A lei não foi só
inconstitucional, mas também supérflua, já que o sistema legal húngaro provê
uma base suficiente para lidar com o coronavírus. Assim, mesmo que Budapeste
argumente que 20 países-membros da UE introduziram leis de emergência, a
húngara simplesmente não era necessária: ela só está lá para dar ao governo
poder ilimitado sem limite de tempo.
Que medidas o governo de Orbán
tomou até agora, usando a lei?
Desde o princípio de abril, foram
expedidos mais de 80 decretos. Um dos primeiros alterou a lei do trabalho,
cancelando toda a proteção para os empregados. Um dos exemplos mais recentes é
um decreto que suspende os regulamentos da UE de proteção de dados. Além disso,
todos os hospitais e aproximadamente 150 companhias estatais e privadas estão
sob controlo militar: a diretoria dessas organizações só pode tomar decisões
empresariais com a aprovação de pessoal militar. Isso não aconteceu em nenhum
outro Estado-membro e é uma violação gritante tanto das leis húngaras como das
da UE.
As autoridades governamentais têm
repetidamente enfatizado que o Parlamento húngaro poderia retirar os poderes de
emergência em qualquer momento. No entanto a coligação de governo controla a
maioria dos assentos. Como é que o órgão poderia revogar a lei?
O argumento do governo húngaro é
muito capcioso. Não me lembro de nenhuma ocasião, na última década, em que o
Parlamento tenha votado contra qualquer proposta governamental importante. Isso
quer dizer que não há a menor hipótese de que este Parlamento, liderado pelo Fidesz,
com seus dois terços de maioria, se vá opor a qualquer medida governamental. E
para revogar a lei é preciso uma maioria de dois terços. Portanto, mesmo que o
governo atual perdesse sua atual supermaioria, nas eleições ou devido à morte
de um deputado – coisa que certamente não desejo –, a lei não poderia ser
revogada.
O Tribunal Constitucional da
Hungria poderia intervir para assegurar que o governo não explore ainda mais
seus novos poderes?
Outros países democráticos da UE
têm pesos e contrapesos entre os poderes, para além do parlamento, que talvez
não seja capaz de controlar o governo: há tribunais constitucionais e supremos ou
presidentes. No caso da Hungria, todos os membros do Tribunal Constitucional
são nomeados ou eleitos pelo Fidesz, eles nunca se pronunciam contra o governo
em qualquer questão política séria.
O presidente da Hungria [János
Áder] é um dos fundadores do Fidesz e um bom amigo de Orbán, ele ratificou a
lei de capacitação em apenas duas horas: foi esse todo o tempo de que precisou
para investigar se ela é política e constitucionalmente aceitável. Como é que
esse presidente se oporia a qualquer coisa que faça o governo?
Os poderes de emergência deveriam
vigorar apenas enquanto dure a crise do coronavírus. No entanto, ninguém sabe
quando ela acabará. Orbán já falou de um segundo surto no terceiro trimestre. A
lei chegou para ficar?
Chegou. Deixe-me recordá-lo: em
2015, durante a crise migratória [quando centenas de milhares de solicitantes
de refúgio e migrantes atravessaram a Hungria], o governo introduziu uma lei de
emergência para a imigração. Ela ainda está em vigor, embora não haja mais
migrantes na Hungria, e as fronteiras estejam fechadas. O governo prorrogou
essa lei a cada seis meses, sendo a última vez em março. Então , eu não
vejo qualquer garantia de que essa situação de emergência vá acabar com o fim
da pandemia.
Felix Schlagwein (av) | Deutsche
Welle
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