domingo, 17 de maio de 2020

"A Hungria já não é uma democracia"

O ditador húngaro Orbán avança perante a inércia da UE
Governo Orbán aproveita a pandemia para assumir poderes emergentes por prazo indeterminado, em choque frontal com os valores da UE. Especialista húngaro em direito analisa perigos da nova lei e possibilidades de revogá-la.

Em 30 de março, o Parlamento húngaro, dominado pelo partido Fidesz, do primeiro-ministro Vitkor Orbán, aprovou um projeto de lei concedendo ao governo poderes de emergência.

Pouco mais tarde, a assim chamada "lei de capacitação" foi ratificada, permitindo ao PM governar por decreto, a fim de conter a pandemia de covid-19. Ela não tem prazo de prescrição e possibilita ao Executivo passar facilmente por cima do Parlamento.

Em meados de abril, o Parlamento Europeu divulgou uma declaração afirmando que as novas medidas na Hungria são "incompatíveis com os valores europeus". A Comissão Europeia, braço executivo da União Europeia, ameaçou Budapeste com uma ação legal.

Orbán insiste que a lei é essencial à reação do governo à pandemia, e até ao momento Bruxelas não tomou medidas legais. Nesta quinta-feira (14/05), a comissária da UE para Valores e Transparência, Vera Jourová, reiterou que a Comissão Europeia está apreensiva e avalia diariamente "se podemos adotar ações legais".


Os militares são presença constante nas ruas da Hugria, o pretexto é a pandemia
Gábor Halmai é professor de Direito Constitucional Comparado no Instituto Universitário Europeu (IUE), em Florença, Itália. De 1990 a 1996, foi o consultor-chefe do presidente no Tribunal Constitucional Húngaro. Em entrevista à DW, ele fala sobre os perigos da lei de emergência e as possibilidades de revogá-la.

DW: Até ao momento, a UE decidiu não agir contra a muito criticada "lei de capacitação" da Hungria, e recentemente Viktor Orbán exigiu que os seus críticos se desculpassem. Numa carta ao grupo Partido Popular Europeu (EPP) – do qual a legenda dele foi suspensa –, o PM húngaro fala de um "ataque e campanha de desinformação contra a Hungria, infundados e sem precedentes". O clamor inicial contra a lei foi injustificado?

Gábor Halmai:  No começo de abril, Vera Jourová deu uma entrevista criticando o governo húngaro sobre a falha do país, na última década, de acatar o preceito da UE de Estado de direito. Ao mesmo tempo, enfatizou que não via nenhuma maneira imediata de contestar a lei de capacitação. O governo húngaro aproveitou essa oportunidade para atacar seus críticos.

Agora Jourová parece ter mudado de ideia: numa entrevista recente, ela disse ver numerosas imprecisões e perigos na lei e nos decretos governamentais impostos através dela. O governo húngaro reagiu muito zangado e agora está criticando-a, assim como aos que eram contra a lei desde o começo.

O que a UE poderia fazer se decidisse agir contra a Hungria?

Há muitas possibilidades legais. Não existe nenhuma razão real para a Comissão não iniciar um procedimento de infração, nos termos do Artigo 2º do Tratado da União Europeia – isso significaria acusar a Hungria de violar os valores básicos da UE. Passados dez anos, o sistema do país já não é uma democracia, nem segue os valores básicos da UE. O problema não é a falta de instrumentos legais, mas a falta de vontade política.

O governo húngaro, em especial a ministra da Justiça, Judit Varga, criticou a aplicação de "duplos critérios". Ela alega que na atual crise do coronavírus outros Estados estão também governando com leis de emergência e restringindo os direitos fundamentais. Em que a lei húngara difere das leis  de emergência de outros países?

Alguns aspectos são exclusivos da Hungria, não podendo ser comparados às medidas em qualquer outro Estado-membro da UE ou outro país do mundo. A lei húngara viola a Constituição do país de diversas formas – uma Constituição que, aliás, só foi aprovada em 2011 com os votos do atual governo.

A lei não foi só inconstitucional, mas também supérflua, já que o sistema legal húngaro provê uma base suficiente para lidar com o coronavírus. Assim, mesmo que Budapeste argumente que 20 países-membros da UE introduziram leis de emergência, a húngara simplesmente não era necessária: ela só está lá para dar ao governo poder ilimitado sem limite de tempo.

Que medidas o governo de Orbán tomou até agora, usando a lei?

Desde o princípio de abril, foram expedidos mais de 80 decretos. Um dos primeiros alterou a lei do trabalho, cancelando toda a proteção para os empregados. Um dos exemplos mais recentes é um decreto que suspende os regulamentos da UE de proteção de dados. Além disso, todos os hospitais e aproximadamente 150 companhias estatais e privadas estão sob controlo militar: a diretoria dessas organizações só pode tomar decisões empresariais com a aprovação de pessoal militar. Isso não aconteceu em nenhum outro Estado-membro e é uma violação gritante tanto das leis húngaras como das da UE.

As autoridades governamentais têm repetidamente enfatizado que o Parlamento húngaro poderia retirar os poderes de emergência em qualquer momento. No entanto a coligação de governo controla a maioria dos assentos. Como é que o órgão poderia revogar a lei?

O argumento do governo húngaro é muito capcioso. Não me lembro de nenhuma ocasião, na última década, em que o Parlamento tenha votado contra qualquer proposta governamental importante. Isso quer dizer que não há a menor hipótese de que este Parlamento, liderado pelo Fidesz, com seus dois terços de maioria, se vá opor a qualquer medida governamental. E para revogar a lei é preciso uma maioria de dois terços. Portanto, mesmo que o governo atual perdesse sua atual supermaioria, nas eleições ou devido à morte de um deputado – coisa que certamente não desejo –, a lei não poderia ser revogada.

O Tribunal Constitucional da Hungria poderia intervir para assegurar que o governo não explore ainda mais seus novos poderes?

Outros países democráticos da UE têm pesos e contrapesos entre os poderes, para além do parlamento, que talvez não seja capaz de controlar o governo: há tribunais constitucionais e supremos ou presidentes. No caso da Hungria, todos os membros do Tribunal Constitucional são nomeados ou eleitos pelo Fidesz, eles nunca se pronunciam contra o governo em qualquer questão política séria.

O presidente da Hungria [János Áder] é um dos fundadores do Fidesz e um bom amigo de Orbán, ele ratificou a lei de capacitação em apenas duas horas: foi esse todo o tempo de que precisou para investigar se ela é política e constitucionalmente aceitável. Como é que esse presidente se oporia a qualquer coisa que faça o governo?

Os poderes de emergência deveriam vigorar apenas enquanto dure a crise do coronavírus. No entanto, ninguém sabe quando ela acabará. Orbán já falou de um segundo surto no terceiro trimestre. A lei chegou para ficar?

Chegou. Deixe-me recordá-lo: em 2015, durante a crise migratória [quando centenas de milhares de solicitantes de refúgio e migrantes atravessaram a Hungria], o governo introduziu uma lei de emergência para a imigração. Ela ainda está em vigor, embora não haja mais migrantes na Hungria, e as fronteiras estejam fechadas. O governo prorrogou essa lei a cada seis meses, sendo a última vez em março. Então, eu não vejo qualquer garantia de que essa situação de emergência vá acabar com o fim da pandemia.

Felix Schlagwein (av) | Deutsche Welle

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