sábado, 20 de junho de 2020

A descolonização de Israel começou


Thierry Meyssan*

Eis que há três quartos de século uma colónia anglo-saxónica, tornada um arsenal dos EUA, tenta conquistar todas as terras do Nilo ao Eufrates (o Egipto, a Palestina, a Jordânia, o Líbano, a Síria e uma parte do Iraque). E, eis que há alguns anos os cidadãos desta mesma colónia aspiram transformá-la num Estado normal. Este conflito, de uma outra era, franqueou uma nova etapa com a nomeação de um governo bicéfalo: dois primeiros-ministros representando as duas visões políticas vão paralisar-se mutuamente. Os únicos avanços apenas poderão ocorrer em matéria social e de saúde, acelerando ainda mais a modernização da sociedade e, portanto, o fim da fantasia colonial.

A nomeação do governo de coligação (coalizão-br) israelita não encerra a batalha encarniçada, aberta desde há seis anos, entre duas visões opostas e inconciliáveis de Israel [1], nem a paralisia governamental que dura desde há um ano e meio. Pelo contrário, ela marca o início da agonia de um dos dois protagonistas e a lenta transformação do país num Estado normal.

Não é fortuito que este debate tenha eclodido sob os golpes do ex-soviético Avigdor Liberman por causa dos privilégios dos estudantes das yeshivas. O antigo Ministro da Defesa, ao afirmar que o álibi religioso não dispensa ninguém do serviço nacional, contestou o cerne da mentira sobre a qual o Israel de há setenta e dois anos foi fundado.

O apelo do General Ehud Barack para acabar com Benjamin Netanyahu pela via judicial falhou. Os partidários do sonho colonial continuam lá. Eles mergulharam os seus concidadãos numa espécie de terror convencendo-os de que estão ameaçados pelos estrangeiros. Como nos tempos dos guetos, para os «proteger», fecharam-nos atrás de um Muro que os separa até dos seus concidadãos árabes.

Lembremos que Israel não é o produto da cultura judaica, mas da vontade dos puritanos ingleses [2].


Foi a partir do século XVII que o Lorde Protector, Cromwell, se comprometeu a criar um Estado judeu na Palestina, tema que não foi retomado durante a restauração dinástica. No século XVIII, os líderes da Guerra da Independência dos EUA, herdeiros de Cromwell, pronunciaram-se igualmente por essa criação de tal modo que o Reino Unido e os Estados Unidos acabam por ser os padrinhos naturais desta entidade. No século XIX, o Primeiro-ministro da Rainha Victoria, Benjamin Disraeli, teorizou o sionismo como instrumento do imperialismo britânico e inscreveu a «Restauração de Israel» no programa do Congresso Internacional de Berlim de 1878. À época nenhum judeu apoiou este descabelado projecto.

Foi preciso esperar até ao caso Dreyfus, em França, para que Theodor Herzl se dedique a converter a diáspora judaica ao sionismo anglo-americano. Ele concebeu um sistema colonial segundo o modelo posto em prática por Cecil Rhodes em África e conseguiu, gradualmente, atrair inúmeros intelectuais judeus ateus para isso.

Assim que os governos britânico e norte-americano foram ocupados por puritanos (Da-vid Llyod George e Woodrow Wilson) durante a Primeira Guerra Mundial, um acordo foi concluído entre os dois países para criar Israel. O princípio de um «lar nacional judaico» foi tornado público por uma carta do Ministro dos Negócios Estrangeiros, Lord Balfour, a Lord Rotschild, depois o Presidente Wilson fixou oficialmente a criação de Israel como um dos 14 objectivos de guerra dos Estados Unidos. Na conferência de paz, o Emir Faiçal subscreveu o projecto sionista e comprometeu-se a apoiá-lo.

Judeus começaram a colonizar a Palestina do mandato (sob Mandato britânico-ndT) com a ajuda da burguesia local, mas em detrimento do povo comum, depois a emancipar-se de Londres. Em 1948, um hebreu ateu, Ben-Gurion, precedendo desta vez em cinco anos o modelo rodesiano, proclamou a independência de Israel antes das Nações Unidas terem definido as fronteiras. Só então os rabinos deram o seu amplo apoio ao projecto colonial.

Desde há setenta e dois anos, a Palestina amarga uma guerra perpétua. Na sequência de várias vagas de imigração sucessivas, o Estado de Israel inventou, com todos os detalhes, uma «cultura» em torno de um povo imaginário (incluindo etnias que vão do Cáucaso à Etiópia), uma língua artificial (o actual hebraico não tem grande relação com o antigo patuá e escreve-se em caracteres aramaicos) e uma história fictícia (apesar das contestações da UNESCO, confundem a antiga cidade-estado de Jerusalém com o Estado de Israel). A assimilação desta criação intelectual ao projecto colonial puritano solidificou-se em torno de uma interpretação sacralizada de certos crimes nazis, qualificados de «holocausto» pelos puritanos e de «shoah» pelos judeus.

Nada nessa construção fictícia resiste à análise. Tudo aí é feito aí para levar a crer na continuidade de um Povo e de um Estado, quando se trata apenas de uma colónia anglo-saxónica.

Entretanto, hoje em dia, todos os Estados coloniais desapareceram à excepção de Israel e, com o passar do tempo, a maioria dos Israelitas (Israelenses) da actualidade nasceram em Israel. Assim, agora, duas concepções deste Estado coexistem:

- de um lado, os partidários do colonialismo anglo-saxónico que reivindicam a sobera-nia sobre as terras que vão do Nilo ao Eufrates. Eles julgam estar numa ilha de piratas, abrigando criminosos do mundo inteiro e recusando qualquer acordo de extradição. Eles declaram-se como um «povo eleito», superior aos outros homens, e consideram Israel como o «Estado Judaico».

- do outro, pessoas que querem viver em paz com os seus vizinhos, qualquer que seja a sua religião, ou ausência de religião, e qualquer que seja a sua etnia. Eles não querem ter nada a ver com as fantasias coloniais de séculos passados, mas não pretendem desistir de nada que herdaram dos seus pais, mesmo que esses o tenham roubado. Eles gostariam de ver resolvidos os impressionantes problemas sociais da sua pátria.

São duas visões inconciliáveis, as quais são encarnadas por dois Primeiros-ministros, Benjamin Netanyahu e o seu «parceiro», o General Benny Gantz.

Este tandem jamais poderá resolver seja o que for dos conflitos com os povos árabes. Quando muito, poderá encarar por fim as terríveis injustiças do país. Por exemplo, cerca de 50.000 cidadãos que passaram pelos campos da morte nazis sobrevivem hoje no país como podem, sem ajuda do Estado que os ignora, mas que encaixou as indemnizações (indenizações-br) que lhes eram destinadas, enquanto fingia salvá-los.

Pela simples pressão do Tempo e da Demografia, a descolonização de Israel começou.


*Intelectual francês, presidente-fundador da Rede Voltaire e da conferência Axis for Peace. As suas análises sobre política externa publicam-se na imprensa árabe, latino-americana e russa. Última obra em francês: Sous nos yeux. Du 11-Septembre à Donald Trump. Outra obras : L’Effroyable imposture: Tome 2, Manipulations et désinformations (ed. JP Bertrand, 2007). Última obra publicada em Castelhano (espanhol): La gran impostura II. Manipulación y desinformación en los medios de comunicación (Monte Ávila Editores, 2008).

Notas:
[1] “The Geopolitical Approach: Two States for Two Peoples”, by Commanders for Israel’s Security, Voltaire Network, 30 October 2014.
[2] “Quem é o inimigo?”, Thierry Meyssan, Tradução Alva, Rede Voltaire, 4 de Agosto de 2014.

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