#Escrito em português do Brasil
Em entrevista à DW, relator para
tortura da ONU afirma que fundamentos da ordem mundial estão sendo abalados.
Por envolver a potência EUA, caso Assange é emblemático, com repercussões
globais e duradouras, diz.
O relator especial da ONU para
tortura, Nils Melzer, acusa uma tendência global inquietante: a erosão
gradual dos direitos humanos, da China aos Estados Unidos, passando por Brasil,
Síria, Rússia.
Em entrevista à DW, ele enumera
comportamentos estatais que emitem sinais de que o Estado de Direito está sobre
grave ameaça. Em especial a partir dos Estados Unidos, como "país mais
influente do mundo, do ponto de vista econômico, político, militar".
Para Melzer, a saga de Julian
Assange é especialmente emblemática, indo muito além da defesa de um indivíduo:
"vítima de tortura psicológica prolongada", a eventual condenação do
fundador do Wikileaks ameaça "estabelecer uma norma de que os Estados
podem manter secretos os próprios crimes e não ter que responder por eles".
Nesse caso, "é preciso realmente se perguntar se ainda podemos falar de
Estado de Direito em relação aos EUA".
Desde 2016, o suíço Nils Melzer é
o relator especial da ONU para tortura. Antes, integrou durante 12 anos o
Comitê Internacional da Cruz Vermelha, atuando em diversas zonas de conflito.
DW: Há quase quatro anos o senhor
é relator especial para tortura junto às Nações Unidas. Que tendências o
preocupam mais em relação ao tema, no momento?
Nils Melzer: O que mais me
preocupa é a erosão dos direitos humanos em todo o mundo. Isso atravessa todas
as regiões: da China, com Hong Kong e os uigures, passando pela Rússia, até a
violência policial nos Estados Unidos e os ataques desse país ao Tribunal Penal
Internacional. E da Síria, passando pelo Brasil até a crise migratória mundial.
Por toda parte, os direitos humanos estão sendo erodidos, a lista não tem fim.
Isso me deixa muito apreensivo, pois estão sendo abalados os fundamentos da
ordem mundial atual.
O senhor mencionou a Síria: na
Alemanha, num tribunal de Koblenz, há dois meses réus respondem,
pela primeira vez, por crimes contra a humanidade, acusados de ter
colaborado com o sistema de tortura sírio. Que sinal esse processo emite, e
esse sinal é sequer captado?
É incrivelmente importante que
esse processo seja realizado. A Síria tem um sistema de tortura notório. Vinte
anos atrás, quando eu trabalhava na região, acompanhei a saída de prisioneiros
dos cárceres sírios, e já na época fiquei chocado. Desde então, os relatos só
pioraram. É muito importante expor esse sistema hediondo, independentemente da
questão das culpas individuais. Pois está fora de dúvida, e deve chegar a
público, que o regime de [Bashar al] Assad é um sistema de tortura e emprega os
métodos mais atrozes.
Mas também recebemos outros
sinais do mundo. Por exemplo, o fato de os Estados Unidos ameaçarem
funcionários do Tribunal Penal Internacional de Haia, caso abram inquérito
contra soldados americanos. Há pouco mais de duas semanas, o presidente Donald
Trump assinou um decreto nesse sentido. Que sinal isso emite?
Naturalmente é um sinal
catastrófico, em especial porque os EUA são o país mais influente do mundo, do
ponto de vista econômico, político, militar. E no entanto foram eles que
iniciaram os julgamentos de Nurembergue, após a Segunda Guerra Mundial, e os
processos de Tóquio. Eles foram pioneiros no direito internacional de
guerra e no direito penal internacional. E quando justamente esse país
agora não está pronto a ser chamado à responsabilidade por crimes de guerra dos
quais há provas que sequer são questionáveis, então estamos diante de um grande
problema.
Vemos isso na recusa dos EUA de
investigarem as práticas de tortura sistemática da CIA, examinadas e
confirmadas pelo próprio Senado americano. Vemos isso na recusa de processar
crimes de guerra americanos, se necessário também perante instituições
internacionais. Isso dá um exemplo muito ruim: vemos que Israel, ou o Reino
Unido – também aliados tradicionais dos EUA – vão imediatamente na mesma
direção, e tentam proteger também os próprios militares da persecução penal por
crimes de tortura.
Quando se fala de crimes de
guerra nos EUA, logo se pensa também em Julian Assange. Faz
quase exatamente dez anos que o Wikileaks divulgou o vídeo Collateral
murder. Ele mostra como feridos e socorristas desarmados, entre os quais dois
jornalistas da agência Reuters, são alvejados a partir de um helicóptero
americano, em Bagdá. Para
os perpetradores – os atiradores e seus superiores – até o momento não houve
consequências. Mas para Assange, houve. O que isso significa?
É preciso refletir: qual é a
legitimidade moral de um Estado que não pune seus próprios criminosos de
guerra? Vemos no vídeo feridos sendo massacrados, e escutamos os soldados
dizerem que atiram intencionalmente neles. Não há qualquer dúvida de que se
trate de um crime de guerra.
Se temos esse vídeo, e os EUA não
investigam, mas punem de forma draconiana – estamos falando de 175 anos de
prisão! – quem leve esses crimes de guerra a público, então temos um problema
muito fundamental. Aí é preciso realmente se perguntar se ainda podemos falar
de Estado de direito em relação aos EUA.
Por falar em Estado de Direito:
desde fevereiro corre num tribunal londrino o processo de extradição contra
Assange. A seu ver, essa ação preenche os pré-requisitos do Estado de direito,
de que sempre nos orgulhamos tanto?
Não, infelizmente não. É algo que
me choca, pois eu mesmo sou professor de uma universidade britânica em Glasgow,
e sempre tive grande respeito pelo sistema judiciário britânico. Mas no caso de
Assange, o Estado de Direito está sendo simplesmente neutralizado: ele
não tem qualquer possibilidade de preparar adequadamente sua defesa.
Direitos indiscutíveis,
concedidos até mesmo ao pior criminoso de guerra, por exemplo em Koblenz ou
Haia, não são permitidos a Assange: ele não tem contato com seus advogados
americanos, embora esteja ameaçado de extradição, tem contato muito restrito
com seus advogados britânicos, e quase nenhum acesso a documentos legais. São
violações muito graves das regras processuais, para as quais não há necessidade
nem justificativa.
No caso de Julian Assange, o
senhor falou também de tortura. Em que consiste essa tortura, a seu ver?
É óbvio que não se pode comparar
uma prisão síria a uma britânica, que isso fique bem claro. Só que
"tortura" é um conceito amplo, que não se refere apenas a métodos de
tortura física, mas também psíquica. Examinamos Assange com dois médicos
especializados em vítimas de tortura e concluímos que ele mostra todos os sintomas
típicos de tortura psicológica de longo prazo. Trata-se de estados de medo e
estresse traumáticos e crônicos, assim como consequências cognitivas e
neurológicas de uma combinação de isolamento radical e constantes
arbitrariedades, humilhações e ameaças. Não devemos esquecer: políticos
americanos o classificaram como "terrorista", e em parte exigiram seu
assassinato. Assange teme, com razão, as condições nos presídios de alta
segurança dos EUA, conhecidas em todo o mundo como cruéis e degradantes.
A enorme pressão sob a qual está
esse homem, seu forte isolamento, pois foi encurralado como indíviduo, e a
forma arbitrária como se realizou cada processo contra ele, seja na Suécia,
Reino Unido, Equador ou nos Estados Unidos: tudo isso tem um efeito cumulativo,
provocando os mesmos sintomas que a tortura psíquica sistemática.
O senhor mesmo acaba de dizer
que, por pior que seja o que sofre Julian Assange, não é absolutamente
comparável, por exemplo, às câmaras de tortura sírias. Por que se engaja tanto
pelo indivíduo Assange, quando em tantas partes do mundo se passam coisas muito
piores?
Eu naturalmente me engajo por
centenas de vítimas de tortura, a cada ano. E é claro que me empenho por Julian
Assange, enquanto indivíduo. Mas esse não é o motivo principal de meu
engajamento: o "caso Assange" não trata apenas da pessoa dele,
mas, em primeiro lugar, dos crimes de seus perseguidores, os Estados Unidos.
Pelo fato de eles neutralizarem as instituições do Estado de direito, de se
recusarem a responsabilizar seus criminosos de guerra e torturadores, e de dar
um exemplo ao mundo inteiro de que todo espião que informe o público sobre
crimes de guerra estatais pode ser condenado.
Com a persecução de Assange,
estamos prestes a estabelecer uma norma segundo a qual os Estados podem manter
secretos os próprios crimes, e não ter mais que responder por eles. Temos que
estar cientes: se isso se impuser como regra, então é realmente só um pequeno
passo do Estado de direito à tirania.
Não esqueçamos que nenhum dos
crimes que Julian Assange expôs foi punido, e incluem tortura numa escala
gigantesca. E não esqueçamos que a guerra no Iraque foi ilegal, uma guerra de
agressão que resultou em mais de 1 milhão de mortos, e milhões de desalojados e
torturados. Então, não se trata de um caso pequeno, e suas implicações são
emblemáticas e de proporções globais.
#Escrito em português do Brasil
Matthias von Hein (av) | Deutsche
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